Arquivos Diários : junho 9th, 2021

O futebol brasileiro já perdeu a Copa América

Ou seja, mais uma vez, os jogadores da seleção brasileira perderam uma grande oportunidade para, numa atitude inédita, política e histórica, mostrarem que não são os alienados que parecem ser quando postam aquelas insignificâncias. 

Por Rômulo de Andrade Moreira no GGN

“Tudo que sei sobre a moral e as obrigações do homem eu devo ao futebol.” (Albert Camus)[2]

Após o jogo de ontem, válido pelas eliminatórias para a Copa do Mundo do Qatar, os jogadores da seleção brasileira divulgaram um manifesto em suas redes sociais em que se dizem contrários à realização da Copa América no Brasil, marcada para começar em quatro dias. Segundo o “textículo”, apesar de contrários à organização da Copa América, eles “nunca dirão não à seleção brasileira”.

Erraram!, pois não se tratava de dizer sim ou não à seleção brasileira (isso chega a ser uma narrativa falsa e manipulada), mas de pronunciar firmemente um sonoro SIM à vida, à saúde e à ciência, e um NÃO aos negacionistas e àqueles que desdenham da vida humana, como se se tratasse de uma gripezinha o que vivemos.

Ou seja, mais uma vez, os jogadores da seleção brasileira perderam uma grande oportunidade para, numa atitude inédita, política e histórica, mostrarem que não são os alienados que parecem ser quando postam aquelas insignificâncias e aqueles deslumbramentos em suas redes sociais, como se o mundo fosse apenas glamouroso e de festas, tudo tão passageiro e fugaz como realmente é a existência humana.

Numa visão retrospectiva, é certo que, ao longo da história, a atividade esportiva muitas vezes foi utilizada – ora positivamente, ora sob um aspecto negativo – pela política e pelos políticos. Mas, por outro lado, e de certa maneira, também serviu como um meio legítimo de atuação política.

Assim, por exemplo, já nos tempos modernos, lembra-se dos Jogos Olímpicos de Verão – conhecidos como Jogos da XI Olimpíada -, realizados em 1936, em Berlim, durante a Alemanha nazista. A abertura dos Jogos foi feita com a presença de Adolf Hitler, e foi um espetáculo grandioso, apresentado ao mundo desde as dependências do então inaugurado – e moderno – Estádio Olímpico de Berlim. A expectativa dos nazistas, e em especial do seu líder, era a de que os homens brancos vencessem em quase todas as modalidades disputadas, ganhando a maioria das medalhas e provando a superioridade da raça ariana. Não foi o que se deu, porém, e como se viu.

Para a decepção do führer, coube a um grupo de atletas negros estadunidenses conquistar a maioria das medalhas no atletismo, liderados por Jesse Owens, que levou quatro medalhas de ouro. Esse acontecimento esportivo foi, sem dúvidas, um dos mais emblemáticos da história dos Jogos Olímpicos da era moderna, pois se tratava de um evento esportivo pensado para ser palco de enaltecimento da estética nazista, e para servir como propaganda do regime genocida implantado por Hitler.

E, para isso, os nazistas não economizaram dinheiro e esforços os mais diversos. Com um orçamento ampliado em mais de vinte vezes em relação ao previsto, construiu-se o mais moderno complexo esportivo do mundo (até então, obviamente), com capacidade para abrigar mais de cem mil pessoas. Os organizadores nazistas também mandaram construir um sino gigante com a inscrição “EU CHAMO OS JOVENS DO MUNDO”, celebrando a chegada da tocha olímpica ao local dos Jogos.[3] Dessa forma, o regime nazista tentava se apresentar ao mundo como algo pacífico, plural e humano; viu-se o contrário: o holocausto!

No futebol, lembra-se das Copas do Mundo de 1970 e de 1978, realizadas, respectivamente, no México e na Argentina, acontecimentos esportivos contemporâneos com os regimes militares brasileiro e argentino, também respectivamente, e que serviram para fins políticos e de propaganda dos governos militares de ambos os países. Aqui, o evento foi capitalizado pelo mais cruel dos generais da ditadura militar, Emílio Garrastazu Médici.

À época, após a fracassada campanha brasileira na Copa do Mundo de 1966, nada melhor para o regime militar que um sucesso no futebol para justificar o regime de exceção que se vivia no Brasil.  O técnico escolhido para dirigir a seleção brasileira foi o jornalista João Saldanha, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, e dono de uma personalidade corajosa, independente, marcante e forte. Evidentemente, o general Médici não viu com bons olhos o fato de um comunista estar à frente da seleção brasileira.

Certa vez, na véspera de um amistoso contra a Argentina, em Porto Alegre, um repórter perguntou a Saldanha: “O presidente Médici está no Rio Grande do Sul e sugeriu o nome de Dario (um centroavante do Clube Atlético Mineiro), para ser convocado, o que você acha da sugestão?” Respondeu o velho Saldanha: “O Brasil tem 80, 90 milhões de torcedores e gente que gosta de futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o Presidente, ou o Presidente e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol. E nem eu escalo o Ministério, nem o Presidente escala time, então está vendo que nós nos entendemos muito bem.” Era o que bastava. Três dias depois da seleção empatar em um jogo-treino contra o Bangu, Saldanha foi demitido pela cúpula do futebol brasileiro e em seu lugar foi chamado Zagallo que, no dia seguinte, convocou Dario, o preferido do presidente da República.[4]

Pouco mais de três meses depois, Médici recebeu, em Brasília, Zagallo e seus comandados, dentre eles Dario, que tinham conquistado o tricampeonato mundial; e no dia 20 de abril de 1970, o então prefeito de São Paulo, Paulo Salim Maluf – uma cria (e um símbolo) da ditadura – presenteou com vinte e cinco fuscas toda a delegação brasileira.[5]

Oito anos depois, na Argentina, a Copa do Mundo de Futebol serviu também aos interesses dos militares golpistas, mais especificamente para o general Jorge Rafael Videla Redondo, então presidente. Nesse torneio, a partida final foi disputada no Estádio Monumental de Núñez, triste e coincidentemente localizado a menos de 1km da Escola Superior de Mecânica da Armada, o principal e mais temido centro de tortura do país.[6]

Um outro exemplo: no ano de 1990, na antiga Iugoslávia, jogavam uma partida de futebol – um clássico local – os clubes Dínamo Zagreb e Estrela Vermelha, válida pelo campeonato iugoslavo. Na época, territórios que formavam a Iugoslávia, como a Croácia (terra do Dínamo), lutavam pela independência em relação ao governo central de Belgrado, na Sérvia (do Estrela Vermelha). As disputas diplomáticas envolvendo torcedores sérvios e croatas nas arquibancadas do Estádio Maksimir foi parar nos gramados e acabou com uma “voadora” do capitão do Dínamo em um policial, fato (também político, nada obstante violento) que ficou conhecido como “o chute que iniciou uma guerra.”[7]

Aqui no Brasil, no início dos anos 80, surgiu a “Democracia Corintiana”, possivelmente o movimento esportivo mais democrático da história do futebol brasileiro. Deu-se entre os anos de 1981 a 1985, quando os jogadores do Corinthians participavam das decisões mais importantes do clube e tudo era resolvido pelo voto, das contratações ao local de concentração. Destacavam-se entre os craques (em todo o sentido) Sócrates, Casagrande e Wladimir. Foi uma verdadeira e genuína revolução dentro do futebol brasileiro; dentre outras medidas, o clube liberou da concentração os jogadores casados. Em campo, a autogestão rendeu gols e o time chegou às semifinais do Campeonato Brasileiro e venceu o Campeonato Paulista de 1982.[8]

E, agora, o que se esperava dos jogadores da seleção brasileira, além de um minúsculo texto divulgado em redes sociais? Esperava-se uma atitude! É inaceitável que em plena pandemia, possivelmente às vésperas de uma terceira onda, o Brasil aceite receber delegações várias, além de jornalistas de todo o mundo, facilitando a aglomeração e a propagação do vírus, em detrimento da saúde e da vida das pessoas.

Como escreveu o jornalista Rodolfo Rodrigues, “fomos iludidos, pois quem imaginou que os jogadores da seleção brasileira estariam se posicionando contra a realização da Copa América no Brasil por causa da grave crise da pandemia do coronavírus foi enganado. Quem também achou que a briga do grupo de Tite era contra o presidente da CBF, Rogério Caboclo, que se aliou ao presidente Jair Bolsonaro, por trazer a competição de última hora para o país, também se enganou. Ou ainda quem ainda pensou que os jogadores falaram em boicote após o caso de assédio sexual de Caboclo, também caiu do cavalo.”[9]

Infelizmente, nada obstante ser o futebol “um patrimônio do povo brasileiro, historicamente tem sido usado por alguns para enriquecer. Quando o torcedor perceber a força que tem e os jogadores entenderem que são os principais atores do espetáculo, essa exploração acaba.”[10]


Rômulo de Andrade Moreira- Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.