Diálogo entre socialites reflete pensamento da maior parte da elite brasileira – a “elite do atraso”, nas palavras de Jessé Souza
Por Rômulo Moreira* no GGN
“Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os ´Printemps` com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o èxtase fará sempre Sol!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!…”[1]
Repercutiu esta semana que passou uma conversa gravada ao vivo, desde um dos luxuosos aposentos do Palácio dos Bandeirantes (sede do governo paulista), com o consentimento de ambas as duas interlocutoras, e publicado, quase como um acinte!, em uma rede social. Tratou-se, como se pode ver, de uma conversa trivial, entre Bia e Val. Para quem tem estômago, e ainda não assistiu, veja aqui (ou não veja).[2]
Evidentemente, esta obscenidade (pois fere o pudor) tornou-se um dos assuntos mais comentados do Twitter, e várias instituições como, por exemplo, a Pastoral do Povo da Rua, divulgaram notas de repúdio contra o conteúdo da conversa entre as duas legítimas representantes da elite endinheirada da Paulicéia Desvairada de que falava Mário de Andrade, já em 1922, e que povoa, na verdade, as mentes de boa parte das metrópoles tupiniquins.
No vídeo, uma das mulheres, demonstrando uma sensibilidade humana de dar inveja a Bernardone, afirma – absolutamente dentro do contexto nojento em que se travou o diálogo, e não fora dele, como desavergonhadamente alegado depois em sua defesa – afirma que não se deveria doar marmitas para moradores de rua. E por quê?
Então, ela mesma tratou de responder, impassivelmente como estava: “porque as pessoas gostam de ficar na rua.” Simples, não? Afinal, como ela mesma complementou, as pessoas “têm que se conscientizar e sair dessa situação.”
Textualmente, eis o que ela disse, para que não haja dúvidas da parvoíce dita:
“A pessoa quer, ela quer receber, ela quer a comida, ela quer roupa, ela quer uma ajuda e não quer ter responsabilidade. Mas olha, falando dos projetos sociais, algo muito importante é assim: as pessoas que estão na rua, não é correto você chegar lá na rua e dar marmita e dar porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua.”
Vejam as tolices: a rua é um atrativo! A pessoa gosta de ficar na rua!
Bem, dentre outras coisas, o que certamente Bia não sabe é que a população de rua de São Paulo, a cidade mais endinheirada do Brasil, saltou de 15.905, em 2015, para 24.344 em 2019, o que representou um aumento inacreditável de 53% no período, conforme mostrou pesquisa feita pela Prefeitura paulista.
A propósito, segundo a Prefeitura de São Paulo, e ao contrário das “ideias ortodoxas” de Bia, não é a falta de responsabilidade que leva alguém a viver num absoluto estado de degradância e indignidade, mas “um conjunto de fatores, entre elas a crise econômica, desemprego, renda, conflitos familiares, moradia, saúde, migração, saída do sistema penitenciário e uso abusivo de álcool e drogas.”[3] E a situação só piora, evidentemente, pois, ainda segundo dados oficiais, a pandemia de coronavírus já matou 28 sem-teto na capital paulista.[4]
E sabe leitor o que é pior mesmo do que a fala de Bia? É o fato de que, rigorosamente, ela reflete o pensamento de grande – da maior parte – da elite brasileira, a “elite do atraso” de que fala Jessé Souza, essa terça parte que apoia as ideias fascistas dele.
Já que lembrei de Jessé, importante trazê-lo para o debate, especialmente quando ele trata das origens da perversidade da elite paulistana, tão bem representada no vídeo: “A elite do dinheiro paulista, que havia perdido o poder político ainda que mantido o poder econômico, agiu de modo astucioso, calculado e planejado. Percebeu claramente o sinal do novo tempo. A truculência do voto de cabresto estava com os dias contados. Em vez da violência física, deveria entrar no seu lugar a violência simbólica como meio de garantir a sobrevivência e longevidade dos proprietários e seus privilégios.”
Conclui Jessé, pensando para mais além do velho patrimonialismo brasileiro, tão (acertadamente) decantado por tantos, que, “com o Estado na mão dos inimigos, a elite do dinheiro paulistana descobre a esfera pública como arma. Se não se controla mais a sociedade com a farsa eleitoral acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma de controle oligárquico tem que assumir novas vestes para se preservar. O domínio da opinião pública parece ser a arma adequada contra inimigos também poderosos.”[5]
Definitivamente, estamos mesmo diante daquele ornitorrinco pensado por Chico de Oliveira (nome que ele sugeriu para o Brasil de hoje, certamente pensando em Darwin), ou seja, “uma das sociedades capitalistas mais desigualitárias – mais até que as economias mais pobres da África que, a rigor, não podem ser tomadas como economias capitalistas -, apesar de ter experimentado as taxas de crescimento mais expressivas em período longo.”[6]
Para concluir, e já que falei de duas futilidades, faço referência agora a três mulheres extraordinárias que foram, também nesta semana, relembradas, ainda que por alguns apenas, a propósito da data em que se comemorou a independência da Bahia. Como se sabe, no dia 02 de julho 1823, o exército e a marinha do Brasil conseguiram a separação definitiva em relação ao domínio dos portugueses. As tropas brasileiras entraram na cidade de Salvador, então ocupada pelo exército português, tomando-a de volta e consolidando a vitória brasileira.
Aliás, “nenhum estado brasileiro comemora a Independência do Brasil com tanto entusiasmo quanto a Bahia, e a verdadeira festa acontece no dia 2 de julho, data da expulsão das tropas portuguesas de Salvador, em 1823. E só perde em grandiosidade para o Carnaval. Afinal, os baianos têm bons motivos para celebrar, pois foram eles os brasileiros que mais lutaram e mais sofreram pela Independência.”[7]
Neste episódio, destacou-se Maria Quitéria que, ao saber das lutas da independência, conseguiu uma farda do exército e, fingindo-se homem, alistou-se nas tropas para combater os portugueses.[8] Também Maria Felipa de Oliveira, uma mulher negra e pobre (uma marisqueira na Ilha de Itaparica), que liderou um grupo de mulheres e homens de diferentes classes e etnias, fortificou as praias com a construção de trincheiras, organizou o envio de mantimentos para o Recôncavo, além de participar ativamente de vários conflitos. Por fim, Joana Angélica, abadessa no Convento da Lapa, que foi covardemente assassinada quando tentava proteger os soldados brasileiros contra a invasão do convento, “num gesto dos mais lamentáveis da nossa história, transformando aquela religiosa na primeira mártir do Brasil.”[9]
Realmente, “o sentimento de independência estava bastante arraigado na população da Bahia. Prova disso é a participação efetiva de gente humilde no movimento revolucionário.”[10]
Trata-se, para quem conhece, de uma linda história de resistência e amor à terra, contada a partir da luta e dos ideais de três mulheres. Viva a Bahia, viva a coragem, e vivas às mulheres brasileiras! Como diz o Hino ao 2 de Julho:
“Nasce o sol a 2 de julho
Brilha mais que no primeiro
É sinal que neste dia
Até o sol, até o sol é brasileiro
Nunca mais, nunca mais o despotismo
Regerá, regerá nossas ações
Com tiranos não combinam
Brasileiros, brasileiros corações
Cresce, ô filho de minha alma
Para a pátria defender
O Brasil já tem jurado
Independência, independência ou morrer
Nossa pátria, hoje livre
Dos tiranos, dos tiranos não será.”
Post escriptum (ou antes que eu me esqueça): enquanto o Brasil registrou quase 64.000 mortes por coronavírus, ontem (4), o presidente da República divertiu-se (como se vê na foto) em um almoço na casa do embaixador americano no Brasil, exatamente para comemorar… a independência dos Estados Unidos. Ele fez questão de divulgar o encontro festivo em sua rede social (vejam como todos estão contentes tão), sem máscaras, aliás. Dentre os convidados, além dos norte-americanos, os militares de sempre: Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Fernando Azevedo (Defesa), Walter Braga Netto (Casa Civil), Flávio Rocha (Secretário Especial de Assuntos Estratégicos). Faltou, pelo menos na foto, o velho general Heleno (Gabinete de Segurança Institucional, aquele mesmo que divulgou os seus dados pessoais na rede mundial de computadores). O ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) não podia faltar, obviamente; tampouco o filho Eduardo, afinal se trata do ex-futuro embaixador brasileiro nos states.[11]
[1] ANDRADE, Mário de. De Paulicéia Desvairada a Café (Poesias Completas). São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n2-sa9LbZqI. Acesso em 05 de julho de 2020.
[3] A respeito desta pesquisa, é importante ressaltar o que pensa o padre Júlio Lancelotti, que atua há décadas junto à população de rua: “o número real deve ser ainda maior já que os pesquisadores não levaram em conta que a dinâmica e a configuração atuais de como os moradores de rua se espalham pela cidade.” Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/30/populacao-de-rua-na-cidade-de-sp-chega-a-mais-de-24-mil-pessoas-maior-numero-desde-2009.ghtml. Acesso em 05 de julho de 2020.
Leia também: A Teoria da Prática na reinvenção do jornalismo, por Carlos Castilho
[4] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/03/bia-doria-diz-que-nao-se-deve-doar-marmitas-para-moradores-de-rua-porque-eles-gostam-de-ficar-nas-ruas-e-um-atrativo.ghtml. Acesso em 05 de julho de 2020.
[5] SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso – Da Escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017, p. 131. Recordando Habermas, “a esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público.” (HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 42).
[6] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista – O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 143. O ornitorrinco é “altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançando, tatibitate, pela Terceira Revolução, a molecular-digital ou informática.” Segundo ele, “esta é a descrição de um animal cuja ‘evolução’ seguiu todos os passos da família! Como primata ele já é quase Homo sapiens! Parece dispor de ‘consciência’, pois se democratizou há já quase três décadas. Falta-lhe, ainda, produzir conhecimento, ciência e técnica: basicamente segue copiando, mas a decifração do genoma da Xylella fastidiosa (MOURA, Mariluce. O Novo Produto Brasileiro. Pesquisa, n. 55. São Paulo: Fapesp, julho de 2000) mostra que não está muito longe de avanços fundamentais no campo da biogenética; espera-se apenas que não resolva se autoclonar, perpetuando o ornitorrinco.” (pp. 132-134).
[7] GOMES, Laurentino. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010, pp. 195-196.
[8] Maria Quitéria de Jesus, então com trinta anos, “apesar da proibição de mulheres nos batalhões de voluntários, decidiu alistar-se às escondidas. Cortou os cabelos, amarrou os seios, vestiu-se de homem e incorporou-se às fileiras brasileiras com o nome de ´Soldado Medeiros`. Duas semanas depois foi descoberta pelo pai, que tentou levá-la à força de volta para a casa. Os colegas de quartel, já impressionados com a habilidade com que Maria Quitéria manejava armas, imploraram para que ela ficasse. O oficial comandante concordou, mas impôs uma condição: em vez da farda masculina, ela usaria um saiote à moda escocesa. Ela participou de pelo menos três combates e em todos se destacou pela bravura.” (GOMES, Laurentino. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010, p. 204).
[9] MORAES, Neuzemar Gomes de. Portugal e Brasil nos Oceanos da História. Rio de Janeiro: Zaghaz Editora, 2016, p. 194.
[10] MORAES, Neuzemar Gomes de. Portugal e Brasil nos Oceanos da História. Rio de Janeiro: Zaghaz Editora, 2016, p. 193.
[11] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/sem-mascara-bolsonaro-comemora-independencia-dos-eua-com-embaixador.shtml?origin=uol. Acesso em 05 de julho de 2020.
*Rômulo Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia, Professor universitário e membro fundador do Coletivo Transforma MP