Nunca ficou em cima do muro para ver melhor os dois lados; o seu ofício era trabalhar o mais imorredouro tema da humanidade, que são as paixões, os ódios e os conflitos do homem: o cerne da vida.
Por Rômulo de Andrade Moreira[1] no GGN
Ontem, 17 de maio, um grande jurista brasileiro, o baiano J.J. Calmon de Passos, faria 101 anos. Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e livre-docente da Faculdade de Ciências Econômicas da mesma Universidade, ele também foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – seção Bahia, procurador-geral de Justiça do Ministério Público da Bahia e secretário de Estado, além de membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.
Calmon de Passos, nas palavras de outro grande jurista brasileiro, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, foi “um dos maiores juristas de todos os tempos, da Bahia e do Brasil, e era, de fato, um homem genial; um homem de princípios; um homem de palavras, um Mestre, com M maiúsculo. Era correto e sério (ele era um homem do seu tempo, neste aspecto), mas também sempre gentil e cordial, até passarem do limite e pisarem onde não deviam, seja lá quem fosse.”[2]
Em 2012, quatro anos após a sua morte (ocorrida em 18 de outubro de 2008), foi publicada sua obra póstuma: REVISITANDO O DIREITO, O PODER, A JUSTIÇA E O PROCESSO – REFLEXÕES DE UM JURISTA QUE TRAFEGA NA CONTRAMÃO.[3]
No primeiro capítulo do livro – Os Pilares do Pensamento -, o mestre baiano faz reflexões a respeito do direito, da ética, do processo e da função jurisdicional (não como um mero exercício de dogmática), denunciando aqueles que, manipulando estas questões, procuram “empulhar os consumidores, colocando rótulo ´moderno’ numa embalagem cujo conteúdo é algo velho, já sem sabor e sem poder nutritivo”, aproveitando o mote para também fazer uma crítica bastante pertinente ao ativismo judicial, que “dá a esmola não desfalcando o seu patrimônio, mas o do povo brasileiro, porquanto, penalizando a empresa, ou a inviabiliza ou ela transfere o ônus para o consumidor; se houvesse intenção honesta, jamais seria penalizado o Estado, mas os agentes políticos responsáveis pelo abuso.”
Já na segunda parte, o jurista e pensador baiano trata dos pressupostos econômicos, políticos e ideológicos do espaço onde opera o Direito, refletindo sobre o homem, suas necessidades e conflitos, o poder, a política e a ideologia, valendo-se das lições de Bobbio, Stoppino e Konder; afirma, então: “impossível uma ideologia do direito dissociada da ideologia do poder que o legitima, pois o direito é a viabilização da legitimação do poder.”
Em seguida, no terceiro capítulo – Democracia e Poder Judiciário: uma conspiração insidiosa -, Calmon de Passos trata da democracia, da Constituição, do constitucionalismo e, novamente, mas sem ser repetitivo, da função jurisdicional. Aqui, afirma sobre a figura do magistrado: “numa Democracia, nem é o deus que alguns ingenuamente pensam que são, nem monarcas soberbos ou semideuses que olham de cima para baixo, com desprezo ou piedade, o restante dos mortais.”
No quarto capítulo – O Operador do Direito -, trata do nosso papel social e da nossa dimensão profissional, seja no aspecto individual, seja sob o ponto de vista social, lembrando, como se fora uma bela e sempre oportuna advertência: “assim como existem os maus artistas e os maus artesãos, também nós, operadores do direito, poderemos, por incompetência ou por má fé, tornar inóspita e feia a casa dos homens, porque todo pigmeu faz as coisas na medida de seu tamanho e todo meliante decora-a na ótica de seus interesses.”
Neste mesmo capítulo, faz-se uma especial menção aos advogados, comparando-os aos “integrantes de uma orquestra da qual se excluiu o maestro. Há partituras e músicos, mas não há harmonia. Só dissonância.” Depois de afirmar que a batalha pela democracia brasileira foi dos advogados, deixa um recado (ou talvez um desafio): “se não iniciarem agora a nossa resistência, não haverá mudança alguma amanhã. E essa resistência é pessoal. Não pode o advogado ser mero catalisador, instrumentalizado para servir aos que realmente vão ser protagonistas.” Eis uma lição para ontem, hoje e amanhã!
No último capítulo – Para além do imediato – há textos sobre questões que sempre desafiaram o espírito rebelde e atiçado de Calmon de Passos: o homem, o direito, a ética, a democracia e a liberdade. Com uma absurda nitidez, afirma que hoje a “ênfase dada à coerção, cada vez mais necessária para assegurar as chamadas ordem social, ordem política e ordem jurídica”, mais do que ter causado um “desencanto do mundo”, em verdade produziu “o desencanto da vida, estimulando-se a competição, em detrimento da solidariedade, fazendo da derrota do outro nossa coroa de louros.”
Definitivamente, Calmon de Passos foi um jurista que construiu uma obra jurídica, filosófica, sociológica, política e, sobretudo, contestatória, de inestimável valor, fazendo de sua coragem uma arma capaz de derrubar prepotências e denunciar safadezas. Nunca ficou em cima do muro para ver melhor os dois lados; o seu ofício era trabalhar o mais imorredouro tema da humanidade, que são as paixões, os ódios e os conflitos do homem: o cerne da vida.[4]
Trata-se, portanto, de uma obra genial, imperdível e de leitura obrigatória. Viva Calmon, figura colossal, cuja vida, tão ativa como diuturna, tão fecunda como longa, encheu sua época e nossos dias. Que falta ele faz![5]
[1] Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, no prefácio escrito na obra Pareceres Criminais em Segundo Grau – Uma visão constitucional do Direito e do Processo Penal (MOREIRA, Rômulo de Andrade e SILVA, Adriano de Jesus. Florianópolis: Empório do Direito, 2018, p. 14). Jacinto Coutinho, então, conta um fato que ele mesmo testemunhou em um Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, em Belo Horizonte, em 1986: “após uma brilhante conferência de Mauro Cappelletti (que falava de acesso à Justiça e de como os juízes respondiam conforme a lei), Calmon de Passos pede a palavra e mostra ao professor de Firenze que no Brasil e, particularmente, na Bahia (que ele dizia conhecer melhor), a coisa não era bem assim; e que os julgamentos eram marcados por voluntarismos e influências provenientes dos detentores do poder. Foi aplaudidíssimo. Cappelletti, na resposta, dentre outras coisas, disse não acreditar naquilo que havia dito Calmon o que, de certa forma, mostraria ser sua tese um tanto ingênua; ou algo assim. Passou, portanto, do limite. Mestre Calmon, com a humildade de sempre, pediu a palavra novamente e… deram! Com muita gentileza, disse que não era homem de mentiras, mas entendia a posição de Cappelletti; e que ela só mostrava que ele, como sói acontecer com os europeus, não entendia nada do Brasil e que, sendo assim, não era recomendável que falasse dele porque pareceria uma tentativa de estelionato ou algo do gênero. O auditório veio abaixo. E Cappelletti veio lhe dizer, depois (eu estava com ele), que ele, Calmon, estava certo.”
[3] PASSOS, J.J. Calmon de. Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo – Reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: Editora JusPODIVM, 2012.
[4] Escreveu ele, uma vez: “Firmado em minhas certezas sou como um bom galo de briga: só deixo a rinha depois de morto.”
[5] Quando Mário de Andrade morreu, o seu amigo Manuel Bandeira escreveu o seguinte: “Anunciaram que você morreu. Meus olhos, meus ouvidos testemunharam: a alma profunda, não. Por isso não sinto agora a sua falta. Sei bem que ela virá (pela força persuasiva do tempo). Virá súbito um dia, Inadvertida para os demais. Por exemplo, assim: à mesa conversarão de uma coisa e outra, uma palavra lançada à toa baterá na franja dos lutos de sangue. Alguém perguntará em que estou pensando, sorrirei sem dizer que em você. Profundamente. Mas agora não sinto a sua falta (é sempre assim quando o ausente partiu sem se despedir: você não se despediu.) Você não morreu: ausentou-se. Direi: faz já tempo que ele não escreve. Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel. Imaginarei: está na chacrinha de São Roque. Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida? A vida é uma só. A sua continua. Na vida que você viveu. Por isso não sinto agora a sua falta.” (A Mário de Andrade ausente. Disponível em https://www.escritas.org/pt/t/11048/a-mario-de-andrade-ausente. Acesso em 15 de maio de 2021).