Arquivos Diários : abril 23rd, 2020

Recordar, repetir e elaborar: Reflexões de um Brasil atual

Por José Borges de Morais Júnior*

Em um de seus mais importantes escritos sobre a técnica da análise, Freud escreveu, há mais de 100 anos, “recordar, repetir, elaborar”. De acordo com suas profundas reflexões, para quebrar a correia de transmissão que gera as neuroses e as repetições coercitivas, seria necessário retomar desejos esquecidos. Não como resultado de museologia específica a organizar e ordenar o próprio passado, mas como movimento indispensável para inventar novo futuro, de modo a refletir a necessidade de que um ideal projetado e desejante seja concretizado, a partir do presente, por meio da reatualização dos eventos pretéritos. Vale dizer, enquanto não revisitamos uma situação anterior com outras lentes, ressignificando-a, estaremos condenados à repetição por meio de ação atual, representada pela transferência do passado esquecido. A elaboração desejante, assim, constituiria mecanismo necessário rumo à concretização de novo horizonte.

Viver o Brasil de 2020 desperta a nítida sensação de estarmos caminhando a passos ligeiros rumo à idade média. Recentemente um capitão reformado foi eleito presidente do país tecendo rasgados elogios a um dos mais cruéis torturadores da ditadura militar, no interior do Parlamento, a casa do povo, símbolo maior das instituições democráticas. O ambiente de obscurantismo e negacionismo prevalece em detrimento da ciência e da tecnologia. O discurso moralista e excludente, tão bem condensado na expressão “cidadão de bem”, permeia todos os círculos sociais. Principalmente, e não menos preocupante, nas ações concretas dos diversos atores do sistema de justiça, bastiões últimos dos direitos fundamentais de todos os “cidadãos”. Em um domingo, a “tradicional família brasileira” sai às ruas para bradar contra a chaga da corrupção que impede o gigante adormecido de despertar para seletivo futuro de prosperidade que a poucos escolhe. Em um outro domingo, essa mesma família convoca atos nas redes sociais exigindo a volta do AI-5. Conquistas civilizatórias no campo dos direitos sociais são diariamente oferecidas em sacrifício ao invisível mas onipotente “deus” mercado. A liberdade de expressão é constantemente deturpada para justificar o cometimento de crimes contra a honra, a propagação de notícias falsas ou estimular ameaças contra as instituições democráticas. É um passado redivivo que nos assombra como aquele pesadelo que nos acompanha desde a primeira infância.

Há considerável consenso no sentido de que o Brasil não promoveu o encontro de contas com seu passado escravagista, autoritário, preconceituoso e excludente. De forma  diversa, vemos com relativa frequência nos noticiários julgamentos recentes de nazistas na Alemanha, quase todos de pessoas idosas, acusadas de terem cometido diversos crimes contra a humanidade. E por que a Alemanha resolveu trilhar esse caminho? Afinal, causa estranheza condenar pessoas idosas por crimes cometidos há muitas décadas. Para nós, brasileiros, essa solução parece encontrar óbice em questões humanitárias e de segurança jurídica, sobretudo em razão da prescrição. Todavia, a maneira peculiar como a Alemanha (re)construiu a sua história em relação ao mais repugnante episódio da humanidade está relacionada à necessidade de tornar sempre viva e atual a barbárie. Isto é, lembrar para não esquecer e, por consequência, não repetir, obrigando contínuo processo de elaboração e superação. Trata-se, assim, de medida profilática, configurando importante instrumento para manter acesa a chama da maior ferida da humanidade.

No Brasil, no entanto, as forças políticas da época pactuaram discutível anistia em relação aos crimes cometidos durante a ditadura militar, a qual resultou em alto custo à sociedade brasileira atual, simbolizado pela eleição de um presidente que se orgulha e faz apologia à ditadura militar. Restam poucas dúvidas de que essa anistia, tal como produzida, significou, no imaginário social, a falsa percepção de que havia dois lados em luta e que esses lados estavam em igualdade de posições. Nada mais falseado. Primeiro porque os militares “tomaram de assalto” o poder de governo legítimo (a isso dá-se o nome de golpe), eleito segundo princípios democráticos que até hoje são constantemente atacados por quem tem o dever moral, legal e constitucional de obedecê-los. Quero destacar com isso que a ditadura rompeu com a lógica do regime democrático, deixando sequelas que reaparecem com indesejável frequência na nossa história. Daí porque, de acordo com a narrativa hegemônica, os opositores da ditadura militar, até hoje, são vistos como pessoas avessas à democracia, e não como pessoas que se posicionavam, legitimamente, contra usurpadores criminosos da soberania popular. Segundo porque os lados em confronto não estavam, de forma alguma, em igualdade de disputa. De um lado havia todo o aparato estatal: executivo, legislativo e judiciário (esse último sempre ladeado, historicamente, do senhor de engenho, do general ou do detentor do grande capital). Polícia, armas, torturas, leis e tribunais, em outras palavras. De outro, indivíduos vistos como “inimigos” a serem aniquilados. Resultado final da “anistia”: os opositores ao regime cumpriram toda sorte de pena por lutar contra o regime criminoso. Foram calados, presos, às vezes processados, julgados e condenados, muitos torturados, e outros tantos expulsos da própria terra. Não se tem notícia, todavia, da condenação de militares durante esse período, sobretudo do mais alto escalão, o que poderia sinalizar uma verdadeira tentativa de reconciliação, assim como indicar demonstração real de respeito com o patrimônio histórico, social, cultural e jurídico da nação.

Como visto, estamos a repetir os mesmos equívocos do passado, de maneira a revelar que os sopros democráticos que costearam essa parte do Atlântico não passam de desvio de percurso, de trajetória. A democracia se apresenta ao país apenas por meio de resquícios, de lapsos, reminiscências. É uma construção precária que não se assenta em bases sólidas. É chegada a hora de aproveitar esse momento para lançar luzes sobre nossa memória com olhos críticos e, assim, elaborar a consciência coletiva necessária para impulsionar o futuro desejante de uma sociedade livre, justa e igualitária. As repetições coercitivas dos acontecimentos passados causam a angústia que lateja incomodamente em cada um de nós. Que a reflexão atual, todavia, possa ser suficiente para revisitarmos nossas lembranças esquecidas como etapa necessária para superar nossos entraves e, com isso, elaborar a construção de outro horizonte de sociabilidade, dessa vez mais inclusivo, solidário e, sobretudo, intransigentemente democrático. ´

 

*José Borges de Morais Júnior, Promotor de Justiça do Estado do Ceará e integrante do Coletivo Transforma MP

 

Governo Bolsonaro é denunciado na OEA

Advogados e políticos protocolaram denúncia contra o Governo Bolsonaro por violação ao direito de informação durante a pandemia de Covid-19.

O presidente, Jair Bolsonaro, divulga informações equivocadas e sem conhecimento científico sobre a pandemia de Coronavírus, além de não respeitar as orientações dos profissionais de saúde para conter a proliferação.

Durante a quarentena, Bolsonaro frequentou lugares públicos e provocou aglomerações, fato que pode representar risco a proteção de todos que estiveram presentes no mesmo local. Uma das consequências destas práticas seria o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que já está sobrecarregado com a propagação do Covid-19.

Por esse motivo, juristas protocolaram na última sexta-feira (17) uma denúncia junto à Organização dos Estados Americanos (OEA), contra o governo Bolsonaro por violação ao direito de informação durante a pandemia.

A Organização internacional não é capaz para julgar e criminalizar o caso, mas tem o poder de expedir recomendações e processar o Estado Brasileiro.

Leia abaixo a apresentação da denúncia:

A articulação política e a construção jurídica inicial da proposta de denuncia internacional do
Bolsonaro e do Estado brasileiro partiram do Mandado da Vereadora de Porto Alegre Karen Santos
(Psol/Alicerce) por meio de sua assessoria jurídica (o advogado Ronaldo Lacerda Pinto), o qual vem
elaborando há 03 semanas a denúncia internacional com o doutor e professor de Direito Lawrence
Estivalet de Mello, com o também doutor em direito e servidor público Rafael de Sampaio Cavichioli,
pelo professor titular da UFPR José Antonio Peres Gediel, e pela advogada Bruna Marcondes, a qual tem como um de seus temas de estudo o direito internacional.

O núcleo jurídico protocolou no dia 17 de abril de 2020 denúncia contra o Estado brasileiro à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA por violação realizada centralmente
pelo presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, ao direito à informação clara, precisa e
cientificamente embasada sobre as ações, articulações e políticas públicas eficientes de combate a
covid-19, o que, por consequência, atinge e viola os direitos à saúde e à vida, sendo as vítimas os
cidadãos brasileiros enquanto povo.

O objetivo político imediato é aumentar a pressão internacional contra a política de informação/desinformação levada a cabo pelo Governo Bolsonaro, discutindo a ineficiência dos
mecanismos e Poderes da República constituídos para combater a máquina bolsonarista de desinformação, a qual é tática central de sua política de poder.

A ideia desse movimento tático é utilizar instrumentos jurídicos (a denúncia em si e o conhecimento
técnico) em real serviço da discussão e mobilização política.
Núcleo de articulação político-jurídico.

Dezenas de entidades, professores, promotores, juízes, bem como vinte e oito parlamentares e
figuras públicas subscrevem a petição.

No campo das organizações da sociedade civil e entidades, assinaram a denúncia a Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), por intermédio de sua presidenta, a Juíza do Trabalho Valdete Souto Severo; Organizações que atuam no sistema internacional de Direitos Humanos Terra de Direitos e Justiça Global; o Coletivo Transforma Ministério Público, composto por promotores de justiça de todo o país; o Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (CNASP); as organizações Intervozes, Grupo Tortura Nunca Mais, Coletivo Nacional de Advogados e Advogadas pela Democracia, Movimento Justiça e Direitos Humanos, Frente Nacional de Territórios Quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul, dentre outras entidades, coletivos e sindicatos, citando-se a Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros, a título de exemplo.

Como figuras políticas, assinam a denúncia, além da idealizadora da articulação, a vereadora de
Porto Alegre Karen Santos (PSOL), e da Líder da Banca Federal do PSOL, Fernanda Melchionna, a
totalidade dos deputados e deputadas da bancada federais do PSOL também são signatários, aos
quais se somam o deputado estadual Renato Roseno (PSOL/CE) e distrital Fábio Felix (PSOL/DF), a deputada estadual pelo PSOL do Rio de Janeiro, Dani Monteiro, todos os/as codeputados/as da
bancada ativista do PSOL da assembleia legislativa do estado de São Paulo, e também o coordenador nacional do MTST, Guilherme Boulos, e a combativa coordenadora Nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara, dentre outros e outras valiosas companheiras e companheiros de luta, como se lê na versão completa da peça jurídica.
Entre outros juristas de importância nacional, assinam o professor Carlos Frederico Marés, professor e pesquisador que peticiona historicamente no sistema interamericano de direitos humanos, principalmente em defesa dos povos originários; o procurador de justiça do estado do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Netto; a juíza do trabalho Lecir Scalassara Alencar; a procuradora do trabalho, Zélia Cardoso Montal; e dezenas de professores universitários, de universidades como UFPR, UFS, UNICAMP E UFMG.

Faça o download da denúncia aqui

O tema também foi reportagem do Seu Jornal da TVT.