“Eu vejo o que você não vê”[1]
Lembro-me que uma vez, há aproximadamente um ano e meio, durante o período de eleições para o cargo de Procurador-geral de Justiça, um dos candidatos foi até a sede das promotorias de justiça da cidade onde trabalho, para apresentar as propostas de sua campanha e, é claro, obter alguns votos que pudessem leva-lo até a lista tríplice, a ser posteriormente encaminhada ao governador do estado. Como naquele dia eu não vestia terno, nem gravata, ele me disse mais ou menos as seguintes palavras, ao me cumprimentar: “quando olhamos para você, pensamos que é um estagiário. Ninguém diria que você parece um promotor”.
A conversa deve ter se estendido por quase uma hora; apesar de alguns palavrões, o candidato procurou ser objetivo, apresentou suas propostas e, finalmente, despediu-se, pedindo um voto de confiança, pois faria uma boa administração à frente da instituição, caso fosse escolhido. Todavia, por opção da maioria dos promotores da carreira, ele não obteve o número suficiente de votos para compor a lista tríplice.
O fato de um “colega” não parecer aos olhos do candidato um profissional de sua classe põe em destaque o quanto a imagem de uma pessoa importa no mundo em que vivemos. Sem dúvida, para o exercício de certas profissões, a aparência é algo realmente muito importante, e quase ninguém negaria que, para os profissionais do direito, ela chega a ter uma importância ainda maior. Se quiséssemos demonstrar esta importância, não precisaríamos ir muito longe, a ponto de citar as sessões do Supremo Tribunal Federal (STF) transmitidas pela televisão. Na verdade, bastaria a qualquer um entrar em uma audiência que acontece diante do juiz de sua própria cidade, ou mais especificamente em uma sessão do Tribunal do Júri, para perceber que a imagem e sobretudo as roupas importam muito para os profissionais do direito.
A grande questão é que entre o direito e a importância da imagem há uma relação histórica já antiga. Em um livro organizado por Costas Douzinas e Lynda Nead[1], por exemplo, os autores destacam logo na introdução que as imagens provocam importantes efeitos sobre os indivíduos e que, como consequência, o legislador não pode se manter indiferente a elas. É do interesse das leis, assim, desenvolver uma política de vigilância das imagens, promovendo e detendo, respectivamente, seus efeitos positivos e negativos.
De forma bem semelhante às igrejas, que a partir de um determinado momento da história passaram a banir certas imagens, cuja contemplação tornou-se uma espécie de idolatria, também o direito, ao longo dos séculos, manteve com as imagens uma relação ambígua, ora promovendo-as, ora reprimindo-as. Tal ambiguidade dava-se sobretudo em relação às imagens veiculadas por obras de arte: quem nunca ouviu falar, por exemplo, que Hitler, apesar de seu pouco talento, detinha o poder de diferenciar na Alemanha das décadas de 1930/40, inclusive por meio de leis, aquilo que arbitrariamente era considerado uma arte alemã pura de uma arte degenerada?[2]
A verdade é que tanto a religião quanto o direito sempre exerceram uma espécie de poder de polícia sobre as imagens, proibindo, por um lado, aquelas que eram reconhecidas como potencialmente corrompidas ou até mesmo obscenas, e incentivando, por outro, aquelas que simbolizavam valores como autoridade, unidade, soberania etc. Vai daí, aliás, a importância de certos adornos como as vestimentas e as perucas dos magistrados – bastante comuns no início da idade contemporânea –, bem como da própria figura da Justiça, que, como dizia Martin Jay, apesar do sentido mais comum de demonstração de imparcialidade, que não enxerga distinção entre pessoas e classes, também representava a imagem da mulher cega, proibida de ver aquilo que não convinha ou pudesse, de alguma forma, ameaçar valores consagrados pela sociedade.
Como escreveu Pierre Legendre, as imagens atingem os aspectos biológicos, inconscientes e sociais da personalidade humana, envolvendo-a numa espécie de “dialética ocular”, que combina ao mesmo tempo verdade e ilusão, podendo reforçar os vínculos de submissão do indivíduo à lógica das instituições[3]. Talvez por isso não só as roupas importem para os profissionais do direito; demonstrações de sucesso e força, além de outras qualidades, são igualmente importantes. Já deixou de causar surpresa que alguns “colegas” se exibam em suas redes sociais, postando fotos de carros importados e vídeos de certas performances em tribunal do júri, no qual humilham réus obviamente pobres e praticamente indefesos pelo interior do país.
Todos estes fatos fazem com que eu me lembre dos cultos que, há alguns anos, quando ainda morava na cidade de São Paulo, frequentava na Comunidade Cristã Reformada, do pastor Ariovaldo Ramos, localizada na Vila Mariana. Em um de seus estudos sobre as bem-aventuranças, ele destacou a passagem bíblica do capítulo 5, versículo 8, do livro de Mateus, onde se lê: “Bem-aventurados os limpos de coração, pois verão a Deus”.
Uma das conclusões que o pastor Ariovaldo extraía dessa passagem referia-se ao momento em que Jesus era preso pelos soldados romanos. De acordo com ele, Jesus era uma pessoa muito comum, que se misturava no meio do povo e se confundia com as pessoas – tanto que os soldados romanos precisaram, ao fim, que alguém o traísse e o diferenciasse no meio da multidão com um beijo, pois, de outra forma, apesar de toda a tradição dos profetas do antigo testamento, seria impossível enxergar Jesus no meio do povo. Sem dúvida, não dava para esperar que os soldados a serviço do império romano fossem limpos de coração; e justamente por isso, era impossível que eles conseguissem identificar Jesus.
Porém, mais de dois mil anos depois, ainda estamos aqui, preocupados com as nossas aparências, com as nossas imagens, como se elas comunicassem às outras pessoas o sucesso de nossa carreira ou a legitimidade de nossa autoridade. Isso não nos impede apenas de ver aquilo que é divino no meio do povo; isso, na verdade, nos faz uma espécie de profissionais com a mentalidade de um soldado ou de um cabo, a serviço de algum império poderoso qualquer.
Por isso, apesar do visual mais brega de alguns, penso que a relação dos profissionais do direito e, em especial, a dos promotores de justiça com a imagem, além de uma questão estética, é na verdade uma questão de classe – e historicamente política.
Júlio Gonçalves Melo: Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Promotor de Justiça no Estado de Goiás. Membro do Coletivo Transforma MP.
[1] DOUZINAS, Costas; NEAD, Lynda. “Introduction”, in DOUZINAS, Costas; NEAD, Lynda (ed.) Law and the Image: The Authority of Art and the Aesthetics of Law. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1999, p. 1?15.
[2] Para uma pequena compreensão do conceito de arte degenerada na Alemanha nazista, com consequências inclusive no Brasil, conferir a impressionante história de Lasar Segall, em cujo nome há um interessante museu na cidade de São Paulo. Informações disponíveis em: http://www.mls.gov.br/exposicoes/temporarias/a-arte-degenerada-de-lasar-segall-perseguicao-a-arte-moderna-em-tempos-de-guerra-2/.
[3] LEGENDRE, Pierre. Introduction to the Theory of Image. Law and Critique 8, n. 1, 1997.