Olhar para o mundo do trabalho a partir das expressões artísticas é uma forma de pensarmos esse contexto por outras perspectivas: os olhares dos artistas.
Tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras. Coubera a ele ser o instrumento por meio do qual a palavra haveria de se espalhar pelo coração dos homens. Seu exemplo levara-os ao pó, que ele via subir cada vez que a pá trabalhava, e ajudara-os a chegar à resposta do enigma em tempo de fome e miséria: o sopro de vida dos homens se dirige para debaixo da terra, como o dos animais.
Tempo de espalhar pedras, Estevão Azevedo
Encontramos o mundo do trabalho retratado das mais diversas formas, nas mais diversas expressões artísticas: literatura, cinema, artes plásticas, música – apenas para citar algumas.
Em 2014, por exemplo, foi publicado um livro muito potente, muito singular, que aborda o mundo da estrada e da beira da estrada, cenário inserido na geografia do interior do estado de São Paulo, retratando vidas de caminhoneiros, seus sentimentos, suas carências.
Sem vista para o mar (Edith), de Carol Rodrigues, vencedor dos prêmios Jabuti e Clarice Lispector (da Fundação Biblioteca Nacional), arrebata-nos desde a primeira página com o conto Onde acaba o mapa – e vai nos guiando pela estrada literária construída, ao longo do livro, pela autora. O conto Um homem prudente transporta-nos para o mundo do caminhoneiro Murilo: “Não toma rebite. Dá mais acidente que insônia”.
Outro exemplo da literatura brasileira contemporânea é o romance Tempo de espalhar pedras (Record), de Estevão Azevedo, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, elaborado sobre cotidianos de moradores e trabalhadores de um garimpo ficcional. Estevão narra de forma poética, mas também direta e crua, as relações humanas – que se misturam, muitas vezes, com as relações de trabalho.
No cinema, dentre os streamings da 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, chamaram-me a atenção, como operadora do direito do trabalho, o documentário Coronation, de Ai Weiwei, e os filmes Espacate, do diretor Christian Johannes Koch, e Miss Marx, escrito e dirigido por Susanna Nicchisrelli.
Coronation traz os acontecimentos da cidade de Wuhan, na China, durante a pandemia de COVID-19: como alguns de seus habitantes foram impactados pelo surto; narrativas particulares entrelaçadas com as difíceis condições de trabalho, principalmente de profissionais da área da saúde.
O longa-metragem Espacate, ao apresentar, dentro de sua trama, um contexto de imigração ilegal (no caso, em uma cidade do interior da Suíça) e do meio ambiente de trabalho relacionado a imigrantes, escancara o desamparo a que pessoas em tais condições podem estar sujeitas quando sofrem um acidente de trabalho.
Miss Marx, por sua vez, mostra o ativismo sindical de Eleanor Marx, interpretada por Romola Garai. Em sua peregrinação por fábricas, a filha de Karl Marx aparece reivindicando condições dignas para os trabalhadores – Eleanor menciona, em especial, a importância de um espaço ventilado nos locais de trabalho.
A temática também atravessa diversas fases da música popular brasileira, chegando na atualidade: raps tornam-se espaço para possíveis debates sobre o impacto da tecnologia e da crise econômica e de empregos.
O rapper Projota, em Rap do ônibus, fala da rotina dos trabalhadores em São Paulo: “Sardinhas enlatadas são jogadas ao relento / […] Porque dá mais trabalho chegar no trabalho do que trabalhar”; e Rachid, em Como estamos?, do desemprego: “Olha pra fora e diga como estamos […] / Algumas perdas tiram até o brilho do que conquistamos / […] Com as porta de emprego tudo fechada e as da cadeia tudo aberta. É onde o mal flerta”.
No campo dos direitos sociais, há um longo caminho que deveremos percorrer, ainda, no enfrentamento dos obstáculos para conseguirmos implementar o trabalho decente no Brasil, objetivando vidas dignas para todos.
Formalizado pela OIT em 1999, o conceito de trabalho decente sintetiza a sua missão histórica de promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas, sendo considerado condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.
Olhar para o mundo do trabalho a partir das expressões artísticas é uma forma de pensarmos esse contexto por outras perspectivas: os olhares dos artistas.
Pedra. Carrego pedra. / Toma rebite? / É o jeito a essa hora. / Voltamos pelo tranco das pedras e do pagode chiado na fitinha cassete. A cabeça encostada no banco recuava da garganta o que viesse lá de baixo. / Em quatro horas encostava em Auriflama. O degrau foi bem fácil de descer. / Desse ponto minha vida seguiu só por terra leste do país. Final feliz é só mesmo o litoral. Mas minha pele, por enquanto, ainda não responde muito bem ao sol.
Sem vista para o mar, Carol Rodrigues
*Eliane Lucina, Procuradora do Trabalho, na PRT 2a. Região – São Paulo, membra do Coletivo Transforma MP