Supremo vem praticando um ativismo judicial da destruição, que ataca diretamente um dos núcleos da Constituição – os direitos sociais
Por Cristiano Paixão e Ricardo Lourenço Filho no Jota
O direito do trabalho está sendo reescrito no Brasil. Os autores do texto, contudo, não estão nas fábricas, escritórios, lavouras, lojas ou canteiros de obra. Quem comanda a nova ordem é essa entidade abstrata que se convencionou denominar “mercado”, cujas visões informam uma série de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos anos de 2016, 2018 e 2020. No que diz respeito aos direitos sociais, e particularmente ao direito do trabalho, o STF tem sido um verdadeiro agente desconstituinte.
A decisão monocrática divulgada no último dia 27 de junho, referente ao índice de correção de débitos trabalhistas, é a etapa mais recente desse “ativismo judicial da destruição”.
O protagonismo do STF se revela em três conjuntos de decisões.
O primeiro deles relaciona-se ao direito de greve de servidores públicos. Em dois casos julgados em 2016 (uma decisão monocrática e um acórdão do Plenário), foi inteiramente subvertido o sentido do texto do art. 9º da Constituição da República, que estipula o direito de greve, “competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. No primeiro precedente (Reclamação nº 24.597/SP), foi determinado que uma greve de trabalhadores do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo fosse imediatamente paralisada. No segundo caso (RE 693.456-RJ), decidiu-se, com repercussão geral, que o administrador público tem o dever de proceder ao corte dos salários dos servidores em greve assim que a paralisação se iniciar.
As decisões privam do direito de greve determinadas categorias de servidores públicos e, para as demais, impõem o desconto salarial assim que o movimento paredista for desencadeado. Como escrevemos à época, é o mesmo raciocínio utilizado na teoria do direito penal do inimigo. Para evitar que o “mal” (a greve no setor público, na visão do STF) se concretize, adotam-se medidas que combatam, “na raiz”, qualquer movimento de paralisação, inviabilizando, em termos práticos, o exercício do direito.
Essa inversão do sistema de proteção do trabalho, em que a greve é, de início, pressuposta como algo a ser evitado, ocorreu num período de plena vigência de uma Constituição democrática, que assegurou o direito de greve. A partir das decisões do STF, a repressão tornou-se um imperativo a todo administrador público que se deparar com a deflagração de um movimento paredista.
Passemos à segunda onda de decisões precarizantes do STF em relação ao mundo do trabalho. Elas ocorreram em 2018.
Uma delas compreende a chamada terceirização, que nada mais é senão a locação de mão de obra, por meio da qual o trabalho humano é admitido como objeto da atuação empresarial. Ao invés da relação bilateral empregado-empregador, na terceirização há uma empresa intermediária que fornece a mão de obra e obtém lucro por meio dessa atividade. Isso significa maior precarização da situação do trabalhador. A prática, inicialmente vedada pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, acabou por afirmar-se em alguns campos do mercado, especialmente serviços de limpeza e conservação. O TST, por meio de sua Súmula nº 331, adotou então uma solução intermediária, que privilegiou a distinção entre atividade-fim e atividade-meio da empresa como critério definidor para a licitude, ou não, da terceirização.
Esse critério foi derrubado em julgamento realizado pelo Plenário do STF (ADPF 324 e RE 958.252-MG). O Supremo deliberou que a diferenciação entre atividade-meio e atividade-fim não mais poderia ser utilizada como definidora da licitude da intermediação de mão de obra. Em termos práticos, o STF decidiu pela liberação completa da prática da terceirização. E apontou que a previsão constitucional da livre iniciativa e da livre concorrência garante a locação da força de trabalho e sua negociação como mercadoria, a despeito do sistema de proteção laboral também assegurado na Constituição.
Ainda no ano de 2018, outra decisão viria abalar a organização sindical brasileira. A Lei nº 13.467/2017 decretou o fim da contribuição sindical obrigatória, que havia sido recepcionada pela Constituição de 1988 e continuava a ser um dos lastros da organização sindical. Vários problemas se colocaram com o fim abrupto de tal receita, feito de modo apressado e sem diálogo social na sua apreciação, entre eles a perda da principal fonte de arrecadação dos sindicatos profissionais, que sofreram um enorme impacto com o novo quadro. Mas o STF validou a mudança legislativa, sem considerar sua própria jurisprudência quanto à natureza tributária da contribuição sindical, que, por disposição constitucional, só poderia ser modificada mediante lei complementar.
Um terceiro conjunto de decisões viria em 2020, já em decorrência da pandemia da Covid-19. E seus efeitos são devastadores, especialmente diante do quadro de crise social e econômica desencadeada pelo surto do coronavírus.
Uma das medidas provisórias baixadas pelo governo, a de nº 936, estabeleceu a possibilidade de redução de jornada e salário dos trabalhadores por meio de acordo individual. Ocorre que a Constituição da República é clara ao impor a necessidade da negociação coletiva (com a titularidade do sindicato profissional) nessas situações. Mesmo assim, em julgamento de medida cautelar, o Plenário decidiu pela validade do preceito, diante da situação de emergência trazida pela pandemia. O STF optou pela especulação ad terrorem em detrimento da Constituição: a prevalência do acordo individual seria a medida adequada para minorar os efeitos da crise econômica e evitar o risco de demissões em massa. É o sacrifício dos trabalhadores em suposto benefício da sociedade como um todo.
Reiterando o entendimento manifestado no julgamento dos casos de terceirização, o STF decidiu julgar constitucional a Lei nº 13.429/2017, que concedeu ampla liberdade aos empregadores na locação de mão de obra. Ficou referendada, assim, a utilização irrestrita da terceirização, o que atrairá situações de crescente desigualdade e discriminação, com trabalhadores “próprios” e “terceirizados” no mesmo ambiente de trabalho, exercendo as mesmas funções, mas com rol substancialmente diverso de direitos e garantias. A decisão foi analisada com profundidade em recente artigo elaborado pelos professores Renata Dutra e Vitor Filgueiras.
Por fim, uma decisão monocrática do STF determinou a suspensão, até pronunciamento final do Plenário, de todos os processos em curso na Justiça do Trabalho que tratassem da atualização monetária dos direitos trabalhistas. Atendendo a um pedido da representação do sistema financeiro nacional, a decisão, em ação declaratória de constitucionalidade, impediu a conclusão de julgamento, no Pleno do TST, em que já havia maioria de votos pela aplicação do IPCA como índice de correção monetária, ao invés da TR (que está zerada desde setembro de 2017).
O STF conta com precedentes em que reconheceu que a TR é inadequada como critério de preservação do valor monetário e que sua utilização caracteriza desrespeito à garantia constitucional do direito de propriedade. A decisão monocrática proferida na ADC 58 traz, no entanto, dois riscos. O primeiro, imediato, é a paralisação dos processos na Justiça do Trabalho, com prejuízo significativo para milhares de cidadãos que tiveram seus direitos judicialmente reconhecidos. O segundo é a possibilidade de que os direitos trabalhistas recebam do STF o tratamento de créditos de segunda classe, para os quais o inadimplemento não enseja a reparação que preserve seu valor original. Isso significaria que a proteção constitucional do direito de propriedade não vale para os trabalhadores. É a mesma lógica que vem sendo trilhada desde 2016. Para o STF, a Constituição garante direitos trabalhistas desde que seja do interesse do mercado. É importante frisar que as decisões aqui mencionadas não contaram com a unanimidade do tribunal. Há ministros que têm sistematicamente votado contra tal orientação. Uma maioria coesa, entretanto, tem prevalecido, o que resulta nessa série de decisões precarizantes proferidas pelo STF.
O processo de desconstitucionalização tem como resultado a formação de um direito do trabalho de exceção. Institui-se, no mundo do trabalho, um espaço de não aplicação da Constituição. Ao suspender casuisticamente o texto constitucional, a partir da orientação do mercado e do capital, o STF assume o protagonismo de uma contínua e coerente destruição do direito do trabalho.
Em meio a uma emergência sanitária de enormes proporções, o futuro do Brasil parece incerto. No que diz respeito aos trabalhadores, o futuro também parece precário e ameaçador. Alguns sinais de resistência e mobilização, todavia, surgem no horizonte, e merecem ser acompanhados com atenção. Um deles é a organização de uma categoria de trabalhadores fortemente marcada pela precarização e ausência de direitos: os entregadores, motoqueiros, mensageiros que são responsáveis pela circulação de bens e mercadorias nos nossos tecidos urbanos. Começa a surgir em São Paulo um coletivo de entregadores antifascistas. E uma greve geral foi marcada para o dia 1º de julho de 2020. Podemos qualificar essa mobilização como uma prática que tem uma dimensão constituinte, de luta por reconhecimento de condições mínimas de dignidade. A pauta principal do movimento é o fornecimento de alimentação e instalações sanitárias.
Mas, por outro lado, como procuramos enfatizar neste artigo, o STF, no campo do direito do trabalho, vem praticando um ativismo judicial da destruição, que ataca diretamente um dos núcleos da Constituição – os direitos sociais. Com decisões dotadas de efeito vinculante e eficácia para todos, o tribunal tem sido um agente da desconstitucionalização. O quadro nos mostra que o futuro do mundo do trabalho no Brasil está em disputa. Como evidenciado pela mobilização dos entregadores, os atores do mundo do trabalho têm uma grande tarefa à sua frente: lutar contra as pressões desconstituintes impostas desde 2016 e encontrar soluções novas, inclusivas e emancipatórias para todos aqueles que vivem de seu próprio trabalho.
Cristiano Paixão é Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Mestre em Teoria e Filoso?a do Direito (UFSC). Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB) e integrante do grupo de pesquisa “Trabalho, Constituição e Cidadania” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.
Ricardo Lourenço Filho é Doutor e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB; Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP; Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região; Integrante dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (CNPq/UnB) e “Trabalho, Constituição e Cidadania” (CNPq/UnB).