Por Gustavo Roberto Costa no GGN
Alguns dias atrás, morreu o ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos Colin Powell, aos 84 anos de idade. Negro e filho de imigrantes jamaicanos, teve uma carreira notável nas forças armadas e no alto escalão da política do país norte-americano.
Políticos importantes (como Barack Obama) exaltaram-no como uma grande figura, ressaltando o fato de ter sido “o primeiro negro” a ocupar os postos de Conselheiro de Segurança Nacional, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e Secretário de Estado.
A maioria dos grandes veículos de comunicação fez o mesmo, tratando seu discurso no Conselho de Segurança da ONU, em 2003, quando defendeu a existência de armas de destruição em massa no Iraque (o que se comprovou posteriormente ser falso) e, consequentemente, a invasão do país por forças militares como um fato isolado em sua vida. A guerra no Iraque resultou em algo próximo a um milhão de mortes.
Mas as mentiras contadas sobre as armas no Iraque não teriam sido seu único crime. Em 1991, durante a guerra do Golfo Pérsico, ele defendeu o bombardeio de uma fábrica de produtos para crianças, também no Iraque, alegando que se tratava de uma fábrica de… armas de destruição em massa, o que a ONU desmentiu depois.
Na guerra do Vietnã, na qual Powell serviu por dois períodos, ele foi acusado de encobrir um massacre, promovido pelo exército dos EUA, que resultou na morte de mais de 500 pessoas, muitas delas crianças e mulheres, no vilarejo de My Lai. Ele teria dito, posteriormente, que a relação entre os soldados norte-americanos e a população vietnamita era “excelente”.
Na década de 1980, Powell foi um dos responsáveis por moldar a política militar dos EUA na América Latina, quando forças reacionárias apoiadas por seu país mataram centenas de milhares de pessoas em El Salvador, Nicarágua, Guatemala e outros países. Ele também supervisionou a invasão do Panamá.
Foi um negro que agiu da mesma forma que os brancos que estiveram em posições parecidas. O fato de ser negro não mudou em nada a forma com que as instituições que representou trataram povos pobres e oprimidos.
Outros exemplos são dignos de nota.
Recentemente, foi noticiado que, na fronteira dos EUA com o México, imigrantes haitianos foram perseguidos e açoitados com chicotes por agentes da imigração montados em cavalos. As imagens dos imigrantes – todos negros – sendo caçados pelos guardas correram o mundo, junto com a informação de que milhares deles estão sendo sumariamente expulsos dos Estados Unidos e mandados de volta a seu país de origem, assolado pela crise política e social.
Importante mencionar o acontecimento, que vem à tona menos de um ano após a primeira “mulher negra filha de imigrantes” (Kamala Harris) tomar posse como vice-presidente do país. Apesar de “condenar” a ação dos guardas, a Casa Branca segue com sua política migratória contrária ao direito internacional humanitário.
Como Procuradora do Estado da Califórnia, Kamala Harris já levou ao sistema de justiça criminal famílias pobres por evasão escolar de seus filhos, defendeu a proibição de cirurgia de mudança de gênero, manifestou-se pela não liberação de presos que já haviam cumprido parte significativa de suas penas e até mesmo recorreu de uma decisão da justiça federal norte-americana que decidira pela inconstitucionalidade da pena de morte. Lembre-se (embora dispensável) que grande parte das pessoas submetidas à justiça penal norte-americana são negras.
Os EUA, enquanto seu presidente era Barack Obama, financiaram e apoiaram golpes de Estado na Líbia, no Egito e na Ucrânia e promoveram a sangrenta guerra na Síria, sem falar na intensificação dos bombardeios e mortes no Iraque e no Afeganistão.
Quer dizer, sob o pretexto de fomentar a “diversidade”, os regimes políticos capitalistas aceitam conceder espaços de poder para negros e negras, os quais são incapazes de fazer com que o modus operandi de instituições repressivas seja alterado. Apenas “ocupar espaços” pode não representar verdadeiro avanço contra a repressão, mas tão somente a satisfação pessoal de uma parcela mínima desses grupos, enquanto o grosso dos excluídos continua sem visibilidade – e sem ninguém que lute verdadeiramente por seus direitos
Linda Harrison, militante do Partido dos Panteras Negras, escreveu, na edição de 2 de fevereiro de 1969, no jornal do partido:
“Como o nacionalismo cultural não oferece nenhum desafio ou risco contra a ordem social estabelecida, o aumento de atores, estrelas de cinema, assistentes sociais, professores, oficiais de condicional e políticos ‘negros e orgulhosos’ é imenso. A burguesia e uma posição de classe superior não são obstáculo para o ‘negro’ e vice-versa. (…) Todo mundo é negro e a burguesia continua a odiar seus irmãos e irmãs negros menos favorecidos. (…) O assistente social “negro” continua a trabalhar para um sistema de seguridade social degradante e os oficiais de condicional continuam a violar os direitos dos que estão em seus encargos”.
A política “identitária”, irrefletida e acrítica, se transformada numa corrida de alguns poucos negros (o mesmo ocorre com mulheres, público LGBT, indígenas etc.) por holofotes e espaços de poder, não significa a luta desses grupos contra a opressão e a exclusão social de que são vítimas há séculos. E isso porque sua subida ao poder não significa a mudança de um regime racista, mas tão somente uma adaptação a ele.
Políticos e burocratas negros que defendam o capitalismo, não questionem sua natureza exploratória e não entendam que a luta do negro faz parte da luta da classe trabalhadora podem deixar uma herança parecida com a de Colin Powell – o primeiro negro criminoso de guerra.
Será que os integrantes dos variados movimentos negros pelo mundo se orgulham deste título?
Gustavo Roberto Costa. Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD