Não é possível mais abertamente defender o trabalho escravo, então o sistema colonial atualizou sua tática retórica
Por Tiago Cavalcanti na Carta Capital
Não é de hoje a utilização do discurso como arma política, inclusive para legitimar práticas opressivas e contrarrevolucionárias. Segundo Boaventura Sousa Santos, Quando Napoleão chegou ao Egito em 1798, explicou assim as suas ações: “Povo do Egito. Nossos inimigos dirão que eu vim para destruir sua religião. Não acredite neles. Diga-lhes que vim restaurar seus direitos, punir os usurpadores e instituir a verdadeira devoção de Maomé”. A invasão foi dessa forma legitimada pelos invasores.
O tempo passou, mas a estratégia se perpetuou. Na modernidade ocidental, onde prevalece a linguagem dos direitos humanos, a classe dominante e seus legítimos representantes continuam a adotar uma postura cínica e paradoxal consistente na simultânea afirmação e negação dos direitos humanos: estes são evocados para justificar o seu próprio descumprimento.
Essa incompatibilidade entre palavra e atitude reverbera no tema da escravidão: a partir do marco abolicionista formal, escravizar passou a ser uma prática ilegal e moralmente reprovável, e isso fez com que os senhores de escravos passassem a atualizar suas estratégias.
Hoje é difícil encontrar alguém que se reconheça favorável à escravidão contemporânea. A dissimulação passou a ser a tônica entre os escravagistas modernos: pregam o respeito ao ser humano, mas buscam incessantemente o infinito barateamento da mão de obra. Pulverizam a produção, terceirizam, subcontratam, ocultam a relação de emprego, sonegam direitos. Pagam pouco, muito pouco, o mínimo possível. Mantêm firme, no entanto, o carismático discurso contra o trabalho escravo.
Em cerimônia realizada no Palácio do Planalto para anunciar a “modernização” das normas de saúde e segurança no trabalho, o presidente Jair Bolsonaro disse, sem hesitar, que “ninguém é favorável ao trabalho escravo”. Apesar da sentença incontestável, o chefe da nação defendeu a supressão de direitos e a desregulamentação de normas de saúde e segurança, fez críticas à Organização Internacional do Trabalho, ao conceito jurídico de trabalho escravo e à expropriação de imóveis nos quais haja flagrante do delito. Atacou o Ibama, a fiscalização do trabalho e o Ministério Público do Trabalho.
O caloroso discurso recebeu os aplausos de empresários e correligionários presentes no evento, como Paulo Skaf, presidente da Fiesp e obstinado apoiador da reforma trabalhista, Ives Gandra Martins Filho, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, responsável por suspender a divulgação da lista suja do trabalho escravo, Paulo Guedes, Ministro da Economia que satirizou porteiros e empregadas domésticas, e Hamilton Mourão, vice-presidente da república, que criticou a gratificação natalina, o adicional de férias e até mesmo o salário mínimo.
A verdade é que, hoje, a atualização dos senhores de escravos pode até se desfazer de pessoas truculentas. São empresários e proprietários de terra bem quistos e com grande influência política regional e até mesmo nacional que em suas fazendas mantém trabalhadores e trabalhadoras em condições indignas de trabalho. Defendem a ética e a moral pública, mas escondem sua verdadeira condição.
Se as confederações nacionais da indústria e da agricultura (CNI e CNA), que possuem assento na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), adotam posições costumeiramente contrárias às deliberações do colegiado, a representação patronal no Congresso Nacional, e sobretudo a bancada ruralista, defende pautas contrárias à legislação trabalhista e favoráveis a desmatamentos, agrotóxicos e armas de fogo. Em poucas palavras, defende-se a reatualização da escravidão por vias transversas moralmente aceitas.
Muito embora, em regra, os interesses escusos sejam camuflados por um bom-mocismo aparente, há quem defenda abertamente o trabalho precário. Sem desvios ou insinceridades.
O jornalista Leandro Narloch, no texto “Deveríamos proibir os pobres de ter trabalhos degradantes?”, publicado em sua coluna para a Folha de São Paulo em maio de 2018, responde sem hesitar à pergunta que intitula seu artigo. Citando a obra In Defense of Sweatshops, do economista americano Benjamin Powell, o autor diz que “os ricos, ao se deixarem seduzir por boas intenções e combaterem o trabalho degradante, acabam impondo suas preferências sobre os pobres”. Como se a miséria e as condições degradantes de trabalho fossem uma escolha de vida, uma opção livremente manifestada pelos “pobres”.
O escritor, que já foi elogiado por Bolsonaro por ter “opinião própria e independência”, defende o “subemprego” como uma forma de manter empregos. A lógica é muito simples: “se o custo sobe, a quantidade de contratações caem”. Nesse sentido, critica o salário mínimo, pisos salariais e “outras exigências trabalhistas” que, segundo ele, “funcionam como o muro que Trump quer construir na fronteira com o México”.
Assim como o Presidente da República, o autor faz críticas à atuação estatal no combate ao trabalho escravo. Diz que o “ativismo” dos órgãos fiscalizadores “fechou uma porta para os imigrantes”, pois os bolivianos que trabalham em oficinas de costura não querem “trabalhar só 8 horas por dia nem pagar INSS e FGTS”. Além de estimular o descumprimento da lei, o autor mostra-se indiferente a uma verdadeira tragédia social: milhares de costureiros, brasileiros e imigrantes, homens e mulheres, socialmente vulneráveis, submetidos a condições de trabalho ofensivas à dignidade.
Defender o trabalho degradante aos “pobres” revela como são articuladas teorias que diminuem a relevância ou até mesmo justificam o trabalho análogo ao de escravidão. Ao final, a defesa do trabalho degradante tem um objetivo muito claro: defender a riqueza dos ricos, a pobreza dos pobres, a miséria dos miseráveis.
Os defensores dessa ideologia, cada vez menos dissimulados, estão legitimamente representados nas pessoas que atualmente governam o País. E todas as políticas voltadas à supressão de direitos e à intensificação das desigualdades deixam cada vez mais claro que o projeto de harmonização e conciliação de classes não passa de mero devaneio. Qualquer governo, ainda que progressista, que insista nessa quimera estará sujeito a golpes. Golpes levados a cabo pelas forças saudosas de uma época colonial em que pessoas tinham a natureza jurídica de escravizadas.
Tiago Cavalcanti é Procurador do Trabalho. Doutorando em Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica – UFPE, Brasil | CES-UC, Portugal.