Por Élder Ximenes Filho no GGN
Sou contra o aborto. Sou pela vida. Você também?
Por isto mesmo, sou pela descriminalização completa do abortamento. Você também devia ser!
Tento abordar este tema (que em breve será julgado pelo STF) sem referência às religiões. Isto pelo simples fato de que estas só podem exercer influência sobre seus fiéis voluntários – jamais produzindo normas gerais coativas. Não vamos ignorar o Iluminismo nem suas revoluções…
Começo este pequeno recorte lembrando que etimologicamente “aborto” é o feto morto; o resultado, não a conduta humana de interromper a gravidez. Logo, a discussão é sobre o “abortamento” – mas não gastemos latim além disto: estamos falando de uma conduta, um fazer consciente visando a algum resultado. A mulher aborta visando a retomar a normalidade de sua vida – que pode incluir planos de muitos filhos no futuro. Ninguém escolhe abortar por gosto, óbvio – mas será lícita esta escolha?
Todas as comunidades sempre tiveram algum tipo de interdição. Nos longes da memória havia tabus ditados pelos tótens e que os xamãs interpretavam. Hoje temos leis passadas pelo parlamento e aplicadas pelos juristas. Para um pobre periférico e (por isto mesmo) sem educação digna, o trabalho do legislador é tão distante quanto os mitos e o juridiquês não difere da glossolalia dos possessos[1]. Claro que muito mudou – mas cuidamos aqui de algo permanente: existe um valor atribuído à conduta proibida e àquilo que a proibição diz proteger. Quem defende a criminalização do aborto acredita ser “a favor da vida”…. Mas não é tão simples, pois o buraco axiológico pré-jurídico é incomodamente mais em cima!
Pensemos nos casos em que posso legalmente violar os direitos dos outros. Ensaiemos isto em nome deste embate de valores (nas arenas da cultura e da política), com a devida proteção do Direito… Exemplo: num naufrágio eu tomo o salva-vidas de uma criança e entrego para o meu filho (ou uso eu mesmo) e você, em revolta, mata-me. Outro: você está na miséria e tenta furtar remédio ou comida para a família, o segurança intervém e você reage, ferindo-o na luta. O desespero que levou ao ato inicial supera infinitamente o temor da eventual punição.
Imagine isto nos tribunais e nas redes sociais. Imagine na SUA vida. Imagine que foi você engravidada num estupro aos 11 anos. Veja-se em cada um dos papéis: das crianças, dos agressores, de quem vinga, de quem julga, de quem compartilha… Muda tudo quando muda o ponto a partir do qual (vi)vemos!
Todos sabemos como uma vida vale mais do que outra, dependendo da pessoa, do local, da cor da pele, da época, da economia, da guerra… de tudo, enfim.
De forma canhestra, já compararam a interrupção de qualquer gravidez com deixar uma pessoa inválida morrer desamparada. Não é assim. Há valores diferentes e isto é fácil de compreender e de sentir. Se alguém resolve, por algum motivo, descuidar de sua mãe idosa, merece processo (civil e criminal) e ela ser levada a um abrigo. Tudo isto sob os cuidados do Estado, ou seja, assumindo a sociedade os custos (inclusive do processo). Ninguém estranha, pois todos revoltam-se ao pensar na infelicidade da senhorinha. O bem-estar da mãe VERSUS a vontade ou os motivos do filho (como conforto ou interesse econômico etc…) – ninguém discute o que deve pesar mais. Um caso desses ofende de perto; afinal, mãe é mãe!.
Mas quando pegamos esta “equação” e retiramos o parentesco, diminuímos a idade e aumentamos muito a quantidade, para onde vai a santa revolta? Paradoxalmente, quanto maior o problema, mas alienados ficamos. Segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – SNA, do Conselho Nacional de Justiça, hoje há quase 30.800 crianças acolhidas em abrigos. Em 2019 houve uma média diária de 233 agressões a crianças e adolescentes no Brasil[2] e, segundo o IPEA, a maior causa de mortes de jovens entre 15 e 29 anos é o homicídio[3]. Com certeza você conhece alguém que abandonou um filho ou que dá trabalho para pagar a pensão. Mas – pense bem – quantas pessoas você conhece que já adotaram uma criança? Qual a última campanha pró-adoção feita por alguma emissora de TV? Você já cobrou da prefeitura ou da sua empresa a instalação de creches?
Vamos reduzir ainda mais a idade do exemplo. Pensemos na vida do feto e depois vejamos como, de fato e sem o verniz da hipocrisia, acontece sua valoração.
Podemos considerar o feto, a partir de certo momento da gestação, um ser humano. Uma posição a ser definida previamente, com insumos da ciência. Em outras culturas (e correspondentes conformações normativas) até a vida do recém-nascido pode ser disponível. Os neoparidos achados defeituosos ou os gêmeos seriam mortos para o bem comum. Estabelecendo algum marco arbitrário, associamos um grupo de valores culturalmente relevantes a uma determinada conduta – e uma correspondente proteção jurídica. Isto pode incluir obrigar a mãe a não matar – ameaçando-a com processo e prisão. Mas os valores têm a ver com a Moral e esta varia (e muito) com o tempo. Mulheres escravizadas muitas vezes não toleravam estender aquela miséria aos filhos. Já os seus proprietários queriam o aumento do “rebanho” e a Lei estava de seu lado… Claro que, se engravidassem do Senhorzinho-estuprador e isto gerasse incômodo na Casa Grande, bem… a Lei continuava do mesmo lado. Em essência, a situação é a mesma das mulheres trabalhadoras atuais.
É preciso ter a clareza de que são estas relações sociais e econômicas, estes conflitos entre classes (e grupos internos) que necessariamente amoldam tanto a Moral como o Direito. Nossos pontos de vista igualmente dependem de onde nos situamos na sociedade, pois isto já determinou a educação que tivemos, qual “papel” nos foi exigido e até onde podem ir nossos sonhos (com ou sem filhos).
Voltando ao tema, um outro detalhe pouco dito é que, além de tratar-se de um corpo distinto, a gestante não precisa agir conscientemente para levar a termo a gravidez. Basta continuar viva e minimamente saudável. Pessoas em coma dão à luz. Ao considerarmos este automatismo e a autonomia biológica (seres diferentes, apenas ligados fisicamente por certo tempo), novamente há lógica proteger o feto indefeso – mas não há definição universalmente válida de como deve ser tal proteção.
Será que a criminalização é a única forma de proteger aquela vida? Não. Existe outra bem mais efetiva: a redução da miséria e o acolhimento das gestantes por uma sociedade que lhes dê alguma esperança de vida melhor para a futura geração. Por difícil que seja, qualquer coisa é mais efetiva do que a criminalização. É notório que abortos clandestinos acontecem e que neles tantas jovens morrem ou acabam mutiladas. O medo do processo não impede as desesperadas. A ilegalidade, sim, torna aquele compreensivo desalento neste risco desnecessário.
No artigo “Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?”[4]:
No período entre 2008 e 2015, ocorreram cerca de 200.000 internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto, sendo cerca de 1.600 por razões médicas e legais. De 2006 a 2015, foram encontrados 770 óbitos maternos com causa básica aborto no SIM. Houve discreta redução dos óbitos por aborto ao longo do período, com variações regionais. Esse número poderia ter um incremento de cerca de 29% por ano se os óbitos com menção de aborto e declarados com outra causa básica fossem considerados. Entre os óbitos declarados como aborto, 1% foi por razões médicas e legais e 56,5% como aborto não especificado. A proporção de óbitos por aborto identificados no SIH, em relação ao total de óbitos por aborto identificados no SIM, variou de 47,4% em 2008 para 72,2% em 2015. Embora os dados oficiais de saúde não permitam uma estimativa do número de abortos no país, foi possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e sem companheiro.
Os números são muito piores, devido à subnotificação ocasionada exatamente pela criminalização. A maioria destas jovens poderia ser salva, caso acesso tivessem a medicamentos e procedimentos de abortamento seguro, via SUS. Os custos destes procedimentos (para o tesouro público e para a economia em geral) seriam bem inferiores aos prejuízos destas mortes e mutilações de mulheres em plena idade produtiva, estudantes e trabalhadoras. Não vamos dourar a pílula. Estamos dizendo que o Estado deve ajudar a matar aqueles fetos, preservando as vidas das gestantes que desejam abortar.
Sim, é um pensamento incômodo que deve ser trabalhado para além do mote “meu corpo, minhas regras”: é a vida do feto que vale menos, mesmo!
Tem menos importância do que a outra vida envolvida, a da eventual mãe. A mulher é quem deve decidir a que sacrifício aceita submeter-se. Que haja apoio e reconhecimento respeitoso às que decidem sacrificar-se (criando rebentos do estupro ou com graves deficiências, por exemplo). Ao contrário, o Estado não deve punir as que interrompem aquela vida tanto quanto naquele caso do náufrago.
Todas as possibilidades do exercício vital futuro do feto são menos importantes do que os somados presentes da forçada mãe: saúde + conforto + qualidade de vida + tranquilidade + equilíbrio financeiro + equilíbrio emocional + superação da opressão patriarcal + custos sociais para manutenção de uma criança indesejada + possibilidade de ter filhos amados e desejados no futuro…
Enfim, tratamos da felicidade da Mulher (individual e coletivamente) como ser pleno de estados e porvires VERSUS o feto – que é apenas potência (embora tenha sua poética, obviamente).
Já foi dito que se homem engravidasse o direito a abortar estaria no Código de Hamurabi, nas Sutras e nas Tábuas. Em realidade, seria tão “natural” que não precisaria constar de norma alguma, afora receitas caseiras ou manuais médicos.
Valores. Política. Cultura. Economia… e o (des)equilíbrio de forças entre os interesses envolvidos. A razão para o aborto ser criminalizado é, a rigor, a mesma pela qual as mulheres recebem menos pelo mesmo trabalho: como grupo socioeconômico e como categoria política organizada, elas ainda estão fracas.
Ainda.
1 É absurdamente comum que a pessoa entenda que ganhou ou perdeu “a causa”, que foi ou não condenada, mas não como os doutores chegaram à parte dispositiva da sentença.
2 https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-12/brasil-registra-diariamente-233-agressoes-criancas-e-adolescentes#
3 Atlas da Violência 2020 – pode glooglar também “juventude perdida + Brasil”
4 Dentre os Cadernos de Saúde Pública, acessível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020001305001