Somos o país com maior população negra fora do continente africano, atualmente 108,9 milhões de pessoas pretas e pardas, ou seja, 56,10% da população, segundo dados da PNAD/IBGE (2019). Foi o país que mais escravizou africanos.
“A resistência negra no Brasil é luta de classes e é luta pela vida”
Não há como falar de um outro mundo possível, sem entendermos que no Brasil as relações entre capital e trabalho estão forjadas na produção de riqueza através da expropriação do trabalho forçado, de forma violenta e cruel, de homens, mulheres e crianças, negros e negras, durante três séculos e meio, que tiveram apagada sua identidade de classe trabalhadora, contada apenas na perspectiva das lutas operárias no período industrial.
Autores que trazem perspectivas decoloniais em suas pesquisas têm analisado os processos de escravização nas Américas como fundantes do sistema capitalista, e, portanto, o racismo, como forma de dominação e estruturação das desigualdades nele produzidas, assim como o patriarcado, que sustenta esse modelo de relações de produção. Isso é dizer, sem a hierarquização racial e de gênero impostas no sistema econômico dominante, este não se sustenta.
Borges (2018) cita Achille Mbembe na entrevista “O racismo é o dínamo do capitalismo”, lembrando que, “no início do capitalismo, o tráfico atlântico do século 15 ao 19 provocou “pedrações” de toda espécie, desapossamento da autodeterminação de pessoas negras transformadas em homens objeto, homens-mercadoria e homens-moeda”. E aponta essa mudança violenta de corpos e subjetividades como “princípio ordenador do capitalismo que adota e aprofunda o paradigma de submissão, um modelo de exploração e depredação que se perde sob os lençóis do tempo”. Conclui, assim que ao analisarmos os papéis dos não brancos no mundo veremos a posição subalternizada de classe, que a raça lhes atribui na dinâmica de exploração do capital.
Caio Prado Júnior apud Lourenço (2005) já fazia a análise de ter sido o “empreendimento colonial” o que tornou possível a acumulação primitiva de capital pela burguesia europeia. Nessa ótica, a economia e a sociedade coloniais teriam sido desde sempre marcadas pelas relações capitalistas de produção.
Freitas (2017), a partir de reflexões em Anibal Quijano, afirma que trabalho, capital e capitalismo se articulam e combinam de modos variados, considerando a escravidão como uma de suas bases de sustentação: “É imperioso reconhecer a coexistência no mesmo espaço-tempo do trabalho assalariado, da escravidão, das relações de trabalho servil, da pequena produção de mercadoria ou de serviços, e de organizações mais igualitárias de trabalho, todas elas organizadas pelo capitalismo como fontes de produção de mais-valia.” E, vai além, fazendo uma análise racial na divisão do trabalho, entre centro e periferia: “No centro, a relação salarial, demográfica e estruturalmente dominante, é racialmente “branca”, enquanto na periferia, as diversas formas de trabalho são racialmente “negras” ou “mestiças”, e, em todas, a dimensão de gênero articula-se de modo diverso”.
Beatriz Nascimento, na década de 70, apontou o sexismo e racismo como determinantes das relações capitalistas de produção, mantendo a mulher negra na base da pirâmide social, em condições subalternas e precarizadas de trabalho: Numa sociedade como a nossa, onde a dinâmica do sistema econômico estabelece espaços na hierarquia de classes, existem alguns mecanismos para selecionar as pessoas que irão preencher estes espaços. O critério racial constitui-se num desses mecanismos de seleção, fazendo com que as pessoas negras sejam relegadas aos lugares mais baixos da hierarquia, através da discriminação. O efeito continuado da discriminação feita pelo branco tem também como consequência a internalização pelo grupo negro dos lugares inferiores que lhes são atribuídos. Assim, os negros ocupam aqueles lugares na hierarquia social, desobrigando-se de penetrar os espaços que estão designados para os grupos de cor mais clara. Dialeticamente perpetuando o processo de domínio social e privilégio racial.
Lélia Gonzalez, em inúmeros textos, agora compilados na coletânea “Por um feminismo afrolatinomericano” (2020) também apontou as relações de dominação interdependentes entre capitalismo, racismo e patriarcado, colocando as mulheres amefricanas – termo por ela cunhado – em condição de superexploração e tripla discriminação, a quem relegado o lugar de doméstica e “mulata”, este último da hipersexualização. Destaca-se “É importante insistir que, dentro da estrutura das profundas desigualdades raciais existentes no continente, a desigualdade sexual está bem articulada. Trata-se de uma dupla discriminação de mulheres não brancas na região: as amefricanas e as ameríndias. O caráter duplo de sua condição biológica – racial e/ou sexual – as torna mulheres mais oprimidas e exploradas em uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Precisamente porque esse sistema transforma diferenças em desigualdades, a discriminação que sofrem assume um caráter triplo, dada a sua posição de classe: as mulheres ameríndicas e amefricanas são, na maioria, parte do imenso proletariado afro-latino-americano”.
Ao entendermos que o capitalismo se alimenta do racismo e do sexismo, como sistemas de dominação, para naturalizar e perpetuar suas contradições e desigualdades na sociedade, conseguimos visualizar o combate ao racismo não como pauta identitária – expressão esta que reproduz a condição de “outro” atribuída pela branquitude ao sujeito racializado -, mas verdadeira luta de classes, central e estrutural para a construção de um modelo de sociedade livre, emancipatória, de igualdade e justiça social para todes. Nesse sentido, Boaventura Sousa Santos aponta que os conflitos estruturais do nosso tempo decorrem de três sistemas de dominação articulados: capitalismo, colonialismo e patriarcado (2019). E Sílvio Almeida alerta que para entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual (2020).
Somos o país com maior população negra fora do continente africano, atualmente 58,9 milhões de pessoas pretas e pardas, ou seja, 56,10% da população, segundo dados da PNAD/IBGE (2019). Foi o país que mais escravizou africanos. Segundo o historiador Laurentino Gomes, dos 12,5 milhões de pessoas que foram transportadas à força da África para as Américas, 4,9 milhões desembarcaram aqui, para serem escravizados principalmente nas plantações de cana-de-açúcar, café, nas minas e no trabalho doméstico. Segundo Schwarcz foi o último país do Ocidente a abolir o sistema de escravidão. Como sabemos, a Lei Áurea, num único artigo considerava os trabalhadores negros livres, sem, contudo, assegurar aos nossos antepassados direitos fundamentais ao trabalho digno, educação, moradia.
Hélio Santos, nos estudos sobre a formação da sociedade brasileira, afirma não ser possível falar de trabalho no Brasil sem que se faça um retrospecto histórico sobre o período de escravização negra no país. Analisar as relações de opressão no período escravista como fundadas no trabalho humano (escravizado) nos fará entender o desdobramento e impacto desse processo de luta por liberdade também como luta por trabalho digno, e, em decorrência, a produção e reprodução das desigualdades na formação de uma dita classe operária trabalhadora e a ausência de proteção legislativa de uma classe trabalhadora precarizada desde o pós-abolição até os dias atuais.
Santos (2008) vai além, alertando que “não fazer esse tipo de consideração, nos levaria a crer que nada ocorrera no campo do trabalho até a chegada dos imigrantes no século 19”. Com efeito, relata que os próprios Sindicatos reproduziam a história contada na visão do colonizador, em grande parte também reproduzida nos bancos acadêmicos e pelos juristas, qual seja a de que o trabalho começara no Brasil com a chegada dos imigrantes, como se os homens, mulheres (e crianças) negros e negras que construíram a riqueza desse país, com a sua força de trabalho, de forma violenta não se tratassem de trabalhadores. Afirma ainda “cerca de 350 anos antes do grosso da imigração ocorrer, os negros, e durante um certo tempo também os índios, já trabalhavam sob condições que nenhum outro trabalhador haveria de trabalhar nessa terra.”
Segundo o autor, a partir da análise das relações de produção no pós-abolição podemos encontrar uma das causas estruturais do desemprego, que atualmente atinge mais de 64% da população negra. À época, mais de setecentas mil pessoas foram “colocadas à disposição” de um mercado de trabalho fictício, enquanto imigrantes chegavam em grande número e, numa perspectiva colonial, mais preparados para o trabalho assalariado. Esse montante de trabalhadores, tomando-se como exemplo os índices de população e desemprego na década de 90, representaria o equivalente a uma dispensa em massa de mais de 7 milhões de pessoas. Lugar de onde não mais sairiam, ou, o que é mais grave, sairiam para o encarceramento. Nesse sentido, conclui que se trata esta situação de um desemprego e subemprego permanentes, que fazem parte da cultura econômica, onde sempre há uma multidão disponível de pessoas que são vistas como pouco qualificadas, para os postos ou vagas de emprego. (SANTOS, 2008)
Assim, é que trazendo à luz a história social do trabalho desde o período de escravização negra, seguindo a linha de pensamento do Professor Hélio Santos, temos que “a história econômica do país se inicia, de fato, nos anos 30 do século 16, quando começa a colonização” e, portanto, “temos por volta do ano 2000 cerca de 470 anos da instituição do trabalho no Brasil”. É importante notar que para cada quatro anos de trabalho, apenas um ocorreu sob a égide do “trabalho livre”. Conclui-se, assim, que tivemos até aqui 75% de tempo de escravismo e apenas 25% de tempo de trabalho livre, e esse fato estrutura as relações humanas no Brasil. É certeiro o estudioso ao afirmar “quem quiser entender alguma coisa do que ocorre hoje no mundo do trabalho não pode deixar de levar em conta esses fatos, sob pena de analisar uma outra realidade que nada tem a ver conosco.”
Dito isso, importante registrar que a abolição do sistema escravista não ocorreu como ato heroico ou benevolente da Princesa Isabel, como normalmente reproduzido nas escolas, mas sobretudo em decorrência da resistência de trabalhadores negros e negras escravizados, assim como libertos, escravos de ganho, nas ruas, em atividades precarizadas, nos quilombos, na luta por liberdade, que era também uma luta por trabalho decente – uma luta constante dos trabalhadores ainda nos dias atuais em diferentes contextos de realidade. Vejamos assim, que no período escravista os negros e negras escravizados, trabalhadores e trabalhadoras, lutavam por liberdade, igualdade e trabalho digno.
Nesse sentido, importante referência, pouco tratada na história das lutas por liberdade e igualdade foi protagonizada por trabalhadores negros na cidade de Salvador, em 1798, conhecida como a Revolta dos Alfaiates, buscava a transformação da estrutura da sociedade escravista e de relações de trabalho decente. Assim como esta, a maioria das revoltas e insurreições negras na história não são analisadas também como lutas por trabalho justo e igualitário, destituindo, portanto, da população negra desde o período colonial simbolicamente uma identidade de classe trabalhadora. Na mesma esteira, podemos citar a “Greve Negra” na Bahia em 1857; a Revolta da Chibata no Rio de Janeiro, no ano 1910, entre outras lutas e resistências negras.
Alves (2017) em pesquisa de dissertação de mestrado sobre trabalho escravo contemporâneo nos traz a necessária reflexão sobre o apagamento da classe trabalhadora negra na sociedade brasileira, muito antes da abolição formal da escravidão em 1888, afirmando que “A narrativa da história social do trabalho a partir da vinda dos imigrantes europeus e o silenciamento da experiência negra camuflam as diversas situações vividas pelos trabalhadores negros à margem do que é compreendido como classe operária, obscurecendo as continuidades desse lugar marcado pela discriminação racial. Nesse contexto, condições de trabalho extremamente degradantes não são problematizadas, mas naturalizadas como inerentes às atividades executadas pela população negra.”
Esse silenciamento está presente na história sobre a abolição da escravidão, quando já se consolidava um cenário de desvantagens econômicas em relação à manutenção desse sistema, tendo sido o Brasil o último país a romper com a exploração da mão de obra escravizada negra. A história que se busca resgatar – registre-se a importância do Dia Nacional da Consciência Negra e das referências aos guerreiros e guerreiras militantes Zumbi, Aqualtune, Dandara, Akotirene e tantos outros até os nossos dias – para mostrar a vitória das lutas, revoltas e levantes negros, destacando-se o Quilombo dos Palmares, talvez como mais importante resistência quilombola no período, numa organização de sociedade socialista que durou mais de 100 anos (SANTOS, 2001).
Após a ruptura com o sistema escravista, a população brasileira era majoritariamente negra[1], e tal situação levou à política de branqueamento, com a importação de imigrantes europeus para ocupar os postos de trabalho formais na indústria, especialmente nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, o que ensejou o completo abandono e precarização do trabalho da população negra liberta[2]. Também atingiu crianças negras, impondo a estas o trabalho nas ruas, e posteriormente a criminalização destas condutas, com processos de higienização, levados a cabo inclusive pela legislação que se consolidou na primeira República, após o período de colonização, mais especificamente o Código de Menores (1927) e a própria CLT (1943) ao admitir trabalho infantil nas ruas para o próprio sustento, mediante autorização judicial[3].
A legislação criminal, trabalhista e “menorista”, no pós-abolição, instituiu a política de encarceramento da população negra, que tem reflexos até os dias atuais, especialmente diante da penalização de situações definidas como “vadiagem”, “prática de capoeira”, entre outras. Como exemplo, o trabalho infantil nas ruas se disseminou como forma de sobrevivência, posteriormente penalizado com os “Códigos de Menores” legitimando políticas higienistas, mediante retirada dos “menores abandonados”, “menores delinquentes” dos espaços públicos e imposição de trabalho como medida de “correção” em colônias agrícolas, industriais, ou em entidades filantrópicas pelo próprio Estado.
Essa reflexão sobre as relações de trabalho negras no Brasil mostra-se de fundamental importância, para um olhar crítico sobre a desigualdade no mercado de trabalho nos dias atuais, bem como para que se questione o próprio Direito do Trabalho, que, ao mesmo tempo em que surge como mecanismo de solução dos conflitos capital x trabalho, não traz nem trouxe respostas na origem das questões laborais envolvendo a população negra no trabalho informal, e muito tardiamente assegurou proteção ao trabalho rural e doméstico. Podemos entender a legislação trabalhista como estruturada também no racismo, a ponto de legitimar, por exemplo, o trabalho das empregadas domésticas em condição desigual a outras categorias de trabalhadores até muito recentemente (2015) e ao longo de décadas, antes da Constituição Federal de 1988, desigualdades em relação aos trabalhadores rurais, esses dois segmentos de atividades econômicas em que o trabalho é massivamente realizado por negros e negras. O mesmo ocorreu, por exemplo, em relação ao trabalho infantil (SANTOS, 2020).
O epistemicídio sobre a história negra do trabalho e a luta dos trabalhadores negros e negras na sociedade brasileira faz com que a luta antirracista seja entendida, muitas vezes, como secundária, particular, específica, identitária, quando na verdade estamos na base da estrutura econômica das relações de produção, que se perpetuam produzindo e reproduzindo a ideologia do racismo, de forma sistêmica, estrutural, invisibilizada inclusive no movimento de trabalhadores e na luta por direitos. É preciso entender que a luta do povo negro é na sua essência luta de classes. É luta por um mundo igual e justo para todes. E é luta pela vida – num país em que um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos. Nós, negros e negras desse país somos classe trabalhadora e seguimos em constante luta por liberdade, igualdade, trabalho digno e justiça.
*Elisiane Santos é Procuradora do Trabalho e Membra do Coletivo Transforma MP.
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