Arquivos Diários : julho 29th, 2021

Negros, indígenas, quilombolas e caiçaras não tiram férias

 

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN 

“Não fiz faculdade, mas leio florestas”, me explicou Donizete.

Foi assim que aprendi, com o guia que desbrava trilhas em São Francisco Xavier, na área serrana de SP, a ler a qualidade do ar pelo vermelho dos líquens das árvores. Vi que musgos são, na verdade, poesia, inscrevendo nos troncos onde nasce e morre o sol, e que certas formigas fazem cura da dor. Quando apavoradas, urinam fitoterapia para curar nossa sinusite.

Sobre um tapete de folhas secas, debaixo de frestas de renda verde e sob efeito da aromaterapia de flores moles e orquídeas, Donizete me conduziu ao lar dos Muriquis, onde os maiores macacos das Américas, com a cara negra que lembram a labuta dos homens das minas de carvão, jogavam folhas sobre mim enquanto brincavam, comiam e criavam filhos sobre galhos. “Essa chuva de folhas que eles fazem purifica nossos espíritos”, me disse o leitor.

“Meu pai olhou pra raiz da árvore e viu gente. A nossa gente do campo”, me contou Saulo Joana, quando paralisei diante do avô e do neto a caminho da roça, cravados no Jacarandá.

O escultor Ditinho Joana escreve florestas.

No bairro do quilombo, em São Bento do Sapucaí/SP, Ditinho Joana, aos 80 anos, vive de fazer poesia tridimensional da vida do campo, em peças que poderiam estar nos melhores museus do mundo.

Ditinho trocou a enxada por martelos, lixas, histórias, troncos e filhos para falar de amores de viola, colheitas, colos de vó, fé, angústia de menino dono de bola de futebol furada e botinas surradas dos (des) caminhos do homem do campo.

Em talhos certeiros na madeira, um tanto por resistência, outro por insistência, Ditinho Joana se fez artista de si.

“O mar se faz manso para anunciar a tormenta”, me explicou o pescador Romário, quando me indicou a trilha que liga a praia de Camburi, em Ubatuba/SP, às cachoeiras que permeiam a vila dos quilombos.

“Você passa dois rios, duas pontes de pedra, um campo de futebol, a ponte de madeira quebrada, come o pastel de peixe da Monca na última casa da vila, e segue…só segue… segue seguindo…”.

No meio da floresta, entre as pontes, os rios e as pedras anunciadas, roupas no varal de árvores, crianças correndo, brigando, brincando, caindo no chão e levantando. Um senhor me cumprimentou sorrindo. Outro baixou os olhos para não me ver.

“Corre, homi, a moça quer comprar artesanato”, saiu Monca, aos berros, acordando o vizinho vendedor de filtro de sonhos.

“Trezentas famílias aqui” – me diz Monca – “e mais um monte que apareceu encostando seus barracos. Daí falam que, por isso, nunca teremos título da terra porque não somos descendentes de quilombo. Nos tratam como invasores depredando florestas, mas nem cheguei, nem saí daqui. Só nasci pregada aqui mesmo.  Quer levar uma canoinha também? Meu marido mesmo fez. É 10.”.

Sem guia, roteiro, aviso prévio, me enfiei no sertão de Prumirim, em um dia de domingo da comunidade indígena de Boa Vista, mas ninguém esperava compradores de colares de sementes ou cestos de palha por ali.

Os homens jogavam futebol enquanto mulheres embalavam bebês. Longe e livres, crianças com três e quatro anos se divertiam saltando nas pedras, enquanto meu coração de gente criada na cultura apavorada continha ímpetos de lhes dar a mão para que não caíssem. Um grupo de adolescentes, de celulares na mão, ria e falava alto. Cozinhavam, escovavam dente no rio, lavavam a louça no tanque comunitário.

Sem ninguém para nos oferecer flechas com penas na ponta, sentimos como flechas os olhares de estranhamento que recebem os diferentes que não são esperados.

“Vamos embora, mãe. Me sinto uma colonizadora, invasora… sei lá… me sinto mal, uma branca opressora…vamos embora, mãe” pediu angustiada minha filha, de 17 anos, de olhos baixos diante das meninas de sua idade amamentando bebês e dançando funk.

Nas noites de lua minguante, o homem que lê florestas tem seu segredo. Com vinho, torradinha, queijo e amada, se embrenha na mata até chegar em uma pedra permeada de prece: “ora pro nobis”, a PANC proteica da moda, cresce aos montes por ali. Está pronto seu jantar romântico.

A floresta é sua biblioteca, leito de núpcias, lar de sua família de Muriquis. Refúgio. Por isso, arrisca a vida para, sem nenhum equipamento de segurança, e como voluntário, apagar as queimadas dolosas que, vez ou outra, ameaçam tudo o que ele tem e é.

Estranho fascínio esse pelo ter o que se cercar, quando se pode ter, sem as cercas, tanto mais.

Donizete baixa a voz pra falar da sanha imobiliária em São Chico. Aqui, e ali, paulistanos endinheirados picotam e cercam seus pedaços idílicos de terra no topo das montanhas e, depois, descaracterizam, “gourmetizam” e encarecem a vida dos nativos dali.

“Às vezes, me sinto expulso de minha casa… cada vez sinto que tenho menos chance de comprar o pedaço de chão da minha mãe e os muriquis… e se eles aprenderem a ter medo de nós?”

Donizete, Ditinho, Monca e Romário vivem no país das meninas negras que ganham medalha de prata. Da fadinha que troca aplausos pela saúde das pessoas. Da rainha do baile funk da favela, que não morreu de bala perdida.

 É a gente que nunca tira férias.

Vítimas da ganância da desordenada ocupação do solo, da violência da diáspora africana, do apagamento dos remanescentes quilombolas, do racismo estrutural que segue criminalizando a negritude, da matança física e cultural do povo indígena, da luta do homem do campo pela visibilidade dos seus sapatos gastos e mãos calejadas e da falta absoluta e absurda de incentivo ao esporte, à arte, aos salvadores de florestas e muriquis.

Entre montanhas, mares, matas, cachoeiras, jogos olímpicos e bebês que nascem, centenas de botinhas de madeira seguem esculpidas pelas mãos de uma família. Monca acorda o homem que vende sonhos para serem filtrados. O caiçara, sabedor de caminhos, vê tormenta até na mansidão. Uma fadinha  sobe em um skate e os japoneses batem palmas ao som de Bach e Mc João. A vida acontece para todo mundo em um dia de domingo.

Que a branquitude, mais e mais, nos desconforte em nossas férias até que deixe, enfim, de ser tão branca.

Donizete segue lendo florestas.

O artigo 3º, da Constituição Federal, pede férias.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça do MPSP e Integrante do Coletivo Transforma MP.