Em entrevista cedida ao Coletivo, Roberto Tardelli comenta sobre sua carreira como Promotor de Justiça e a transformação social que precisa acontecer
Por Marina Azambuja e revisão de Rômulo Moreira
No dia 18 de maio de 1984, Roberto Tardelli foi aprovado no concurso do Ministério Público e tomou posse como Promotor de Justiça do Estado de São Paulo. O jovem de Ribeirão Preto chegou à capital paulista em 1993 para trabalhar e permaneceu no cargo durante 24 anos, até ser promovido para o cargo de Procurador de Justiça, função que exerceu por aproximadamente seis anos.
Durante sua trajetória profissional, presenciou muitas injustiças como, por exemplo, o tratamento dado à população carcerária no Brasil e o descaso do governo em relação às pessoas mais pobres do país. Diante de tanta brutalidade, Roberto Tardelli ressalta que nunca perdeu a sensibilidade e ainda lamenta o sofrimento dos brasileiros. “O meu coração é de sangue, pulsa, sofre e chora”.
Foram milhares de casos em que trabalhou ao longo de sua carreira, sendo o mais famoso o assassinato de Manfred Albert e sua esposa Marísia von Richthofen, no qual Tardelli foi o promotor responsável por acusar Suzane e os irmãos Cravinhos. O caso que abalou o Brasil teve repercussão internacional.
Em 2014, Tardelli aposentou-se como Promotor de Justiça e hoje trabalha como advogado criminalista em seu escritório localizado em Higienópolis.
Em entrevista ao Coletivo Transforma MP, Roberto Tardelli conta um pouco mais sobre sua história, a importância que o Ministério Público tem para mudança social e a admiração que possui pelo Coletivo que luta bravamente por um Ministério Público Transformador.
Coletivo transforma MP: Roberto Tardelli, para você o que simboliza o Coletivo Transforma MP?
Roberto Tardelli: O Coletivo Transforma MP é uma tentativa heroica. Eu não me incluo nisso porque já estou fora do MP. Não sofro nenhuma pressão, nenhuma perseguição. A minoria consciente, que possui noção histórica do que faz, é a minoria que pode crescer.
O Coletivo Transforma MP é uma forma que você tem de combater a matilha. É uma forma que sem perder as funções institucionais dele. Você estabelecer um processo em que a compaixão também seja do promotor.
CTMP: Como você analisa o Ministério Público brasileiro?
RT: Nós nunca tivemos uma transformação no Ministério Público majoritariamente, mas também nunca tivemos um estado fascista como temos hoje. Hoje o Ministério Público é composto por um grupo de extrema direita e que não consegue pensar de outra forma, aliás, não consegue pensar. Como é que você hoje, pede a prisão de alguém ou impede que uma pessoa seja solta? Não se incomodam nem com a possibilidade da morte. O MP foi perdendo empatia.Uma vez um promotor disse que o coração dele era de pedra e peludo. O meu não.
O meu coração é de sangue, pulsa, sofre e chora.
Porque o acusador é tudo o que ele não pode ter. Ele está dizendo claramente que não sente empatia por mais ninguém. Que acabou a sua solidariedade. Ele virou uma matilha, o lobo da matilha.
CTMP: Como você analisa a atuação das promotoras e promotores, assim como os procuradores?
RT: Se você pensar nas entrevistas de promotores e procuradores todas elas de alguma forma causam vergonha alheia. Eles desconsideram a dignidade humana. São uns burocratas falando. Parecem um despachante bem pago. Se tirarem os procuradores e colocarem um despachante será a mesma coisa. É um grupo elitizado porque hoje é elitizado tudo o que pensa.
CTMP: O que deveria ser feito para mudar esse comportamento dos integrantes do Ministério Público e da Justiça brasileira?
RT: Isso é um processo cultural. Primeiro tem que mexer na forma de aquisição de recursos humanos das carreiras políticas. Precisamos preparar melhor os advogados para enfrentar esse tipo de situação. Temos que convencer os advogados que eles não devem temer nem juiz e nem promotor. Devem respeitá-los. Temer é diferente, o temor reverencial. Se nós não imaginarmos um pé de igualdade, não criaremos justiça. Hoje, o que se vive na maioria dos casos, é o advogado contra dois acusadores. O acusador oficial que é o promotor e o juiz de Direito. Você fica sem defesa. Porque não há nivelamento, igualdade. O Brasil é um país de bacharelismo, com o título de doutor mudará a sua vida. A preocupação com o concurso da magistratura, do Ministério Público e agora mais recentemente o da Defensoria, tem que passar em um concurso difícil. Nós temos a falsa ideia de que quem é aprovado no concurso passa porque sabe mais do que aquele que não passou. O concurso não é prova de conhecimento, é prova de acumulação de informações. Que é muito diferente. Conhecimento você adquire com muito mais bagagem. É mais difícil adquirir conhecimento do que adquirir informação. Você vai à um elevador de qualquer prédio está recebendo informação, no metrô ou no ônibus, está recebendo informação.
CTMP: Já que você falou em informação. Atualmente temos muitas informações em tempo real sobre quase tudo o que acontece no mundo. Você acredita que a população está ciente de tudo o que está acontecendo no Brasil e no mundo?
RT: Somos bombardeados por informações a todo tempo. A cultura é diferente. A informação se dissipa. Por isso que você faz a prova, morre de estudar um dia antes e dois depois da prova você não se lembra de mais nada. Você acumulou conhecimento para aquele momento, mas não formou o seu conhecimento. Muitas vezes passa no concurso e esquece tudo e vira a pessoa que era antes, o carinha moderati. Há um divórcio completo sim.
CTPM: E sobre a linguagem, acredita que a população brasileira é capaz de captar a linguagem utilizada no mundo jurídico para compreender o que passamos?
Há uma exclusão que é a da linguagem também. Como você chega para o pai e para a mãe e diz “Você precisa conversar mais com o seu filho”. O cara tem duzentas palavras para falar. O repertório de conversa ali é pequeno e curto. No júri eu parei de perguntar “Você leu o depoimento da polícia? ” Primeiro que isso não é mostrado e segundo que se fosse ele não leria porque não sabe ler. Embora estudou até a sexta, sétima ou oitava série. É constrangedor você pedir para o cara ler o depoimento. Ele não lê. A formulação da frase sujeito + verbo + predicado é de alta complexidade. Ele repete o verbo de ação da pergunta porque não consegue coordenar uma história na cabeça dele. Isso põe muita gente na cadeia porque não entendem o que está sendo perguntado. A linguagem do juiz, promotor e do advogado não faz sentido nenhum. Ele não consegue entender aquilo. Está fora do universo vernacular dele. Uma vez uma juíza perguntou “O senhor trabalha com afinco? ” O moço respondeu “Não, não. Eu trabalho com couro e com madeira. Esse afinco eu não sei o que é”. Há uma barreira de linguagem. A própria gíria é uma barreira de linguagem que é a forma que eles têm de se proteger. Há muitos anos eu fui até o banco para pegar o dinheiro para a faxineira e deixei o carro parado em um lugar que não devia. No banco tinha um grupo de operários braçais em volta do caixa automático. Deveria ter uns cinco. Eles estavam com pressa. Como a minha cara era mais conhecida e tal, perguntaram “Você é o Tardelli? Isso aqui não está funcionando”. Foi ajudá-los. A palavra “inserir” não se comunica com a população. Digitar a senha, escolher a operação. Eles ficaram envergonhados. A barreira da linguagem é intransponível.
CTMP: Já que a barreira da linguagem é intransponível, como a justiça poderia ser mais acessível para a população?
RT: O quadro é muito complexo. Ele envolve não apenas a legislação, ele envolve o aplicador da legislação, uma estrutura econômica por trás desse aplicador, uma estrutura política e isso tudo forma essa sociedade punitivista que temos hoje.
São 40 milhões de pessoas no Brasil estão no mercado informal. Se você imaginar cada uma dessas pessoas que estão no mercado informal influenciar outras duas serão 120 milhões. Metade da população brasileira. Que não tem acesso a nada. Também é isso que corresponde a uma expectativa da justiça que a população tem. Essa expectativa da justiça que têm a população é dessa população excluída. Não tem plano de saúde, não tem aposentadoria, não tem previdência social, não tem conta bancária e saca o dinheiro na lotérica porque está mais perto dele do que a agência do Santander. Se o cara quebrar uma perna ele vai passar fome. Eu conheci uma padaria em uma “perifa” distante que tinha um cofre e o dono da padaria guardava o dinheiro do pessoal mediante a cobrança de 10% de permanência. Isso é banco. Essas pessoas não tinham o que fazer com o dinheiro porque não podiam levar para a casa, não têm conta bancária. São pessoas alijadas do mundo. E na sua casa é perigoso porque a sua casa é frágil. Tem que agradecer a ele por ter colocado um cofre, ter cobrado de você uma grana, ter colocado uns caras para bater nos outros para guardar o seu dinheiro. O que é isso? É a exclusão social na sua frente. Por que você não tem conta bancária? Porque o banco não é para você. Se carrega em dinheiro. Tudo o que você compra você paga em dinheiro.
CTMP: Mudando um pouco o foco. Você entrou no Ministério Público no governo do Figueiredo, durante a Ditadura Militar. Como foi presenciar os casos que chegavam até o MP em um período conturbado da nossa história?
Naquela época havia presunção de culpa e os ditadores estavam lá para tramar a descrição. A falta de documento podia prender ou agredir alguém. Fazia parte da lógica da ditadura.
Lembro muito bem da euforia que tomou conta de nós a Lei da Anistia. Nós anistiamos torturadores, estupradores e assassinos. Esse pessoal continuou dentro do aparelho repressivo, influenciando esse aparelho. Nunca conseguimos implementar no Brasil uma política efetiva de direitos humanos, porque na verdade nunca fomos devotos dos direitos humanos e nem dos humanos direitos.
É resquício da ditadura militar e da colonização muito mais próximo e muito mais forte. Bater no preto, surrar o preto, castigar o preto. Havia pelourinho em praça pública. Não era um desvalor. Só não podia bater no branco. Como o preto é a clientela preferencial do crime em razão, é a carne mais barata. Não mexemos nisso e estamos pagando o preço.
CTMP: Você acredita que ainda há resquícios da ditadura em pleno 2020?
Quando acabou a ditadura, depois ela voltou e derrubou a Dilma. Ela (ditadura) ficou letárgica. Nós acabamos com a tortura política, mas nós não nos preocupamos em encerrar com a tortura nos crimes comuns. O crime político era praticado pela classe média.O “pau” continua tocando nas delegacias. Pendurar em pau de arara, choque elétrico. A tortura do crime comum prosseguiu. Porque não conseguimos julgar e olhar a ditadura para ver. Isso vai esgarçar a sociedade.
CTMP: Considerando as suas observações podemos constar que ainda há uma cultura da punitivismo na sociedade?
RT: É a cultura é um desvalor consentido pela própria sociedade. “Leva para casa. Bandido bom é bandido morto”. É esse mundo sombrio que estamos vivendo hoje. É essa caverna de ódio. Do punitivismo, do fascismo, essa dificuldade, desse horror da presunção de inocência. Eu nunca imaginei que aos 61 anos de idade em 2020 eu fosse discutir presunção de inocência. Esperava discutir sustentabilidade, uso dos recursos comuns. Limitação de propriedade privada, aí fazemos uma regressão na evolução humana. Presunção de inocência nunca teve discussão.
CTMP: Você acredita que ainda há influências religiosas no sistema judiciário e no Ministério Público brasileiro, principalmente no sistema penal?
RT: Quando se fala em estado laico as pessoas reduzem o estado laico ao crucifixo na parede das salas dos tribunais. Se fosse só isso. A questão do estado laico é muito maior e muito mais grave, pois se refere a uma forma de pensar do julgador.
Nós ainda pensamos no crime como pecado. Como uma escolha individual. Por isso que o pecado há de ser confessado.
Quem confessa o pecado tem sempre uma pena menor. Magalhães de Noronha, foi um Promotor paulista que escreveu uma coleção de Direito Penal que foi livro texto, acho, que de todas as faculdades de Direito do Brasil por muitos e muitos anos. Ele dizia nas análises do crime que todos eram contra a eutanásia, porque a dor redime, purifica e constrói. É a teoria da tortura. Você inflige a dor ao pecador para que ele se aproxime de Deus e confesse o pecado que cometeu.
CTMP: Como você avalia o sistema penal brasileiro?
RT: Acho que o grande problema do nosso sistema penal está no operador da Lei, no operador do Direito. Os nossos promotores e juízes são ultraconservadores em sua maioria. Claro que encontramos exceções de pessoas que são muito honrosas, dignas, muito bem assentadas. Mas são exceções. Todos os presídios paulistas estão com capacidade dobrada em relação a capacidade instalada. Não resolverão os problemas privatizando os presídios. Precisamos compreender o que é superlotação. Os detentos ficam confinados 20 horas por dia. Por duas horas vão caminhar no pátio, pois não podem parar. Quem estiver parado será investigado, porque podem estar tramando uma fuga. Não escolhe as pessoas que vão entrar na cela. Essas pessoas são depositadas lá e todas as cadeias são insalubres.
A sociedade está mais preocupada com a soltura de Suzane e dos Nardoni que não representam 0,1% da população carcerária.
As pessoas estão usando esses casos notórios que não são exemplo e chega a ser desonesto. A média do sistema penitenciário brasileiro consiste em pequenos traficantes e pequenos roubadores, furto ou roubo comum e estelionato. Na Fundação Casa. Que nome mórbido. Uma vez em um júri, o promotor usou o argumento para citar a criminalidade. Ele disse “depósito de assassinos, estupradores” Eu apresentei os dados da Fundação Casa e apenas 0,46% estão aprisionados por crimes sexuais e 1,15% por homicídio. A maioria dos jovens não cometem esses crimes porque tem medo da sexualidade. A adolescência traz situações horrorosas que são espontâneas. Eles não são agressores sexuais, mas são agredidos sexualmente.
A maioria absoluta de quem está na Fundação Casa são pequenos traficantes e pequenos roubadores. Eram pessoas que com a mínima organização social não estariam lá. Há uma ideologização da imputação criminal que fica evidente.
CTMP: E a história da “Miss Penitenciária”?
Há muitos anos fui convidado pela Alexandra Szafir para assistir ao concurso “Miss Penitenciária”. Uma das presas me contou como foi parar na cadeia. “Estava em minha casa na favela até que um homem chegou e disse “Você vai cozinhar no mocó”. Percebi que já era um sequestro e que tinha refém. Você vai dizer que não vai cozinhar? ”. Não existe o não. Essas pessoas não têm para onde ir. A jovem cozinhou o mocó. Estouraram o cativeiro e libertaram a vítima sem ferimentos. Essa jovem que estava cozinhando durante o sequestro também era refém. Era preta e favelada. A acusação foi que ela era membro importante da organização pois cumpria com a alimentação do refém. Como ela vai provar que não era nada disso? Ela pegou 25 anos de reclusão porque ninguém acreditou nela.
CTMP: O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Como você analisa essa desigualdade e como ela se manifesta no Justiça brasileira?
RT: A culpa é da minha geração. Quando o ensino público brasileiro faliu foi por uma virtude que ele se expandiu, porque se democratizou e a classe média migrou para o ensino provado. Quando a saúde pública faliu a classe média negra migrou para o seguro saúde.
Criou-se um fosso no Brasil. Existe uma escola para pretos e pobres e uma escola para classe média. Quando a violência se tornou um drama para o Brasil a classe média migrou para os condomínios fechados. No bairro há diversidade. Precisa de tolerância para se dar bem com a diversidade. Essa diversidade forma em sentido de tolerância. Aprendemos sem ter que escrever que o mundo é plural. Condomínio fechado não é bairro. É um agrupamento. Todos iguais, todas as casas são iguais. Você nunca vai encontrar uma pessoa preta ao seu lado em uma reunião de condomínio porque o preto no condomínio ou é faxineiro, ou é segurança ou é porteiro, motorista. Ele nunca é o seu vizinho. É uma relação sempre quebrada, sem igualdade que você está acostumado a dar ordem para as pessoas.
Quem é a classe média que entra nos concursos públicos? É a classe média que mora nos condomínios fechados, que estudas nas boas escolas exclusivistas. Que faz cursinhos preparatórios.
CTMP: E os seus colegas do MP e do Judiciário?
Se você for ao Fórum, você saberá quem é o juiz e quem é o promotor. Eles são todos iguais. É um padrão academia, puxador de ferro. Eles vivem em um mundo idealizado, eles são aqueles para quem os serviços são feitos. Eles chamam a polícia e ela aparece na hora para resolver o problema. O policial é subordinado a ele. Está indo atender o chefe.
CTMP: Na favela, a situação é diferente?
Diferentemente da favela. A polícia Militar do Jardins é diferente da Polícia Militar que chega na Cidade Tiradentes, por exemplo. São duas PMs completamente diferentes. As duas vivem os dramas que vivemos da exclusão social. A casa grande que quer chicotear a senzala. Isso ocorre porque existe uma crença que é nos bairros periféricos que mora a violência, que mora o bandido que assalta o cara bacana na paulista. Eu aprendi o seguinte. Uma vez eu estava em um júri e me disseram “dr. o senhor sabe quem não é bandido? Quem não tem apelido não é bandido. Ele está fora”. O nome é imperial para quem sempre esteve na senzala nunca teve nome, tem apelido. Nome tem quem está na casa grande. A identidade familiar é de quem preserva patrimônio. A linguagem é fundamental na coisa. Chama de elemento. A linguagem é macabra. A existência seguida de morte nasceu antes da linguagem do que no mundo fenomênico. Por exemplo: “Ele veio para cima de mim eu reagi e acabei matando”. Isso criou uma cultura de matança, um grupo de extermínio. Grupo é algo localizado, possível de ser identificado, encapsulado e isolado e eliminado.
CTMP: A pandemia de Coronavírus está colocando a população mais pobre em vulnerabilidade além de causar ainda mais desigualdade social. Como você analisa essa situação?
RT: Não é o isolamento de apenas uma pessoa, é um isolamento mundial. É diferente no Brasil e na Europa. Manda para casa metade da população que vive na favela? Vá para a Cidade Tiradentes, as pessoas têm outras prioridades que são mais efetivas evidentemente e por isso rejeitam o álcool em gel.
A conta da desigualdade social nós pagaremos. Precisamos passar por isso, pois o vírus que entra na favela também entra na mansão.
No sistema penitenciário vai ser um horror. As pessoas pensam que a violência é o maior “mal” do sistema penitenciário. Uma crise dessa pode matar muitas pessoas.