Arquivos Diários : junho 1st, 2020

Duprat

A atuação de Deborah Duprat serviu ainda de inspiração e alento para quem, anonimamente, se revoltou nos últimos anos com o desmonte do Estado Social

Por Thiago Rodrigues Cardin*

No último dia 22 de maio, com a mesma discrição apresentada durante todo seu mandato, a Subprocuradora-Geral da República Deborah Duprat despediu-se do cargo de Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal destinado, de acordo com sua apresentação oficial, à “proteção e defesa dos direitos individuais indisponíveis, coletivos e difusos – tais como dignidade, liberdade, igualdade, saúde, educação, assistência social, acessibilidade, acesso à justiça, direito à informação e livre expressão, reforma agrária, moradia adequada, não discriminação, alimentação adequada, dentre outros.

Desde então, Deborah Duprat vem recebendo justas reverências, de renomados juristas como Daniel Sarmento e Julio José Araujo Junior (autores da mais bela homenagem a Duprat até o momento[ii]) a entidades como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação[iii] e o Instituto Socioambiental[iv]. Sua despedida também culminou na divulgação de uma carta aberta, subscrita por três ex-Procuradores-Gerais da República e por mais de trezentos membros do Ministério Público, louvando a trajetória de Duprat frente a PFDC[v].

Como se não bastasse, a atuação de Deborah Duprat serviu ainda de inspiração e alento para quem, anonimamente e sem a importância dos juristas e entidades acima mencionados, se revoltou nos últimos anos com o desmonte do Estado Social que tem revertido boa parte das conquistas civilizatórias ocorridas pós Constituição Cidadã – grupo que inclui promotores de justiça de pequenas comarcas, que residem a centenas de quilômetros de Brasília e que jamais tiveram a honra de conhecer pessoalmente Duprat.

Deborah Duprat assumiu o cargo de Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão em maio de 2016, em meio a um processo de ruptura democrática que culminou na destituição da Presidenta eleita, em um período em que já prevaleciam visões obscurantistas e personalidades autoritárias. E, desde o início de sua gestão frente a PFDC, Duprat foi sinônimo de resistência e respeito à Constituição que jurou defender.

Enquanto surgiam projetos de lei visando a intimidação de professores e instituições de ensino, a PDFC de Deborah Duprat repudiava com veemência todas as ofensas ao princípio da liberdade de ensino, deixando claro que o malfadado Escola Sem Partido “impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem e contraria o princípio da laicidade do Estado – todos esses direitos previstos na Constituição de 88[vi].

Enquanto membros de sua instituição constrangiam responsáveis de alunos da rede pública de ensino a assistirem a uma palestra contra a “ideologia de gênero”, sob pena de multa de até 20 salários mínimos[vii], Deborah Duprat questionava leis que proibiam a discussão sobre diversidade sexual em escolas e promovia eventos destacando os direitos da população LGBT – alguns deles decorrentes de ações ajuizadas pela própria Duprat em anos anteriores, como o direito de mudança do nome do registro civil de transexuais sem a necessidade de se submeterem à cirurgia de mudança de sexo.

Enquanto um integrante do Poder Judiciário lançava livro proclamando “A discriminação do gênero-homem no Brasil em face à Lei Maria da Penha” (SIC)[viii], a PFDC participava de encontro sobre críticas feministas ao direito no Brasil[ix], defendia os direitos de mulheres trabalhadoras rurais[x] e pugnava o reconhecimento, pela Procuradoria-Geral da República, de que a criminalização do aborto, além de ferir o direito à saúde, atinge desproporcionalmente as mulheres em condições de vulnerabilidade econômica e social[xi].

Enquanto integrantes do Ministério Público vendiam livros criticando a “bandidolatria” (SIC), Deborah Duprat se reunia com familiares de presos e de egressos do sistema prisional[xii] e era homenageada pelo trabalho desempenhado para o fortalecimento das políticas e ações voltadas à prevenção e ao combate à tortura no Brasil[xiii].

Em resumo, enquanto brotavam aberrações ultraconservadoras em todos os ramos da sociedade, inclusive na instituição responsável pela defesa da Constituição, Deborah Duprat e sua equipe fincavam bandeiras humanistas, batalhavam pelos mais vulneráveis e ensinavam a resistência como imperativo ético.

Seria impossível listar todas as lutas travadas pela incansável Duprat. Conforme destacado na já mencionada carta aberta subscrita por três ex-Procuradores-Gerais da República e centenas de membros do Ministério Público:

“Direito à memória e à verdade, educação democrática e pluralista, defesa da saúde e do sistema público de saúde, direito à comunicação, reforma agrária e direitos das populações do campo, igualdade de gênero, direitos sexuais e reprodutivos, direitos da população em situação de rua, a necessidade de marcos vinculantes fortes às corporações empresariais em matéria de direitos humanos, a luta antimanicomial, assim como o enfrentamento ao racismoà LGBTfobia, à tortura e às mais variadas formas de violência foram alguns dos temas essenciais na agenda da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão nos últimos quatro anos.

Manifestações antidemocráticas também receberam pronta resposta da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão por meio de recomendações, representações pelo acionamento de mecanismos de controle de constitucionalidade, em notas técnicas, ofícios, notas públicas, participações em audiências públicas e outras manifestações. A efetiva garantia dos direitos constitucionais é condição indispensável ao exercício imparcial de uma instituição nacional de direitos humanos e foi o que a PFDC Deborah Duprat realizou nos dois mandatos que ora se encerram, em absoluta lealdade ao projeto constitucional estabelecido em 1988”.

E, conforme a escalada autoritária e antidemocrática ganhava força no país nos últimos dois anos, mais se intensificava a atuação da PFDC de Deborah Duprat, combativa até os derradeiros dias de seu mandato – dentre seus últimos atos, constam uma representação contra o presidente da Fundação Cultural Palmares por ofensas dirigidas ao movimento negro, a defesa do adiamento do ENEM e a notificação do Ministério da Saúde para informar o planejamento para lidar com o coronavírus em favelas e periferias.

Evidentemente, Duprat esteve longe de obter vitórias em todas as lutas que travou – aliás, sequer conseguiu fazer prevalecer, dentro de sua própria instituição, sua visão progressista e voltada à defesa intransigente da ordem democrática e dos direitos humanos. Porém, lembrando a frase de Darcy Ribeiro que tem se tornado quase um clichê nestes últimos difíceis anos, mesmo as derrotas de Deborah Duprat deveriam ser encaradas como conquistas por todos aqueles que anseiam por uma sociedade mais justa e igualitária – e aposto que Duprat detestaria estar no lugar daqueles que eventualmente a venceram.

Por falar em clichê, encerro com esta adaptação livre de um trecho de Adeus às Armas, de Ernest Hemingway:

– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?

– E isso importa?

– Mais do que a própria guerra.

No meio de uma pandemia e de uma escancarada ascensão fascista, com poucas perspectivas de melhoras a curto ou médio prazo, um eficaz exercício para a manutenção da sanidade mental é sonhar com um futuro melhor, permitindo-se pequenas vaidades de participação nesse futuro. Uma das minhas é imaginar que um dia, passado todo esse horror, contarei a meus filhos que, não obstante minha completa irrelevância, estive na mesma trincheira que a grande Deborah Duprat.

Em nome do Coletivo Transforma MP, por todas as lutas travadas e pelas ainda vindouras, muito obrigado, Deborah!

*Thiago Rodrigues Cardin – Promotor de Justiça do MPSP e membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Coletivo Transforma MP