Por Leomar Daroncho e Ednaldo Brito no Justificando
A expressão “Príncipe” deriva da forma latina “primus” (princípio), o que vem na frente ou antes de todos. No reino da Baviera, há cerca de 170 anos, nasceu um príncipe. Coroado rei aos 18 anos, Ludwig II, notabilizou-se pelo gosto musical e por convidar o compositor alemão Richard Wagner para trabalhar em Munique. Há gerações o reino do monarca bávaro, com seus opulentos castelos, alimenta a fantasia das crianças, além dos sonhos e delírios de adultos.
Nos trópicos, no final de março, o Presidente da República deu à luz a um príncipe. Aparentemente, a figura salvaria empresas afetadas pela crise resultante do isolamento social no contexto das medidas de combate à disseminação do coronavírus. Em sua didática peculiar, o governante afirmou: “Ó, tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante etc. que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok? Fecharam tudo.”.[1]
Operadores do direito apressaram-se em lembrar a redação do artigo 486 da CLT como parideira de tão auspiciosa criatura, conhecida nos meios jurídicos como “fato do príncipe”.
Segundo o dispositivo, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que, todavia, ficará a cargo do governo responsável.
O anúncio da “boa nova” animou algumas empresas a demitir seus empregados sem o pagamento integral das verbas rescisórias. Acreditaram que seriam socorridas pelo aguardado príncipe.
Provocado, o Poder Judiciário logo esclareceu que o príncipe vislumbrado pelo Senhor Presidente não cabe no figurino previsto na CLT.
No início de abril, a conhecida rede de Churrascarias Fogo de Chão demitiu mais de 400 empregados. Não pagou o aviso prévio e recolheu apenas metade da indenização do FGTS, alegando o fato do príncipe.
Em 25 de maio, o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro ingressou com ação civil pública requerendo a nulidade das demissões e a condenação da empresa ao pagamento de 70 milhões de reais a título de compensação por danos morais coletivos[2]. Dois dias depois, a churrascaria reconsiderou sua decisão. Aceitou pagar as verbas rescisórias dos empregados, justificando-se com “as questões jurídicas levantadas e o impacto financeiro desta solução para os membros das equipes e suas famílias”.[3]
O questionável procedimento empresarial teve desdobramentos paralelos no Judiciário. Em 8 de julho de 2020, o Corregedor-geral da Justiça do Trabalho, valendo-se de questionável recurso jurídico para o caso – correição parcial – decidiu monocraticamente suspender a liminar que proibia demissões na rede de churrascarias, até o julgamento de ações civis públicas que discutem a dispensa dos cerca de 420 empregados em todo o país. Apesar disso, o Fato do Príncipe não foi ressuscitado pelo TST.
Em 27 de abril, uma empresa de transporte rodoviário da Bahia demitiu dez empregados sem pagar a indenização de 40% do FGTS e o aviso prévio. Também alegou o “fato do príncipe”. Apenas 3 dias depois, a 3ª Vara do Trabalho de Salvador tornou ineficazes as dispensas e determinou a reintegração dos empregados. A Magistrada ponderou que, ao promover demissões com base no fato do príncipe no período da pandemia, a empresa pôs em risco a vida, a alimentação e a saúde dos trabalhadores e de suas famílias de maneira injustificada, pois poderia ter promovido a suspensão dos contratos de trabalho.[4]
Ao que parece, o Judiciário não aceitará com tranquilidade, como já não aceitava, o fato do príncipe como fundamento para demissões no período da pandemia, pelo menos sem o fiel cumprimento dos requisitos estabelecidos no art. 486 da CLT.
Números de 11 de julho mostrados pelo “Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho”, plataforma organizada pela revista eletrônica ConJur em parceria com a instituição de educação Finted e a startup Datalawyer Insight, indicam que a teoria do Fato do príncipe e da força maior já aparecia em 941 ações trabalhistas[5]. Então, ainda teremos pela frente muitos pronunciamentos judiciais sobre o tema, porém, são reduzidas as perspectivas de êxito na tese empresarial.
Parece ter havido açodamento na invocação do disposto na CLT. Mesmo numa interpretação generosa, o artigo 486 não leva à conclusão de que o governador e o prefeito pagam os “encargos trabalhistas” da empresa que for obrigada a fechar seu estabelecimento. O dispositivo menciona apenas que o pagamento da “indenização” ficará a cargo do governo responsável pela paralisação do trabalho. Essa indenização é tão somente a de 40% sobre os depósitos de FGTS, prevista no art. 18, §1º, da Lei 8.036/90, ficando sob a responsabilidade da empresa todos os demais encargos trabalhistas, tais como férias, aviso prévio, 13º salário e contribuições previdenciárias.
Não há qualquer artigo na CLT dizendo que os “encargos trabalhistas”, com toda essa amplitude, seriam de responsabilidade do ente público.
Outra questão deixada de lado, equivocadamente, pelas empresas, é o requisito da paralisação total das atividades. Muitas, como a churrascaria Fogo de Chão, permaneceram funcionando em sistemas alternativos de venda, como delivery e drive thru, e, nesse caso, não se aplicaria o art. 486 da CLT.
Não só o Judiciário tem explicado às empresas o que é o fato do príncipe. Em 28 de maio, a Superintendência Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, vinculada ao Ministério da Economia, tornou pública uma Nota Informativa (SEI nº 13448/2020/ME) em que orienta a atividade fiscalizatória a considerar que o fato do príncipe somente pode ser cogitado na hipótese de “paralisação total” das atividades da empresa. Quando uma empresa segue funcionando parcialmente, não se configura o fato do príncipe.
A instrução também esclarece que a única verba devida pelo poder público no caso de ocorrência do fato do príncipe é a indenização de 40% do FGTS. Os outros encargos trabalhistas seguem sendo ônus do empregador, que assumiu os riscos do negócio.
No último dia 6 de julho, o mesmo Presidente que, no mês de março, gestou o Príncipe salvador, encarregou-se de abortá-lo. Sancionou a Lei nº 14.020/2020, que, em seu art. 29, afasta peremptoriamente a aplicação da teoria do Fato do Príncipe às relações trabalhistas no contexto da pandemia.
Diz a norma que “Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020”.
Tudo converge, então, para a conclusão de que o príncipe que veio à luz com a fala do Presidente da República era outro, totalmente diferente daquele previsto na CLT, e não terá a potestade de socorrer as empresas como anunciado por Sua Excelência. Ao que parece, o tal príncipe não passou, depois de submetido à prudência do entendimento judicial e legislativo, de uma criatura gestada em arroubo irrefletido. Com isso, tem-se o fim da quimera com uma herança de sobrecarga de trabalho para os tribunais.
No caso do reinante bávaro do século XIX, atitudes consideradas bizarras e perdulárias, além da indiferença para com os negócios de Estado, teriam levado à declaração de insanidade que o afastou do poder, em 1886. Restou, porém, o legado da música e dos belos castelos.
Ednaldo Brito é Procurador do Trabalho
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP