Uma dimensão da atual crise desconstituinte que merece consideração. Ela envolve uma série de ações e omissões do governo federal e atinge setores cruciais da ordem constitucional
Por Cristiano Paixão*
O noticiário é dominado pelas crises. E são muitas. Enfrentamos hoje ao menos quatro crises graves: sanitária, política, econômica e institucional. E algumas vezes não percebemos que há um outro tipo de crise, nem sempre tão evidente, mas com consequências que podem ser mais duradouras. Trata-se da crise constitucional, com a qual o Brasil vem convivendo desde 2016, e cujo desfecho permanece em aberto, inclusive em relação ao futuro da democracia em nosso país.
Em outros artigos, tivemos a oportunidade de analisar essa crise em dois momentos diferentes:
(1) o período 2016-2017, com a aprovação de um processo de impeachment contrário à ordem constitucional e o ataque aos direitos sociais caracterizado pela promulgação da Emenda Constitucional nº 95 (teto de gastos) e pela aprovação da reforma trabalhista; e
(2) o período 2019-2020, que se iniciou com mais ataques aos direitos sociais, com a extinção do Ministério do Trabalho no início de 2019 e se aprofundou com a pandemia da Covid-19, que, por um lado, demonstrou a atitude negacionista do governo, gerando dezenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas se houvesse planejamento e coordenação nas ações governamentais, e por outro ensejou a edição de normas como as Medidas Provisórias nº 927 e 936, de cunho precarizante em relação ao mundo do trabalho. Essas MPs, cujas normas foram em sua grande maioria validadas pelo STF, são uma mostra daquilo que denominamos “oportunismo desconstituinte”.
Mas há ainda outra dimensão da atual crise desconstituinte que merece consideração. Ela envolve uma série de ações e omissões do governo federal e atinge setores cruciais da ordem constitucional: igualdade racial, cultura, patrimônio histórico e meio ambiente. Para promover essa crise, o Executivo não precisa emitir medidas provisórias ou trabalhar pela aprovação de projetos de lei. Basta “destruir por dentro”, ou seja, adotar práticas administrativas que violam o texto constitucional de modo frontal, ora retirando a proteção mínima estabelecida pela Constituição, ora subvertendo alguns de seus dispositivos fundamentais. Em ambos os casos, estamos diante de práticas desconstituintes.
A começar pela igualdade racial: não há dúvida acerca do compromisso da Constituição de 1988 com o tema. O repúdio ao racismo é princípio informador da postura do Estado brasileiro em suas relações internacionais (art. 4º, VIII) e a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII). Além disso, vários programas de ações afirmativas que envolvem a dimensão da raça foram implementados e julgados constitucionais, em votação unânime, pelo Supremo Tribunal Federal, como é o caso das políticas de cotas nas universidades. No plano governamental, foi criada, em 1988, a Fundação Palmares, com o intuito de implantar e fomentar políticas públicas ligadas à cultura afro-brasileira. Porém, o atual Presidente da Fundação rejeita a promoção de religiões de matriz africana, não reconhece o papel histórico de Zumbi dos Palmares e qualificou o Movimento Negro como “escória maldita”. Uma ação popular requereu sua destituição do cargo, o que foi deferido num primeiro momento; o Presidente do STJ, porém, determinou seu retorno à Presidência, quadro que se mantém nos dias de hoje.
A Constituição possui várias referências à cultura e ao patrimônio histórico e cultural. No art. 215 fica estabelecido que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Mesmo assim, a gestão governamental nessa área revela uma postura de destruição do patrimônio cultural brasileiro.
Na Funarte, órgão destinado a conferir concretude à política pública voltada à cultura, foi nomeado como presidente – e chegou a exercer a função – um indivíduo que afirmou: “o rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto”, complementando a seguir que “O próprio John Lennon disse abertamente, mais de uma vez, que ele fez um pacto com o diabo, com o satanás para ter fama, sucesso”. Após a saída do primeiro nomeado para o cargo, foi indicado para a presidência da Funarte um ex-assessor de vereador no Rio de Janeiro (um dos filhos do atual Chefe do Executivo), cuja incumbência, no gabinete em que prestava serviços, era a de cuidar de “toda a parte de informática, como designer gráfico, web designer e banco de dados e mídias sociais”. E, por fim, a mesma postura de desconstrução ocorre em relação ao Iphan, órgão destinado à tutela do patrimônio histórico e artístico nacional. A pessoa indicada para o cargo tem formação na área de turismo e hotelaria, que parece desconectada das finalidades do Iphan. A nomeação foi inicialmente suspensa em virtude de decisão proferida em ação popular, porém foi liberada dias depois por provimento liminar emitido pelo TRF da 2ª Região.
Assim como ocorre em relação à cultura, a Constituição de 1988 reserva um capítulo à tutela do meio ambiente. E estabelece que o Poder Público e a coletividade têm o dever de “defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Desde a realização da Rio-92 o Brasil vinha desempenhando um papel internacional relevante em temas ligados à preservação do meio ambiente. A gestão atual do Ministério do Meio Ambiente, contudo, parece dedicada a inverter esse quadro. Um episódio recente é bastante ilustrativo dessa situação: ocupantes de cargos de gestão no Ibama ligados à fiscalização ambiental foram exonerados pelo ministro, como decorrência de ação realizada em terra indígena no Xingu. A fiscalização havia apreendido maquinário que era usado por grileiros na região amazônica. Ficou evidenciada a irregularidade da intervenção, que impede a devida atividade fiscalizatória em tema tão relevante.
O que todos esses casos têm em comum? A postura desconstituinte. Ao impedir a atividade estatal nas áreas da igualdade racial, da cultura, do patrimônio histórico e cultural e no meio ambiente, o governo federal torna explícita uma atitude de destruição da Constituição. Normas jurídicas, aí incluídas as de natureza constitucional, são enunciados textuais, decisões que vinculam o futuro, e que necessitam, no que diz respeito a políticas públicas, de um aparato institucional para sua efetividade. Nos casos aqui invocados, ocorrem dois fenômenos: desinstitucionalização e desvirtuamento. No caso da cultura, por exemplo, houve extinção do Ministério que havia sido criado no início da redemocratização brasileira (hoje a cultura é objeto de uma secretaria inserida no Ministério do Turismo). E há evidente esvaziamento dos órgãos ligados ao incentivo à cultura, assim como ao patrimônio histórico. Mas ocorre também desvirtuamento, que se manifesta quando órgãos do Poder Público passam a exercer suas atividades contra a proteção de determinados bens constitucionais, como ocorre na igualdade racial e no meio ambiente.
Igualdade racial, cultura, patrimônio histórico, meio ambiente. A postura desconstituinte atinge aspectos centrais da ordem constitucional estabelecida em 1988. E afeta setores da vida social que sempre contaram com a presença de ativistas, militantes e organizações da sociedade civil voltadas à promoção e defesa de direitos fundamentais. Mais ainda: setores que foram muito ativos no processo constituinte de 1987/1988, como o Movimento Negro, classe artística, organizações de defesa do patrimônio histórico, entidades de promoção do meio ambiente. Esses sujeitos individuais e coletivos também são autores e autoras da Constituição, como são as gerações presentes e futuras, encarregadas do trabalho incessante de reescritura do texto por meio de sua necessária atualização. Essas autoras e autores se deparam, desde 2019, com um movimento de destruição. A elas e eles cabe a tarefa, que não é simples, de manter essa autoria e reiterar a vigência da Constituição de 1988 em toda a sua dimensão inclusiva e emancipatória.
*Cristiano Paixão – Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.