Arquivos Diários : dezembro 17th, 2020

Do Estado de Direito Liberal ao Estado de Direito Social

O artigo dedica-se ao estudo da transição do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social, abordando também a chamada Democracia Participativa e os seus principais elementos constitutivos.

Por Rômulo Moreira no GGN

Resumo: O artigo, sinteticamente, traça o caminho percorrido desde o Estado de Direito Liberal até o Estado de Direito Social, procurando, no primeiro capítulo, trazer as ideias básicas que forjaram o liberalismo clássico (desde os pontos de vista econômico e social, até o aspecto político), inclusive abordando algumas questões relativas ao Direito Natural (jusnaturalismo). Após esta introdução, adentra-se, mais especificamente, ao estudo da transição do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social, caracterizando-os nos dois capítulos subsequentes, quando também é abordada a chamada Democracia Participativa e os seus principais elementos constitutivos.

Palavras-Chave: Liberalismo. Direito Natural. Estado de Direito Liberal. Estado de Direito Social. Democracia Participativa.

1 INTRODUÇÃO

Para o liberalismo clássico, “o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o indivíduo” e, consequentemente, o poder era quase sempre concebido “como o maior inimigo da liberdade”, de uma tal maneira que representava uma verdadeira antinomia a ideia da liberdade individual com o (imprescindível) poder estatal.[3]

O bem comum, para os teóricos e defensores do liberalismo clássico, somente seria inteiramente alcançável se fosse dada aos indivíduos a possibilidade de, livre e plenamente, “expandir suas energias criadoras, fora de qualquer estorvo de natureza estatal”.[4]

Assim, por exemplo, para Mill, ninguém, “nem qualquer número de pessoas, tem permissão de dizer a outro ser humano de idade madura, que ele não deve fazer com sua vida para seu próprio benefício aquilo que escolhe fazer com ela”, afinal “ela é a pessoa mais interessada em seu próprio bem-estar”. Para o filósofo inglês, certamente um dos mais importantes e reconhecidos defensores do liberalismo político,

[…] a interferência da sociedade para governar seu julgamento e propósitos naquilo que concerne a ele próprio, deve estar fundamentado em suposições gerais, que podem estar completamente erradas, e mesmo se certas, podem provavelmente ser mal aplicadas aos casos individuais por pessoas não melhores conhecedoras das circunstâncias de tais casos do que aquelas que os veem exteriormente.[5]

O Estado, para os liberais ortodoxos, seria ele próprio, “uma criação deliberada e consciente da vontade dos indivíduos” (segundo a doutrina do contratualismo social), sendo, portanto, “revogável se deixasse de ser o aparelho de que se serve o homem para alcançar na sociedade a realização de seus fins”.[6]

De toda maneira, é importante salientar, firme na lição de Scruton, que o liberalismo comporta uma série de sentidos, muitos sobrepostos, inclusive. Assim, pode ser considerado “uma atitude com relação ao Estado e suas funções”, mas também concebido como uma verdadeira “Teoria do Estado”. Além destes dois aspectos mais visíveis a partir da literatura específica, segundo Scruton, o liberalismo pode ser visto também desde “uma perspectiva moral, escondida nas fendas da vida cotidiana”. Neste aspecto, é interessante a metáfora trazida pelo teórico inglês do conservadorismo, ao dizer que “no subúrbio liberal perfeito, os jardins são de tamanho igual, embora adornados com a maior variedade possível de gnomos de plástico”.[7]

Mas, como monopolizador do poder, o Leviatã (Hobbes), desrespeitando a ideia de um Estado de base contratual (na esteira do pensamento de John Locke), e ignorando os seus próprios “criadores”, volta-se o Estado contra o próprio indivíduo, oprimindo-o, nada obstante ter sido por ele criado: trata-se da criatura voltando-se contra o seu criador, tal como na passagem bíblica.

Eis uma das razões pelas quais os jusnaturalistas conceberam a ideia de uma liberdade possível para o homem, mesmo diante do Estado soberano, aquele verdadeiro “depositário da coação incondicionada”.[8]

Sem confundir Moral e Direito – o que, de resto, não se pode admitir mesmo!, nada obstante nem sempre ter isso ocorrido no jusnaturalismo, muito pelo contrário -, os jusnaturalistas, especialmente a partir da Renascença (já que na Idade Média, metafisicamente, a “doutrina do direito natural é obra de católicos, teólogos, moralistas e religiosos”), preocuparam-se em “saber onde ancorar o Direito, na ausência de regras positivas”, partindo-se, desde Grócio, do Direito Internacional Público, o Direito das Gentes, saber específico do Direito onde se pudesse talvez encontrar “princípios que se imponham ao respeito de todos”.[9]

A propósito, segundo Jaucourt, “o direito natural é o sistema das leis naturais, aquelas que Deus impõe a todos os homens e que eles podem descobrir através das luzes de sua razão, considerando atentamente sua natureza e seu estado”.[10]

No entanto, a partir do século XX, como se fora num revival da escolástica e da metafísica, “cai-se na conta de que o Direito não pode prescindir de princípios orientadores e de que, para os aplicar, é preciso reconhecê-los como anteriores ao Direito positivo”.[11]

Com razão Geovane Peixoto, ao anotar que o jusnaturalismo

[…] defendia, como corrente jusfilosófica, um reconhecimento entre o direito e a moral, marcando a história do ser humano até o advento da modernidade, determinando as marcas características do reconhecimento do homem como titular de direitos, pela sua própria natureza, já em uma vertente moderna. Após a decadência desta construção teórica, com o advento de um novo paradigma (o juspositivismo) modifica-se a base jurídica e filosófica dos direitos humanos/fundamentais.[12]

De toda maneira, e não sendo o objetivo deste artigo traçar um histórico sobre as teorias do Direito Natural, sintetiza-se, com Bobbio, para afirmar que “a esfera do direito natural limita-se àquilo que se demonstra a priori; aquela do direito positivo começa, ao contrário, onde a decisão sobre se uma coisa constitui, ou não, direito depende da vontade de um legislador”.[13]

A propósito, na literatura mundial talvez não haja obra mais marcante sobre o tema do que Antígona, de Sófocles, afinal, conforme notou Sérgio Buarque de Holanda, “ninguém exprimiu com mais intensidade do que Sófocles, a oposição, e mesmo a incompatibilidade fundamental”, entre família e Estado.[14] Como escreveu o sociólogo, autor do clássico Raízes do Brasil,

Creonte encarna a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família. Antígona, sepultando Polinice contra as ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão[15], que não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadãos, da pátria.[16]

Assim, “o conflito entre Antígona e Creonte é de todas as épocas e preserva-se ainda em nossos dias”.[17]

Por fim, e para concluir esta introdução, faz-se uma distinção entre o liberalismo clássico e o que se convencionou chamar, desde o século passado, de neoliberalismo,

[…] precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade. (…) Muitos psicanalistas dizem receber no consultório pacientes que sofrem de sintomas que revelam uma nova era do sujeito. Esse novo estado subjetivo é frequentemente referido na literatura clínica como a ´era da ciência` ou o ´discurso capitalista`.[18]

2 O ESTADO DE DIREITO LIBERAL 

Com a Revolução Francesa, e a ascensão histórica da burguesia, começa a se delinear com mais precisão as ideias e os ideais do Estado de Direito Liberal, consolidando-se os princípios e os postulados do liberalismo clássico. Sem dúvidas, conforme Bonavides, com a Revolução, “a burguesia, classe dominada a princípio e, em seguida, classe dominante, formulou os princípios filosóficos de sua revolta social”.[19]

Neste aspecto, muito pertinente é a observação de Huberman:

[…] foi essa classe média, a burguesia, que provocou a Revolução Francesa, e que mais lucrou com ela. A burguesia provocou a Revolução porque tinha de fazê-lo. Se não derrubasse seus opressores, teria sido por eles esmagada. (…) Não desejando ser asfixiada até morrer penosamente, a classe média burguesa que surgia tratou de fazer com que a casca (toda a sociedade feudal decadente e corrupta) fosse rompida.[20]

Com efeito, como observa Hobsbawm, “entre todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas ideias de fato o revolucionaram”, tendo sido, diferentemente de todos os outros marcos revolucionários – e na visão do historiador egípcio –, um acontecimento histórico único, ocasionando, inclusive, outros movimentos revolucionários “que levaram à libertação da América Latina depois de 1808”, tendo fornecido “o padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes”. Este autor faz questão de ressalvar que, com isso, não estava

[…] subestimando a influência da Revolução Americana, pois, sem dúvida, ela ajudou a estimular a Revolução Francesa, e, em um sentido mais estreito, forneceu modelos constitucionais – competindo e às vezes se alternando com a Revolução Francesa – para vários Estados latino-americanos e inspiração para movimentos democrático-radicais de tempos em tempos.[21]

Aliás, a propósito, a Revolução Americana foi influenciada por muitos autores do iluminismo, especialmente John Locke, para quem

[…] a maioria tem o direito de fazer valer seu ponto de vista e, quando o Estado não cumpre seus objetivos e não assegura aos cidadãos a possibilidade de defender seus direitos naturais, os cidadãos podem e devem fazer uma revolução para depô-lo.[22]

Voltando à França, ressalta-se que, em que pese a genuína formulação teórica e prática (revolucionária), os burgueses franceses, subindo ao Poder, já não mais se interessaram “em manter na prática a universalidade daqueles princípios, como apanágio de todos os homens”, sustentando-os apenas formalmente, “uma vez que no plano de aplicação política eles se conservam, de fato, princípios constitutivos de uma ideologia de classe”.[23]

Afinal, a ambição (a auri sacra fames), como dizia Weber, “é tão velha quanto a história da humanidade que conhecemos”. Segundo Weber:

A ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas de ação econômica.[24]

Assim, “o fabricante que insistir em transgredir essas normas é indefectivelmente eliminado, do mesmo modo que o operário que a elas não possa ou não queira se adaptar é posto no olho da rua como desempregado”.[25]

Aliás, os propósitos iniciais da Revolução Francesa, iluministas e libertários por excelência, foram, ao longo da Revolução, paulatinamente esquecidos, numa batalha fratricida, culminando no período de terror que manchou, indelevelmente, e para sempre, a memória dos protagonistas daquela história. Os ideais revolucionários e iluministas foram, finalmente, derrotados por um “país faminto e anárquico, afligido pela discórdia civil e pela guerra com potências estrangeiras”.[26]

Sobre o Estado de Direito Liberal, correta é a observação de Miguel Calmon Dantas, segundo a qual se trata da

[…] institucionalização de um Estado que não almeja a intervenção sistemática na ordem econômica, abstendo-se da formulação de políticas econômicas que deveriam resultar de um planejamento voltado ao direcionamento da economia para o atendimento de determinadas finalidades.[27]

Para o jurista baiano:

O Estado Liberal propiciou a incorporação e exaltação dos princípios basilares que eram necessários para a institucionalização do sistema econômico capitalista, consistentes na liberdade econômica, na livre concorrência e na propriedade privada dos bens de produção.[28]

Do ponto de vista estritamente constitucional, como bem observa Miguel Calmon Dantas, no Estado de Direito Liberal “não havia uma constituição econômica expressa, abstendo-se o Estado de regular e dirigir as relações travadas no sistema econômico”.[29]

Quanto aos seus objetivos mais proeminentes, destacam-se aqueles com caráter externo

[…] à sociedade civil e ao mercado, não cabendo ao Estado neles intervir, notadamente no mercado, mas apenas garantir as condições externas para que os agentes econômicos se desenvolvessem amplamente segundo suas próprias forças e os princípios regulativos que lhe são inerentes. [De uma tal maneira que] ao Estado caberia a segurança contra fatores externos, mantendo a unidade e a soberania da nação, como também diante de fatores internos de desagregação, resguardando a propriedade e as liberdades pela proteção da esfera privada mediante o poder de polícia e a ordem pública.[30]

Aqui, imprescindível citar a obra do escocês Adam Smith, considerado o principal teórico do liberalismo econômico clássico, e um dos pensadores mais importantes da história contemporânea. Sua obra, para além da economia, influenciou diretamente outras áreas do conhecimento, tais como a ética, a educação, a sociologia e a ciência política.[31] Além de Smith, faz-se referência a pensadores liberais importantes como Hayek, Popper, Friedman e tantos outros filósofos e economistas, especialmente aqueles que, em 1947, fundaram a Mont Pélerin Society, organização internacional ícone do liberalismo clássico.[32]

Pois bem.

A “Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos”, promulgada em 5 de fevereiro de 1917, pode ser considerada um dos marcos legais que caracterizam a transição, ao menos do ponto de vista constitucional, do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social.

Com efeito, segundo anota Comparato, a sua “fonte ideológica foi a doutrina anarcossindicalista, que se difundiu no último quartel do século XIX em toda a Europa, mas principalmente na Rússia, na Espanha e na Itália”, espacialmente a partir do pensamento de Mikhail Bakunin.[33] Como se sabe, o russo Bakunin foi, certamente, o principal teórico da doutrina anarquista, sendo um dos fundadores da tradição social anarquista. Bakunin

[…] muito influenciou Ricardo Flore Magón, líder do grupo Regeneración, que reunia jovens intelectuais contrários a ditadura de Porfírio Diaz. O grupo lançou clandestinamente, em 1906, um manifesto de ampla repercussão, no qual se apresentaram as propostas que viriam a ser as linhas-mestras do texto constitucional de 1917: proibição de reeleição do Presidente da República (Porfirio Diaz havia governado mediante reeleições sucessivas, de 1876 a 1911), garantias para as liberdades individuais e políticas (sistematicamente negadas a todos os opositores do presidente-ditador), quebra do poderio da Igreja Católica, expansão do sistema de educação pública, reforma agrária e proteção do trabalho assalariado.[34]

Nada obstante a legitimidade e o espírito revolucionário do ideário mexicano, é certo que este novo constitucionalismo (de feição dirigente e programática) “produziu um efeito político exatamente contrário ao objetivo visado”, criando-se uma

[…] sólida estrutura estatal, independente da figura do chefe de Estado, ainda que a Constituição o tenha dotado de poderes incomensuravelmente maiores do que o texto constitucional norte-americano atribuiu ao presidente da república. [Assim], o ideário anarquista de destruição de todos os centros de poder engendrou contraditoriamente, a partir da fundação do Partido Revolucionário Institucional em 1929, uma estrutura monocrática nacional em substituição à multiplicidade de caudilhos locais. A Carta Política mexicana de 1917 foi a primeira a atribuir aos direitos trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais, juntamente com as liberdades individuais e os direitos políticos (arts. 5º e 123).[35]

Obviamente que este fato não pode fazer tabula rasa desse importante precedente histórico, “pois na Europa a consciência de que os direitos humanos têm também uma dimensão social só veio a se firmar após a grande guerra de 1914-1918, que encerrou de fato o ´longo século XIX”.[36]

Efetivamente, agora na Europa, a Constituição de Weimar, em 1919,

[…] trilhou a mesma via da Carta mexicana, e todas as convenções aprovadas pela então recém-criada Organização Internacional do Trabalho, na Conferência de Washington do mesmo ano de 1919, regularam matérias que já constavam da Constituição mexicana: a limitação da jornada de trabalho, o desemprego, a proteção da maternidade, a idade mínima de admissão nos trabalhos industriais e o trabalho noturno dos menores na indústria.[37]

Importante salientar, outrossim, que:

Entre a Constituição mexicana e a Weimarer Verfassung, eclode a Revolução Russa, um acontecimento decisivo na evolução da humanidade do século XX. O III Congresso Pan-Russo dos Sovietes, de Deputados Operários, Soldados e Camponeses, reunido em Moscou, adotou em 4 (17) de janeiro de 1918, portanto antes do término da 1ª Guerra Mundial, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado. Nesse documento são afirmadas e levadas às suas consequências, agora com apoio da doutrina marxista, várias medidas constantes da Constituição mexicana, tanto no campo socioeconômico quanto no político.[38]

A transição do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social, nada obstante fincar origens anteriormente (como se viu), sem dúvidas teve seu marco legal estabelecido a partir de 1930, quando a Alemanha

[…] sofreu uma crise econômica e social acentuada, dando ensejo à progressiva concentração de poder e ao aprofundamento do positivismo jurídico formalista, reduzindo-se o Estado de Direito Liberal a um mero sentido técnico, dando azo ao surgimento do regime que se manteve até fins da Segunda Guerra Mundial, cujas atrocidades discrepam profundamente do quanto constitucionalmente estabelecida e que defluía da solidariedade, da dignidade, da igualdade material e, finalmente, do próprio sentido republicano.[39]

Por fim, fazemos referência também à expressão francesa laissez-faire, laissez-passer, como significante mais adequado – digamos assim – para o liberalismo econômico, segundo o qual o mercado deve funcionar livrementesem interferência estatal, apenas confiando na “mão invisível” de que falara Adam Smith. Evidentemente, hoje, tal expressão não serve mais para caracterizar plenamente o liberalismo, pois outros conteúdos “tomaram maior consistência, como a indissolúvel relação entre Liberalismo e democracia ou a redescoberta da função da religião como antídoto contra o materialismo da sociedade opulenta”.[40]

3 O ESTADO DE DIREITO SOCIAL 

Com o constitucionalismo do século XIX começa a se delinear as primeiras ideias e as concepções iniciais de um novo modelo de Estado, com a promulgação de constituições “cada vez mais exigentes de conteúdo destinado a fazer valer objetivamente as liberdades concretas e dignificadoras da personalidade humana”.[41]

O Estado de Direito Social caracteriza-se pela concepção da chamada Questão Social, que se revela “como uma decorrência estrutural do sistema econômico capitalista, fundando na economia de livre mercado, dirigida pelo poder econômico, governado pelo lucro e pela acumulação de capital”, e não apenas, como poderia parecer a princípio, numa visão mais simplista, “por um conjunto de problemas sociais que são coetâneos e próprios de determinadas épocas”, tratando-se

[…] de um problema relativo às próprias estruturas das relações sociais, derivadas da adoção do sistema econômico capitalista, exprimindo ainda uma auto representação da coletividade como sociedade, em que os vínculos sociais são frouxos e efêmeros, governados os indivíduos pelos intentos egoísticos próprios do individualismo.[42]

Na economia, prevalecem as ideias do economista britânico John Maynard Keynes que, definitivamente, foi um dos pensadores mais importantes para a formulação de uma teoria e prática da macroeconomia moderna que, sistematizadas (as ideias), deram origem à escola de pensamento conhecida como keynesianismo, adotadas pelas principais potências econômicas do Ocidente, no período do pós-guerra.

Também é de se salientar o Princípio da Solidariedade, que possui

[…] um conteúdo jurídico que embasa a noção de comprometimento comunitário apenas pelo fato natural de pertencimento à determinada comunidade, impositivo do vínculo jurídico de partilhar e participar de fins e interesses de todos sem o desejo de contraprestação ou benefício específico em caráter de retribuição ou contraprestação, [não se reduzindo] à inspiração apenas e tão-somente dos direitos fundamentais de terceira dimensão, os coletivos e os difusos, possuindo.[43]

Este princípio busca estabelecer as bases teóricas (e também pragmáticas) de uma sociedade verdadeiramente justa, onde se permita, conforme Piketty, ao conjunto de seus membros ter acesso aos bens fundamentais da forma mais extensa possível, tais como a educação e a saúde, além de permitir a participação mais completa do cidadão nos mais diversos âmbitos da vida social, cultural, econômica, cívica e política, não significando necessariamente, como admite o economista francês, que uma sociedade justa seja absolutamente uniforme e igualitária.[44]

Sob o aspecto constitucional, no Estado de Direito Social prevalecem as

[…] constituições econômicas de feição dirigente por força das normas programáticas que lhe são comuns. Disso se verifica que o constitucionalismo social instituidor do Estado Social como expressão do consenso tácito proveniente de uma comunidade acerca da responsabilidade pela promoção de determinado estado pertinente à superação da Questão Social e à integração entre capital e trabalho encerra um caráter utópico, que o habilita não apenas a uma crítica do statos quo, mas a promover a transformação das estruturas sociais subjacentes, projetando as utopias na crítica do status quo, como ocorrido anteriormente durante o jusnaturalismo.[45]

Importante destacar, ainda que en passant, o conjunto de programas implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana, além de auxiliar os prejudicados pela Grande Depressão. Deu-se a esta série de medidas econômicas e sociais o nome New Deal, inspirado em Square Deal, nome dado por Theodore Roosevelt à sua política econômica.

Conforme Miguel Dantas:

O New Deal se fundava na compreensão de que, mesmo aquelas vozes insubordinadas em face da intervenção do Estado, dela dependiam substancialmente. Assim, o problema do laissez-faire não é ser injusto para os pobres, mas ser uma inadequada descrição de qualquer sistema liberal, inclusive do livre mercado, eis que tanto o mercado quanto a riqueza dependem do governo. Para ensejar a construção do Welfare State seria imprescindível, além de uma nova concepção acerca dos direitos, que demonstrasse a insuficiência do common law como sua fonte e que denotasse a necessidade tanto das liberdades como dos novos direitos sociais dependerem da ação estatal, uma reestrurturação da relação entre o governo federal e os Estados, como também a inserção de vários atores no processo de intervenção do Estado, com a ampliação das suas funções.[46]

Também importante fazer referência ao Plano Marshall, elaborado pelo democrata Truman, nos Estados Unidos, no pós-guerra (1947), além do Troubled Asset Relief Program, aprovado pelo Congresso americano, após a bolha imobiliária que assolou a economia americana, em 2008, época na qual o parlamento norte-americano era controlado pelo Partido Democrata.[47]

Por fim, do ponto de vista democrático, destaca-se que no Estado de Direito Social deve prevalecer a ideia de uma democracia participativa (mais do que a democracia semidireta), significando uma nova gramática de organização da sociedade e da relação entre o Estado e a sociedade. Trata-se de uma visão não hegemônica da democracia – nos termos do pensamento de Boaventura de Souza Santos -, representando uma verdadeira e legítima forma de romper (positivamente) com tradições estabelecidas pelas visões hegemônicas sobre a democracia, estabelecendo-se novas determinações, novas normas e novas leis no sistema político, jurídico e econômico de uma nação.[48]

Neste sentido, Boaventura critica inclusive a posição de Habermas – segundo a qual “a esfera pública seria um espaço no qual indivíduos (mulheres, negros, trabalhadores, minorias raciais) podem problematizar em público uma condição de desigualdade na esfera privada” -, afirmando que o pensamento harbemasiano “tende a se concentrar em uma proposta de democracia para certos grupos sociais e para os países do Norte”.[49]

Numa democracia efetivamente participativa, concebe-se os movimentos sociais como forma de transformação de práticas dominantes, pelo aumento da cidadania e pela inserção na política de atores sociais excluídos, inclusive e principalmente como uma forma de libertação do colonialismo (como ocorreu na Índia, em Moçambique e na África do Sul), ou mesmo como um ideal de democratização (exemplos de Brasil, Portugal e Colômbia).

O jurista português cita expressamente, no caso brasileiro, os arts. 14, III e 29, XII e XIII, ambos da Constituição da República, além das experiências com o estabelecimento do orçamento participativo em Porto Alegre e Belo Horizonte.

Para Boaventura de Souza Santos, a democracia representativa possui algumas características marcantes que levam ao fortalecimento de uma visão eurocêntrica e hegemônica da própria ideia democrática; neste sentido, segundo ele, seria uma forma de privatização do bem público por elites mais ou menos restritas, além de estabelecer uma distância crescente entre representantes e representados, priorizar a acumulação de capital em relação à redistribuição social e limitar a participação cidadã para não “sobrecarregar” o regime democrático com demandas sociais (“sobrecarga democrática”).

Então, ele aponta o que seria “a crise da dupla patologia, a patologia da participação (tendo em vista o aumento dramático do abstencionismo) e a patologia da representação, em razão dos cidadãos considerarem-se cada vez menos representados por aqueles que elegeram”.[50]

Assim, para a superação desta crise democrática, impõe-se a possibilidade da participação ampliada de atores sociais de diversos tipos no processo de tomada de decisões,

[…] protagonizada por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, mobilizados pela aspiração de contratos sociais mais inclusivos e de democracia de mais alta intensidade, tratando-se de iniciativas locais, em contextos rurais ou urbanos, em diferentes partes do mundo, que vão desenvolvendo vínculos de interconhecimento e de alteração com iniciativas paralelas.[51]

O jurista português, nada obstante, aponta o que ele chama de vulnerabilidades e ambiguidades da democracia participativa, que é o perigo da cooptação ou a integração pelas elites metropolitanas, citando, então, para exemplificar, o caso brasileiro:

O ativismo social dos empresários brasileiros contra a exclusão social mostra como o ideal da participação da sociedade civil pode ser cooptado por setores hegemônicos para cavalgar o desmonte das políticas públicas, sem o criticar, e, pelo contrário, aproveitando-o para realizar uma operação de ´marketing social`.[52]

Para a implementação efetiva e gradual da democracia participativa, aponta-se três teses, a saber:

  1. Fortalecimento da demodiversidade, com a coexistência pacífica ou conflituosa de diferentes modelos e práticas democráticas. Para ele:

Se a democracia tem um valor intrínseco e não é uma mera utilidade instrumental, esse valor não pode mais se assumir como universal. A modernidade ocidental pode coexistir com outras em um mundo que agora se reconhece como multicultural, não podendo reivindicar a universalidade dos seus valores.[53]

Para isso, é necessário que o sistema político abra mão de prerrogativas de decisão em favor de instâncias participativas, devendo existir uma combinação entre democracia participativa e democracia representativa, seja pela coexistência, seja pela complementaridade;

  1. Fortalecimento da articulação contra-hegemônica entre o local e o global, pois

[…] experiências alternativas bem-sucedidas precisam ser expandidas para que se apresentem como alternativas ao modelo hegemônico, sendo fundamental para o fortalecimento da democracia participativa, a passagem do contra-hegemônico do plano local para o global.[54]

  1. Ampliação do experimentalismo democrático, a partir de “novas gramáticas sociais” (histórica, social e cultural).[55]

4 CONCLUSÃO 

Quando este texto foi escrito o mundo ainda não sabia (como ainda não sabe) quando vai acabar a pandemia e, no Brasil, segundo a comunidade científica, talvez nem sequer se atingira o pico da doença, e o nosso país já registrava mais de 70.000 mortes pelo coronavírus. Vê-se, não com entusiasmo, mas com um triste olhar de confirmação – como agora os homens (neoliberais) do mercado agitam-se e imploram ajuda ao Estado, esquecendo-se de se socorrerem da “mão invisível”, de Smith.[56]

Dessa vez – como, aliás, deu-se em outras crises – o liberalismo econômico fracassou na sua missão de (livremente) regular o mercado e as relações socioeconômicas, dando-se como se fosse um pedido de socorro do Estado Liberal ao Estado Social. Aliás, foi exatamente assim que ocorreu, como já vimos outrora, especialmente nas crises de 1929, 1947 e 2008, para se referir apenas às catástrofes mais conhecidas e mais citadas na literatura contemporânea.

Hoje, como se vê mais uma vez, o mercado está nu!, tal como o rei só visto pela criança de Andersen, surgida de súbito dentre os súditos enquanto o tolo do rei desfilava sem roupas.[57] Nada obstante, receia-se que o mercado, ainda que saiba que a criança tem sempre razão e olhos só dela, continue exibindo-se desavergonhadamente como aquele mesmo rei da história, e mais indiferente do que nunca. Afinal, urge que continue o desfile, ainda que à custa da miséria e de milhões de vidas humanas.

É preciso aprender com os fatos históricos do passado, afinal,  […] hoje os fragmentos do passado humano reunidos em nossa mente e em nossos livros pelo trabalho de muitas gerações, começam, aos poucos, a se encaixar num quadro consistente da história e do universo humano em geral, [afinal] o presente ilumina a compreensão do passado e a imersão neste ilumina o presente.[58]

Não podem ser esquecidos aqueles fatos pretéritos, até para que, aprendendo com eles, não sejam repetidos os erros do passado, afinal “fazer história significa construir pontes entre o passado e o presente, observando ambas as margens e agindo nas duas”.[59]

De toda maneira, esperemos que esta tragédia represente, como diria Canotilho (ainda que em outro contexto, obviamente), uma viragem histórica para a humanidade, e que não continuemos a ser “apenas mais um tijolo na parede”[60], tampouco aguardemos os últimos instantes para lembrarmos do nosso Rosebud, aquele velho trenó que Kane recordou momentos antes de morrer, e que lhe proporcionara, talvez, a sua única fase verdadeiramente feliz em toda a vida.[61]

Esta crise mostra-nos como “no mundo muita coisa ainda está inconclusa”. E, exatamente por isso, é preciso “velejar em sonhos, sonhos diurnos, muitas vezes do tipo totalmente sem base na realidade”. Essa capacidade própria de nós, seres humanos, homens e mulheres, é que nos faz termos – e só a nós – a extraordinária capacidade de “fabular desejos e entrar em efervescência utópica, movendo-se os sonhos”.[62]

E, afinal, a casa (para quem a tem), presos como estamos nela, não deixa de ser um exílio (como uma categoria metafísica) e, “se há algo de bom no exílio, é o fato de ensinar a humildade, lição suprema dessa virtude”.[63]

Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

REFERÊNCIAS

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[1] Artigo originariamente publicado na Revista Jurídica da Escola Judiciária Eleitoral da Bahia – Revista Populus –, nº. 09 (dezembro de 2020), ISSN 2446-9319 (meio físico) e ISSN 2675-195X (meio eletrônico).

[2] Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS. Estudante de Jornalismo (UNIFACS) e Mestrando em Direito (UNIFACS). Especialista em Processo (UNIFACS) e pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca.

[3] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972, p. 2.

[4] BONAVIDES, Paulo. Obra citada, p. 3.

[5] MILL, Stuart. Ensaio Sobre a Liberdade. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 109.

[6] BONAVIDES, Paulo. Obra citada, p. 3.

[7] SCRUTON, Roger. O que é conservadorismo. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 302.

[8] BONAVIDES, Paulo. Idem.

[9] LECLERCQ, Jacques. Do Direito Natural à Sociologia. São Paulo: Duas Cidades, p. 27.

[10] DIDEROT, Denis e D´ALEMBERT, Jean le Rond. Enciclopédia ou Dicionário Razoado das Ciências, das Artes e dos Ofícios. São Paulo: Editora UNESP, 2015, p. 217 (volume 4).

[11] LECLERCQ, Jacques. Do Direito Natural à Sociologia. São Paulo: Duas Cidades, p. 31.

Leia também:  A Lava Jato e a (falta de) transparência, por Tânia Maria de Oliveira

[12] PEIXOTO, Geovane. Direitos Fundamentais, Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Salvador: Editora JusPODIVM, 2013, p. 214.

[13] BOBBIO, Norbeto. O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito. São Paulo, Ícone, 1995, p. 22. Aqui, Bobbio estabelece seis critérios distintivos entre o direito natural e o direito positivo, a saber: a) universalidade/particularidade, isto é, enquanto o direito natural vale em toda parte, o direito positivo fica circunscrito; b) imutabilidade/mutabilidade: o direito natural é imutável e o direito positivo é mutável; c) natura/potestas populas: o direito natural vem da natureza e direito positivo da construção do povo; d) ratio/voluntas: o direito natural decorre da razão e o direito positivo da vontade do legislador; e) comportamentos regulados por um e por outro, pois, no direito natural os comportamentos podem ser bons e maus em si mesmos, ao passo que no direito positivo são indiferentes em si mesmo, mas, quando regulados, conservam a obrigatoriedade; por fim, o critério bom/útil: o direito natural estabelece aquilo que é bom e o direito positivo aquilo que é útil.

[14] Na famosa tragédia, Antígona, a filha de Édipo, irmã de Polinices e de Etéocles, todos filhos e filhas do casamento incestuoso de Édipo com Jocasta, vê-se diante de um dilema que, no fundo, é da humanidade: obedecer as ordens dos homens (Estado) ou dos deuses? Antígona desafia Creonte, o rei: “Enterro meu irmão. Farei a minha parte. Poderão me matar, mas não dizer que eu o traí. Eu vou enterrar o nosso irmão. E me parece bela a possibilidade de morrer por isso. Devo respeitar mais os mortos do que os vivos, pois é com eles que vou morar mais tempo. Não é por não ter medo que tomo esta atitude. A minha loucura e a minha imprudência velam a honra de um morto querido. Arriscando-me por ele não corro o risco de uma morte inglória. A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos: ninguém sabe quando apareceram. Não, eu não iria arriscar o castigo dos deuses para satisfazer o orgulho de um pobre rei”. (SÓFOCLES. Édipo Rei. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015).

[15] Na verdade, tanto no ciclo de tragédias de Sófocles, quanto na mitologia que lhe deu origem, Creonte é tio de Antígona, e não seu irmão.

[16] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 141.

[17] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Idem.

[18] DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo – Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016, pp. 34-321.

[19] BONAVIDES, Paulo. Obra citada, p. 5.

[20] HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 159.

[21] HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: 1789 – 1848. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 100.

[22] KARNAL, Leandro… (et al.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2011, p. 81.

[23] BONAVIDES, Paulo. Obra citada, p. 5.

[24] WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 47, 48 e 50.

[25] WEBER, Max. Idem.

[26] SCURR, Ruth. Pureza Fatal – Robespierre e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009, p. 281. “Com a mente macabra e infestada de campos de batalha, o coração furioso de mágoa, os olhos enlouquecidos pelos parisienses famintos, revoltados e destituídos, e os ouvidos zunindo com os relatos da revolta monarquista e católica nas províncias, Danton fez algo pelo que, um ano mais tarde, pediria perdão aos pés da guilhotina. Ele persuadiu a Convenção a reinstaurar o Tribunal Revolucionário (que havia sido já dissolvido no início do julgamento do rei), com poderes extraordinários de condenar pessoas à morte, sendo apoiado integralmente por Robespierre, que ainda propôs que a pena de morte fosse aplicada a todo tipo de ato contrarrevolucionário. Após um longo debate, o projeto quase havia sido descartado quando, próximo da meia-noite, Danton subiu apressadamente à tribuna e, sob a luz de velas, de forma nefasta, avisou aos colegas exaustos que não restava mais qualquer alternativa ao Tribunal, exceto um banho de sangue nas ruas”. O que ele não imaginara, certamente, é que, doze meses depois, ele mesmo seria a vítima do tribunal de exceção. Antes de ser executado na guilhotina, disse: “Há doze meses propus esse Tribunal infame, por meio do qual morremos e pelo qual imploro pelo perdão de Deus e dos homens”. (p. 281).

[27] DANTAS, Miguel Calmon. Constitucionalismo Dirigente e Pós-Modernidade. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 145-146.

[28] DANTAS, Miguel Calmon. Idem.

[29] DANTAS, Miguel Calmon. Obra citada, p. 149.

[30] DANTAS, Miguel Calmon. Idem.

[31] O seu livro A Riqueza das Nações é apontado por muitos como o marco teórico do liberalismo econômico e da economia de mercado. Nele encontra-se formulado um conjunto de novos conceitos e ideias que transformariam radicalmente o pensamento sobre a economia política.

[32] “Após a Segunda Guerra Mundial, em 1947, quando muitos dos valores da civilização ocidental estavam ameaçados, 36 acadêmicos, principalmente economistas, com alguns historiadores e filósofos, foram convidados pelo professor Friedrich Hayek a se reunir em Mont Pelerin, perto de Montreux, na Suíça. O estado e o possível destino do liberalismo (no seu sentido clássico) no pensamento e na prática. O grupo se descreveu como a Sociedade Mont Pelerin, após o local da primeira reunião. Enfatizou que não pretendia criar uma ortodoxia, formar-se ou alinhar-se com nenhum partido ou partidos políticos, ou conduzir propaganda. Seu único objetivo era facilitar o intercâmbio de ideias entre estudiosos com ideias semelhantes, na esperança de fortalecer os princípios e práticas de uma sociedade livre e estudar o funcionamento, virtudes e defeitos dos sistemas econômicos orientados para o mercado. Os membros, que incluem altos funcionários do governo, ganhadores do Prêmio Nobel, jornalistas, especialistas em economia e finanças e juristas de todo o mundo, se reúnem regularmente para apresentar a análise mais atual de ideias, tendências e eventos”. SOCIETY, The Mont Pèlerin. Disponível em: https://www.montpelerin.org/Acesso em 09 de julho de 2020.

[33] COMPARATO, Fábio Konder. A Constituição Mexicana de 1917. Disponível em http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/mex1917.htm. Acesso em 09 de julho de 2020.

[34] COMPARATO, Fábio Konder. Idem.

[35] COMPARATO, Fábio Konder. Idem.

[36] COMPARATO, Fábio Konder. Idem.

[37] COMPARATO, Fábio Konder. Idem.

[38] COMPARATO, Fábio Konder. Idem.

[39] DANTAS, Miguel Calmon. Obra citada, p. 214.

[40] BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1997, p. 688.

[41] BONAVIDES, Paulo. Obra citada, p. 7.

[42] DANTAS, Miguel Calmon. Obra citada, p. 179.

[43] DANTAS, Miguel Calmon. Obra citada, p. 185. Sobre o conceito de Direitos sociais, indispensável a leitura de Luigi Ferrajoli, Principia Iuris: Teoria del Diritto e Della Democrazia. Roma: Editori Laterza, 2007 (especialmente a partir da p. 742 do primeiro volume: Teoria del Diritto).

[44] PIKETTY, Thomas. Capital i Ideologia. Barcelona: Edicions 62, 2019, p. 1131 (tradução livre).

[45] DANTAS, Miguel Calmon. Obra citada, pp. 149 – 187.

[46] DANTAS, Miguel Calmon. Obra citada, p. 217.

[47] Este “Programa de Alívio de Ativo Problemático” previa a liberação de 700 bilhões de dólares em ajuda para os bancos. No seu anúncio, em 24 de setembro de 2008, disse o republicano George W. Bush: “Eu acredito muito na livre iniciativa, por isso o meu instinto natural é se opor a intervenção do governo. Eu acredito que as empresas que tomam más decisões devem sair do mercado. Em circunstâncias normais, eu teria seguido esse curso. Mas estas não são circunstâncias normais. O mercado não está funcionando corretamente. Houve uma perda generalizada de confiança, e grandes setores do sistema financeiro da América estão em risco”. (FREITAS, Bruno Alexandre. Crise Financeira de 2008: você sabe o que aconteceu?. 2020. Disponível em: https://www.politize.com.br/crise-financeira-de-2008/. Acesso em 09 de julho de 2020).

[48] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 51.

[49] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Obra citada, p 52.

[50] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Obra citada. p. 42.

[51] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Idem, p. 26.

[52] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Idem, p. 64.

[53] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Idem.

[54] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Idem.

[55] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Idem, pp. 77-78.

[56] Veja, por exemplo, o que disse o presidente de uma grande empresa aérea: “Sem ajuda governamental a indústria não sobrevive. A depender de quanto tempo durar a crise, com demanda inexistente, as empresas chegarão em situação de insolvência absoluta. E aí vai precisar uma ajuda mais contundente. As empresas precisam ter acesso a crédito. E ele terá de vir de fundos públicos.” UOL Economia. São Paulo, 2020. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/22/setor-aereo-nao-sobrevive-sem-ajuda-do-governo-diz-presidente-da-latam.htm?fbclid=IwAR22At3khdy–bdgXHf7au2J0Y4thhfswEeHBGp4YySUburrjNCBKg4Q9wY. Acesso em 26 de abril de 2020.

[57] ANDERSEN, Hans Christian. A roupa nova do Rei. Conto de 1837.

[58] ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 263 (volume 2).

[59] SCHLINK, Bernhard. O Leitor. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 198. Nesse romance, que trata muito bem as questões da culpa e da vergonha (adaptado para o cinema por Stephen Daldry, em 2008), Michael Berg, um jovem advogado, muito interessado no direito durante a época do Terceiro Reich, chega a uma conclusão a que também cheguei, há anos: “Era uma felicidade para mim ver como os artigos do código penal foram produzidos como guardiões solenes da boa ordem, transformando-as em leis que se esforçavam por ser belas e, com sua beleza, dar provas de sua verdade. Durante muito tempo acreditei que há um progresso na história do direito, apesar de terríveis retrocessos e passos para trás, um desenvolvimento em direção à maior beleza e à verdade, à racionalidade e à humanidade. Desde que me ficou claro o fato de tal crença ser uma quimera, trabalho com uma outra imagem do percurso da história do direito. Nessa imagem, o percurso ainda se orienta para uma meta, mas a meta de que se aproxima, após diversos abalos, desorientações e fanatismos, é o seu próprio ponto de partida, de onde, assim que o alcança, precisa partir novamente”. E pergunta, então, lembrando-se de Homero: “Ulisses não retorna para ficar, e sim para partir novamente. A Odisseia é a história de um movimento ao mesmo tempo em direção a uma meta e sem meta nenhuma, bem-sucedido e em vão. Em que a história do direito é diferente disso?”.

[60] WATERS, Roger, “Another Brick In The Wall, Pt. 2”.

[61] ORSON, Welles, “Citizen Kane” (1941).

[62] BLOCH, Ernst. O Princípio da Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 194.

[63] BRODSKY, Joseph. Sobre o Exílio. Belo Horizonte: Âyiné, 2016, p. 21.