Por Leomar Daroncho na Rede Brasil Atual
“Não Olhe Para Cima” teria custado 75 milhões de dólares, envolvendo um elenco com 5 vencedores do Oscar. A crítica rotulou o filme como satírico, cômico, trágico e até ficção científica. A sinopse: “Dois astrônomos descobrem um cometa mortal vindo em direção à Terra e partem em um tour midiático para alertar a humanidade. Só que ninguém parece dar muita bola”.
O formato usado pelo diretor Adam McKay pareceu-me excessivamente longo, enfadonho e barulhento, com enredo semelhante ao de desenhos animados da década de 1980 em que um super-herói tenta salvar a Terra de alguma ameaça espacial. O desencanto com o roteiro e com a exposição caricata de duas musas do cinema deve ser minoritário, já que o filme encabeça a relação dos mais populares no serviço de streaming no Brasil. Agrada-me mais a Cate Blanchett de “Conspiração e Poder”, que aborda o jornalismo e o jogo de interesses.
O ator Leonardo Di Caprio esclareceu que o filme seria “uma alegoria sobre as mudanças climáticas”. Seu personagem representaria cientistas climáticos “que tentam falar sobre a urgência do assunto, mas são relegados às últimas páginas dos jornais”.
Dito isso, considerando a profusão de memes e crônicas relacionando atores com personagens da vida real: negacionistas, deslumbrados, alucinados, desonestos, oportunistas, predadores, farsantes, perversos, irresponsáveis, toscos, cruéis e panfletários, identifico problemas na trama que podem comprometer a compreensão acerca das reais ameaças ao planeta e à vida humana na Terra.
É comum que um filme de catástrofe escale personagem que alerta, implora por atenção e é ignorado. Se pretendia destacar o papel dos cientistas climáticos, talvez um protagonista menos deslumbrado e caricato tivesse contribuído para a causa. Além disso, há pelo menos dois problemas na origem da fictícia ameaça ambiental.
Primeiro: com exceção da ficção e das alucinações periódicas de seitas e malucos, não há notícias de alarmes científicos sérios quanto a ameaças climáticas externas, que subitamente aniquilariam a vida na Terra. Ao contrário, há fundadas preocupações com as ameaças decorrentes da ação humana.
A preocupação ambiental levou o Conselho de Direitos Humanos da ONU a reconhecer, em outubro de 2021, que o meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano. A decisão é considerada um passo importante para a construção de um planeta mais saudável e seguro.
Não se imaginavam limites à exploração do meio ambiente, tido como fonte inesgotável de recursos, até a década de 1960. Coube à pacata e ponderada bióloga marinha Rachel Carson o papel de precursora da consciência ambiental moderna. Seu livro: “A Primavera Silenciosa”, de 1962; despertou a preocupação para os danos ambientais causados por pesticidas sintéticos. Carson foi atacada e desqualificada pela poderosa indústria química, sendo vítima de uma campanha midiática de difamação. Há um bom documentário da NetFlix sobre Rachel Carson: “American Experience”.
A questão ambiental só entrou na pauta dos líderes mundiais em 1972. Está completando 50 anos a Declaração de Estocolmo, considerada um Manifesto Ambiental da ONU. Contém 19 princípios e registra a preocupação com a ignorância e a indiferença das consequências ambientais das ações humanas:
“Através da ignorância ou da indiferença podemos causar danos maciços e irreversíveis ao meio ambiente, do qual nossa vida e bem-estar dependem; instigando a difusão do conhecimento e de ações mais sábias como roteiro para a conquista de uma vida melhor, agora e no futuro, com um meio ambiente em sintonia com as necessidades e esperanças humanas”.
A partir daí, vieram muitos encontros, documentos e normas internacionais, tais como: a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1983; o Relatório “Nosso Futuro Comum”, de 1987, com o conceito de desenvolvimento sustentável – incorporado à nossa Constituição de 1988; a Conferência sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92, que adotou a “Agenda 21”, para afastar o mundo do modelo de crescimento econômico, visto como insustentável; a Rio+10, em 2002; a Rio+20, em 2012; e a Cúpula do Desenvolvimento Sustentável de 2015, em que os países definiram os novos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – Agenda 2030.
A ação humana é a preocupação central das discussões, em relação inversa ao mote do filme. O homem ataca o meio ambiente e, na sequência, sofre as consequências do desequilíbrio ambiental. O encontro mundial mais recente COP26, na Escócia, em 2021, foi motivado pelo preocupante Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que retrata eventos climáticos extremos, sem precedentes e com impactos devastadores.
O segundo problema no enredo, caso de fato pretenda retratar uma ameaça ambiental, está na ocorrência súbita da catástrofe, simultaneamente para todo o Planeta. A tragédia ambiental expressa-se de forma silenciosa e gradual, com imagens de esporádicos eventos impactantes, localizados.
O Brasil vem sofrendo reiteradamente com eventos pontuais dessa natureza: incêndios; desmatamento; tempestades de areia, envenenamentos; crise hídrica; enchentes e deslizamentos; secas; e rompimentos de barragens. Também há eventos trágicos silenciosos, na forma de moléstias crônicas, diluídos e invisibilizados pela subnotificação, pela ignorância e pela ausência de imagens chocantes, como se dá com as vítimas de acidentes de trabalho e os contaminados por venenos de uso agrícola, na condição de trabalhadores, habitantes de fronteiras agrícolas ou consumidores de produtos com resíduos. São situações em que a vida na Terra acaba para as vítimas, em tragédias particulares, anônimas e instantâneas, ou converte-se em agonizante limitação incapacitante suportada pela Previdência.
Em alguns casos, mesmo a ameaça que vem de cima está imediatamente ligada à ação humana, como se dá na pulverização aérea. Nesse tópico, registre-se a importância da Lei Zé Maria do Tomé — Lei nº 16.820/2019 — proibindo o despejo de veneno por aviões no Ceará. A Lei está sendo questionada no STF (ADI 6137), dando à nossa Corte Constitucional mais uma oportunidade de concretizar o compromisso brasileiro com os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Capitulando a interesses econômicos imediatos e ignorando evidências epidemiológicas, a sociedade vem permitindo que a indústria química obtenha autorização para um volume colossal de veneno. No último dia de 2021 foram liberados mais 51 biocidas (são 1.552 agrotóxicos nos últimos 3 anos). Não se observa presteza semelhante na revisão que deveria levar à proibição de produtos banidos do mundo civilizado. Num dos casos, foi autorizado o herbicida Dicamba, contrariando inclusive o Agronegócio que apontou que o produto foi proibido pela Justiça dos EUA, por ser muito perigoso para o meio ambiente.
No mesmo sentido, de forma açodada, o Governo pôs em revisão a NR36, Norma que dispõe sobre o Meio Ambiente do Trabalho seguro nas atividades de frigoríficos. O setor se destaca entre os que mais geram acidentes de trabalho. O Ministério do Trabalho reconhece que ocorreram 23.320 mil acidentes em 2019 (90 acidentes por dia). São 85.123 eventos em 4 anos. Além dos sequelados sobreviventes, a vida na Terra acabou para 64 trabalhadores que morreram em frigoríficos no período. Os dados reais da ação humana são bem mais graves, pois o Governo admite que a subnotificação no setor é superior a 320%.
Numa leitura obtusa, que considera as normas de proteção como meros entraves ao desenvolvimento, setores econômicos pressionam para flexibilizar a legislação ambiental. Ignoram ou são indiferentes às consequências do desmonte do sistema de preservação, como no caso da Lei 14.285, aprovada em 2021, que facilita a ocupação das margens de rios nas áreas urbanas: prenúncio de novas tragédias para as populações ribeirinhas.
Outra ameaça muito grave tramita no Senado, estimulando comportamentos predatórios. O Projeto de Lei nº 2159/2021, já aprovado pela Câmara dos Deputados. A proposta contempla inclusive a possibilidade de obtenção de Licença Ambiental por mera declaração do empreendedor, eliminando ou fragilizando a proteção ao meio ambiente. Espera-se que o Senado Federal, na função de Casa Revisora, impeça que o conjunto de dispositivos lesivos à saúde humana e ao meio ambiente prospere. Desperta preocupação semelhante a proposta de alteração do Código de Mineração, que não deveria ignorar o aprendizado das tragédias que deram cabo a centenas de vidas em Mariana e Brumadinho.
Há vários ataques ao meio ambiente sendo planejados e praticados. A questão requer escolhas, da sociedade e das instituições, entre os interesses envolvidos e as consequências decorrentes. Essa ponderação está numa das frases intrigantes do filme de McKay, “A gente sempre tem escolhas. Às vezes só precisa optar por uma boa”.
O fictício asteroide espacial funcionou na fábula. Na vida real, há sinais em abundância de que o Ser Humano é o algoz e a vítima, mas também pode ser a solução. As escolhas são humanas; as consequências, também. Portanto, olho no Ser Humano e nas Instituições Humanas!
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP