Arquivos Diários : julho 30th, 2020

O renascimento do Príncipe?

Por Leomar Daroncho Ednaldo Brito no Justificando 

A expressão “Príncipe” deriva da forma latina “primus” (princípio), o que vem na frente ou antes de todos. No reino da Baviera, há cerca de 170 anos, nasceu um príncipe. Coroado rei aos 18 anos, Ludwig II, notabilizou-se pelo gosto musical e por convidar o compositor alemão Richard Wagner para trabalhar em Munique. Há gerações o reino do monarca bávaro, com seus opulentos castelos, alimenta a fantasia das crianças, além dos sonhos e delírios de adultos.

 

 

Nos trópicos, no final de março, o Presidente da República deu à luz a um príncipe. Aparentemente, a figura salvaria empresas afetadas pela crise resultante do isolamento social no contexto das medidas de combate à disseminação do coronavírus. Em sua didática peculiar, o governante afirmou: “Ó, tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante etc. que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok? Fecharam tudo.”.[1]

 

Operadores do direito apressaram-se em lembrar a redação do artigo 486 da CLT como parideira de tão auspiciosa criatura, conhecida nos meios jurídicos como “fato do príncipe”.

 

Segundo o dispositivo, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que, todavia, ficará a cargo do governo responsável.

 

O anúncio da “boa nova” animou algumas empresas a demitir seus empregados sem o pagamento integral das verbas rescisórias. Acreditaram que seriam socorridas pelo aguardado príncipe.

 

Provocado, o Poder Judiciário logo esclareceu que o príncipe vislumbrado pelo Senhor Presidente não cabe no figurino previsto na CLT.

 

No início de abril, a conhecida rede de Churrascarias Fogo de Chão demitiu mais de 400 empregados. Não pagou o aviso prévio e recolheu apenas metade da indenização do FGTS, alegando o fato do príncipe.

 

Em 25 de maio, o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro ingressou com ação civil pública requerendo a nulidade das demissões e a condenação da empresa ao pagamento de 70 milhões de reais a título de compensação por danos morais coletivos[2]. Dois dias depois, a churrascaria reconsiderou sua decisão. Aceitou pagar as verbas rescisórias dos empregados, justificando-se com “as questões jurídicas levantadas e o impacto financeiro desta solução para os membros das equipes e suas famílias”.[3]

 

O questionável procedimento empresarial teve desdobramentos paralelos no Judiciário. Em 8 de julho de 2020, o Corregedor-geral da Justiça do Trabalho, valendo-se de questionável recurso jurídico para o caso – correição parcial – decidiu monocraticamente suspender a liminar que proibia demissões na rede de churrascarias, até o julgamento de ações civis públicas que discutem a dispensa dos cerca de 420 empregados em todo o país. Apesar disso, o Fato do Príncipe não foi ressuscitado pelo TST.

 

Em 27 de abril, uma empresa de transporte rodoviário da Bahia demitiu dez empregados sem pagar a indenização de 40% do FGTS e o aviso prévio. Também alegou o “fato do príncipe”. Apenas 3 dias depois, a 3ª Vara do Trabalho de Salvador tornou ineficazes as dispensas e determinou a reintegração dos empregados. A Magistrada ponderou que, ao promover demissões com base no fato do príncipe no período da pandemia, a empresa pôs em risco a vida, a alimentação e a saúde dos trabalhadores e de suas famílias de maneira injustificada, pois poderia ter promovido a suspensão dos contratos de trabalho.[4]

 

Ao que parece, o Judiciário não aceitará com tranquilidade, como já não aceitava, o fato do príncipe como fundamento para demissões no período da pandemia, pelo menos sem o fiel cumprimento dos requisitos estabelecidos no art. 486 da CLT.

Números de 11 de julho mostrados pelo “Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho”, plataforma organizada pela revista eletrônica ConJur em parceria com a instituição de educação Finted e a startup Datalawyer Insight, indicam que a teoria do Fato do príncipe e da força maior já aparecia em 941 ações trabalhistas[5]. Então, ainda teremos pela frente muitos pronunciamentos judiciais sobre o tema, porém, são reduzidas as perspectivas de êxito na tese empresarial.

 

Parece ter havido açodamento na invocação do disposto na CLT. Mesmo numa interpretação generosa, o artigo 486 não leva à conclusão de que o governador e o prefeito pagam os “encargos trabalhistas” da empresa que for obrigada a fechar seu estabelecimento. O dispositivo menciona apenas que o pagamento da “indenização” ficará a cargo do governo responsável pela paralisação do trabalho. Essa indenização é tão somente a de 40% sobre os depósitos de FGTS, prevista no art. 18, §1º, da Lei 8.036/90, ficando sob a responsabilidade da empresa todos os demais encargos trabalhistas, tais como férias, aviso prévio, 13º salário e contribuições previdenciárias.

 

Não há qualquer artigo na CLT dizendo que os “encargos trabalhistas”, com toda essa amplitude, seriam de responsabilidade do ente público.

 

Outra questão deixada de lado, equivocadamente, pelas empresas, é o requisito da paralisação total das atividades. Muitas, como a churrascaria Fogo de Chão, permaneceram funcionando em sistemas alternativos de venda, como delivery e drive thru, e, nesse caso, não se aplicaria o art. 486 da CLT.

 

Não só o Judiciário tem explicado às empresas o que é o fato do príncipe. Em 28 de maio, a Superintendência Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, vinculada ao Ministério da Economia, tornou pública uma Nota Informativa (SEI nº 13448/2020/ME) em que orienta a atividade fiscalizatória a considerar que o fato do príncipe somente pode ser cogitado na hipótese de “paralisação total” das atividades da empresa. Quando uma empresa segue funcionando parcialmente, não se configura o fato do príncipe.

 

A instrução também esclarece que a única verba devida pelo poder público no caso de ocorrência do fato do príncipe é a indenização de 40% do FGTS. Os outros encargos trabalhistas seguem sendo ônus do empregador, que assumiu os riscos do negócio.

 

No último dia 6 de julho, o mesmo Presidente que, no mês de março, gestou o Príncipe salvador, encarregou-se de abortá-lo. Sancionou a Lei nº 14.020/2020, que, em seu art. 29, afasta peremptoriamente a aplicação da teoria do Fato do Príncipe às relações trabalhistas no contexto da pandemia.

 

Diz a norma que “Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020”.

 

Tudo converge, então, para a conclusão de que o príncipe que veio à luz com a fala do Presidente da República era outro, totalmente diferente daquele previsto na CLT, e não terá a potestade de socorrer as empresas como anunciado por Sua Excelência. Ao que parece, o tal príncipe não passou, depois de submetido à prudência do entendimento judicial e legislativo, de uma criatura gestada em arroubo irrefletido. Com isso, tem-se o fim da quimera com uma herança de sobrecarga de trabalho para os tribunais.

 

No caso do reinante bávaro do século XIX, atitudes consideradas bizarras e perdulárias, além da indiferença para com os negócios de Estado, teriam levado à declaração de insanidade que o afastou do poder, em 1886. Restou, porém, o legado da música e dos belos castelos.

 

 

 Ednaldo Brito é Procurador do Trabalho

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP

Garantismo penal: Ferrajoli por Ferrajoli, colocando os pingos nos is

Por Ana Cláudia Bastos de Pinho no Conjur 

Não é de hoje que a expressão garantismo sofre deturpações. Ocupa o lugar de maldito, está sujeito a todo tipo de disputa de sentidos em torno de seu significado e exposto a toda sorte de ataques levianos. O garantismo — e aqui peço licença à genialidade de Chico Buarque — é a “Geni” da grande ópera que encerram o Direito e o Processo Penal. A turba atira-lhe pedras, sem piedade. Mas, quando convém, o garantismo “é um poço de bondade”.

Oxalá tais mal-entendidos (ou não entendidos) ficassem circunscritos a conversas de mesa de bar, quando se ouvem brados alvoroçados, enxovalhando esse ou aquele ministro da Suprema Corte do país, porque foi muito “garantista” ao conceder uma ordem de Habeas Corpus em algum caso midiático, envolvendo personagens do jogo político nacional. Não raro, ainda ouvimos comentários do tipo “o juiz tem que escutar a voz das ruas”! Mas, infelizmente, esse tipo de esperneio não fica restrito às resenhas de happy hour, senão que está profundamente incrustado no imaginário jurídico. Daí a necessidade de falarmos (seriamente) sobre garantismo…

Premissa: por necessário, delimito o que vou tratar nesse pequeno texto. O termo garantismo — muito embora deite raízes na França no século XIX — ganha expressão com a obra magistral do professor italiano Luigi Ferrajoli, que na década de 1970 integrou um movimento intelectual na Itália, em reação a uma legislação penal de emergência, a qual violou direitos e garantias individuais, sob a justificativa de “combate ao terrorismo”. É aqui, nesse contexto, que garantismo passa a designar “a doutrina liberal do Direito Penal” (Dario Ippolito). Após mais de uma década de reflexões e escritos, Ferrajoli publica, em 1989, um capo lavoro denominado Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale [1]. Portanto, aqui irei, a todo tempo, referir-me a esse garantismo penal. O único possível, qual seja, o que foi criteriosamente estruturado e concebido por Ferrajoli em Direito e Razão, a partir de uma densa e sofisticada formatação teórica, ancorada no positivismo analítico, do qual é herdeiro seu autor.

Postas assim as coisas, sigamos. É bom registrar que essas deturpações ao conteúdo do garantismo penal não ocorrem apenas no Brasil. Dario Ippolito, professor da Universidade de Roma Tre e que sucedeu Ferrajoli na cátedra, inicia seu livro “O espírito do garantismo”, advertindo: “Garantismo é uma palavra degradada, desfigurada por abuso. Frequentemente, e compreensivelmente, provoca suspeita, intolerância. Evoca, no imaginário de muitos, ardil processual e esperteza” [2].

Mas quais seriam as razões para isso?

Voltando ao cenário brasileiro, arrisco dizer que o garantismo foi o convidado que entrou pela porta dos fundos [3]. Explico-me: Direito e Razão — apesar de ter sido traduzido para o português — chega por aqui e fica encastelado nos bons programas de pós-graduação, a partir de onde produz excelentes dissertações de mestrado e teses de doutoramento. Nossa tradição autoritária, decerto, não permitiria (como, de fato, não permitiu) que uma teoria que resgata postulados liberal-iluministas e propõe limites e vínculos ao exercício do poder fosse amplamente difundida, seriamente estudada e corretamente utilizada pelos que atuam no sistema de justiça criminal.

Algo precisaria ser feito para impedir a formação de um suposto exército garantista! Afinal, Direito e Razão traduzido para o português e, aqui e acolá, despertando interesses, poderia representar uma ameaça concreta às estruturas inquisitórias do poder punitivo. Qual o caminho, então? Muito simples e bastante em voga: uma campanha anti-garantista, com o fim de produzir espécies de fake news, afirmando coisas que Ferrajoli jamais escreveu, atribuindo à teoria características que ela nunca possuiu, destacando trechos isolados de escritos de Ferrajoli, sem contextualizar com os postulados fundantes da extensa obra do autor e — como poucas pessoas seriamente estudaram a arquitetura garantista — publicar (inclusive em forma de livros, artigos, ou, simplesmente, postagens em redes sociais), enganando os incautos. Em suma: colocando Ferrajoli contra Ferrajoli! [4]

Porém, desde a última sexta feira (24/7) a temperatura elevou-se consideravelmente, quando Luigi Ferrajoli concedeu uma excelente e esclarecedora entrevista à Folha de São Paulo, colocando os pingos nos is. O professor italiano pinçou, cirurgicamente, pontos fundamentais da epistemologia garantista e, de forma objetiva, explicou se tratar de um modelo de contenção do poder para, sobretudo, evitar a punição de inocentes. Disse, ainda, que condenações podem e devem ocorrer, desde que respeitadas as regras do jogo, que correspondem às garantias penais e processuais penais (no caso brasileiro, extraídas do artigo 5º da CR)[5].

E agora? Ferajoli por Ferrajoli! Como dizer que ele disse coisa que ele não disse, se agora ele disse!? E pela própria boca! Porém, ainda assim, há quem diga que ele disse coisa que ele não disse, ou que não disse aquilo que sempre afirmou… “Disse me disse” à parte, pontuo, abaixo, o que considero imprescindível para colocar o debate em seu devido eixo, qual seja, o da discussão teórica séria, fundamentada na extensão e complexidade da obra do autor.

Vamos, pois, às raízes da celeuma:

1) Como acima já referido, o termo garantismo recebeu tratamento extenso por Luigi Ferrajoli, que, em Direito e Razão, formulou, inicialmente, a teoria do garantismo penal. Importante destacar que, muito embora Ferrajoli não seja um penalista, tampouco um processualista penal, ou criminólogo (ele é um filósofo do Direito), utiliza o campo penal como locus privilegiado para demonstrar a tensão existente entre liberdades x poder. A preocupação de todo o arcabouço garantista é com a contenção da violência (seja a advinda dos particulares, seja a produzida pelo próprio Estado). E, nesse contexto, nada melhor que a seara penal para a interlocução, já que, se o crime é uma violência, a pena também o é. Ferrajoli propõe, então, um duplo fim ao Direito Penal: prevenir a violência advinda dos crimes e, ao mesmo tempo, evitar a violência advinda das reações (penas) arbitrárias. Trata-se de seu importante utilitarismo reformado. Interessante notar que, muito embora o garantismo acredite na finalidade preventiva clássica, avança ao afirmar que, mais importante do que evitar crimes, é evitar a violência advinda do próprio Estado, com penas e processos arbitrários, sobretudo porque somente esse segundo fim “é necessário e suficiente para fundamentar um modelo de direito penal mínimo e garantista, como o formalizado em nosso sistema SG” [6]. A propósito, nessa obra, o professor de Roma estrutura — a partir de uma rigorosa tradição positivista e analítica — o que chama de sistema garantista, um modelo racional de limites e vínculos ao exercício do poder de punir, com a releitura de princípios iluministas, em formato de dez axiomas, os quais são por ele denominados de “regras do jogo fundamentais do direito penal” [7].

2) Assim sendo, não existe garantismo penal fora da obra de Luigi Ferrajoli. Ponto! É Ferrajoli por Ferrajoli, e não ele contra ele! Ou bem compreendemos o que foi criteriosamente exposto em Direito e Razão — sobretudo os fundamentos epistemológicos, axiológicos e normativos — ou não estamos falando de garantismo penal, que, aliás, não conhece adjetivos, nem complementos. Podemos até estar falando de outra coisa qualquer, até mesmo criar uma teoria própria. Sem problema. Mas, precisamos denominá-la de algo diverso. Não estamos autorizados a dizer que isso é garantismo, da mesma forma como não estamos autorizados a chamar mesa de cadeira! Simples, assim.

3) O garantismo penal, como dito pelo próprio autor, é um modelo ideal e, de certa maneira, utópico, jamais realizável por completo, pois o conjunto dos dez axiomas (princípios) que Ferrajoli constrói — relacionando pena, delito e processo — é concebido de forma prescritiva, e não descritiva. Trata-se, pois, de um modelo de dever ser [8]. Entre a obediência fiel e irrestrita de todas as garantias (modelo de Direito Penal mínimo) e seu extremo oposto, ou seja, de violação de todas elas (modelo de Direito Penal máximo), há vários modelos intermediários, podendo-se falar em tendências a um ou a outro. Disso se conclui, invariavelmente, que jamais haverá “excesso de garantias”, já que estamos falando de um modelo ideal (limite), que funciona como critério de deslegitimação das práticas autoritárias. Aliás, num país de incontáveis violações aos direitos da pessoa imputada, parece até piada falar em excesso de garantias!

4) O garantismo jurídico é uma teoria do direito e da democracia (Principia Iuris, 2007 — Ed. Laterza) que não se esgota no garantismo penal. O garantismo penal está contido num universo maior que podemos chamar de garantismo jurídico. Por isso que, lá no início dos anos 2000, Ferrajoli mencionava que determinadas formulações estavam, ainda, inacabadas (o que não significa dizer que nós estejamos com procuração para acabá-las, complementá-las ou adicionar coisas que queiramos à tese complexa de um autor ainda vivo e altamente produtivo!). Nos textos posteriores e, sobretudo, em sua obra de fôlego (Principia Iuris, mais especificamente, página 188 do Volume 1), o professor italiano amplia o pensamento e, ao lado do garantismo penal ou liberal (fartamente exposto em Direito e Razão), estabelece a necessidade de um garantismo social, patrimonial, civil e internacional (mais recentemente, por conta da pandemia, Ferrajoli vem insistindo na necessidade de um constitucionalismo planetário) [9]. Esses níveis de garantismo operam desde estruturas e objetivos próprios. Ex: no garantismo penal, há uma expectativa de não lesão; enquanto no social, uma expectativa de prestação. Não existe, pois, um garantismo positivo, senão que positiva é a natureza da expectativa de satisfação de um direito social, diametralmente oposta àquel’outra que caracteriza os direitos de liberdade. Que fique claro, pois: os Estados democráticos contemporâneos não somente reconhecem o núcleo liberal dos direitos fundamentais, mas também o social (direito à saúde, educação) e o garantismo, por evidente, a ambos se refere. Porém — e aqui está o ponto — em nenhum momento Ferrajoli diz que para se proteger uma dimensão de direitos, deva-se sacrificar outra! Todo o contrário.

5) Garantismo é la legge del più debole (a lei do mais fraco). No campo eminentemente penal (posto que aqui está o busílis), quem é o mais fraco? A vítima, no momento do crime (daí a necessidade de uma séria teoria do bem jurídico, comprometida com os valores constitucionais). O investigado, por ocasião das investigações. O réu, durante o processo. O condenado, no momento da execução. Queiramos, ou não; gostemos, ou não, o réu é o polo mais fraco no processo penal! Pelo menos, para o garantismo de Ferrajoli e, como de modo geral, para todo o pensamento ilustrado, desde Beccaria! Não existe a menor possibilidade de relativizar um direito fundamental em nome de um suposto interesse da sociedade (aliás, Ferrajoli sequer trabalha com essas categorias). Quando Ferrajoli se refere aos direitos sociais ele está falando do garantismo social, e não do garantismo penal! A proteção, isso é verdade, abrange todos os direitos, mas a forma de exercê-la difere para cada categoria deles. Impossível, pois, falar-se em relativizar garantias no campo penal, em nome do que quer que seja! Não há espaço para isso na obra do professor italiano.

6) Garantismo não é sinônimo de impunidade! Mas de punição com racionalidade e respeito às leis e à Constituição. Nada mais, nada menos. Importante registrar que o paradigma ideal de um Direito Penal mínimo proposto por Ferrajoli não propõe que os bens jurídicos tutelados sejam mínimos. Essa é uma leitura reducionista e totalmente enviesada. Obviamente, Ferrajoli aposta em um processo sério de descriminalização (até porque, convenhamos, há inúmeras figuras típicas que já deveriam ter sido expurgadas há tempos — ou, será que ainda precisamos conviver com ato obscenojogos de azar e coisas desse jaez?), sugerindo, como possível solução, a adoção da reserva de código para tratar de matéria de natureza penal [10]. Mas não minimiza a tutela dos bens jurídicos relevantes! O modelo de DP Mínimo (insisto!) diz com o respeito às garantias. Por exemplo, Ferrajoli considera a corrupção crime grave, sim! Porém, em nenhum momento concorda que, para puni-la, podemos jogar no lixo o sistema acusatório e deixar o juiz investigar, adotar medidas constritivas de ofício, etc. Na entrevista, inclusive, Ferrajoli é enfático ao dizer que a Mani Pulite italiana foi modelo de garantismo se comparada à “lava jato”!

7) O garantismo — como toda teoria complexa, sofisticada, densa — é passível de críticas. Trata-se de uma teoria positivista e, como tal, imersa em conceitos, hoje amplamente discutidos pela teoria do Direito. Debate salutar e engrandecedor! Vários livros publicados pela Editorial Trotta, em que Ferrajoli dialoga com seus críticos, são a prova viva desse eloquente intercâmbio, caracterizado por muito estofo e musculatura teórica. Coisa, infelizmente, rara pelas bandas de cá… Porém, e aqui preciso insistir, a disputa de sentidos somente será legítima se estiver dentro da obra de Ferrajoli! A partir do que ele escreveu! Podemos até querer que ele tenha escrito alguma coisa que, para nós, seria o correto. Mas, se ele não o fez, não podemos dizer que fez!

Sim, o garantismo tem lá seus caprichos… O maior deles é não transigir com as garantias. E isso é crucial! É o que funda um sistema de Justiça Criminal democrático. É o muro que separa a civilização da barbárie. Mais dia, menos dia, virá a cidade em romaria… Prefeito de joelhos, bispo de olhos vermelhos, banqueiro com um milhão. Porque, ao fim e ao cabo, só o garantismo poderá nos salvar. Só ele poderá nos redimir…


[1] IPPOLITO, Dario. Lo spirito del garantismo: Montesquieu e il potere di punire. Roma: Donzelli editore, 2016, p. 10.

[2] “Garantismo è parola svilita, deturpata dall’abuso.Spesso, e comprensibilmente, suscita sospetto, insofferenza. Evoca, nellimmaginario di molti, cavilli procedurali e scaltrezze curiali. In Op cit. Página 3. Tradução livre no corpo do texto.

[3] PINHO, Ana Cláudia Bastos de. ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. Precisamos falar sobre garantismo: limites e resistência o poder de punir. 2. edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

[4] Sobre os ataques dirigidos ao garantismo, sugiro o artigo intitulado O garantismo (penal) de Luigi Ferrajoli: apontamentos (des)necessários a certas “críticas” Made in Brazil. PINHO, Ana Cláudia Bastos de; ALBUQUERQUE, Fernando da Silva; SALES, José Edvaldo Pereira. Publicado na revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Belo Horizonte, ano 17, n 26, p 155-186, jul./dez. 2019.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 2000. Página 334.

[7] FERRAJOLI, Luigi. In op. cit. Página 93.

[8] FERRAJOLI, Luigi. In op. cit. Página 38.

[9] Sobre o tema, conferir FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da terra? In: Congresso Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) – I Encontro Virtual, de 23 a 30 de junho de 2020. Disponível em https://docero.com.br/doc/nv1cxc5. Acessado em 29/7/20.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismoMadrid: Editorial Trotta, 2008. P 220-233.

 é promotora de Justiça Criminal do MP-PA, doutora em Direito, professora da Universidade Federal do Pará, coordenadora do Grupo de Pesquisa “Garantismo em Movimento” e integrante do Coletivo Transforma MP.