Arquivos Diários : abril 10th, 2020

Os entregadores de aplicativos e seus brioches

Por Christiane Vieira Nogueira[1]

 

Conta-se que, num passeio pelas ruas, de carruagem, em plena Revolução Francesa, Maria Antonieta perguntou ao seu cocheiro porque aquelas pessoas pareciam tão miseráveis. Ao ouvir que não tinham pão, dizem que disparou a famosa frase, que a fez entrar para a História de forma não tão nobre: “Se não tem pão, comam brioches”.

No Brasil Império, antes de qualquer sinal de saneamento básico, negros escravizados carregavam pelas ruas os dejetos produzidos pelas casas abastadas. Os tonéis com urina e fezes para serem despejados eram levados nas costas e a amônia e a ureia que escapavam os marcava com manchas brancas, daí a denominação tigre.

  1. Em meio à pandemia de coronavírus, os que podem permanecem em suas casas, em isolamento social. Pelas ruas, também são vistas situações desgraçadas. Algumas iguais às do final do século XVIII na França ou às do século XIX no Brasil.

Pessoas em situação de rua, com fome, sem ter onde lavar as mãos, a medida mais básica para prevenir a contaminação pelo COVID-19.

Homens negros de bicicleta ou moto carregando embalagens com comidas, dos restaurantes e lanchonetes para as casas. Com pressa, celulares nas mãos e, nas costas, mochilas vermelhas, laranjas ou azuis – as bags. Sem qualquer material para higienização, seja das mãos, das bags ou das bikes. Expostos, de peito aberto, ao coronavírus e também potenciais vetores de disseminação.

Segundo o relatório produzido pela Aliança Bike, sobre o perfil típico do entregador ciclista de aplicativo, “Ele é brasileiro, homem, negro, entre 18 e 22 anos de idade e com ensino médio completo, que estava desempregado e agora trabalha todos os dias da semana, de 9 a 10 horas por dia, com ganho médio mensal de R$ 992,00”.[1]

Os aplicativos que usam o trabalho dessas pessoas dizem não ter qualquer responsabilidade sobre sua saúde ou segurança. Afinal, não são seus empregados, mas “colaboradores”, “usuários” da plataforma digital. Tanto quanto qualquer um de nós quando, do alto de nossos apartamentos, faz um pedido de comida pelo delivery, escolhendo pizza, hamburguer ou sushi. Da mesma forma, os entregadores podem escolher livremente, diletantemente, acessar ou não o dispositivo para trabalhar. Só que o cardápio para eles, no momento, é bem restrito: correr o risco de se contaminar pelo COVID-19 ou passar fome.

É como dizia o escritor francês Anatole France: “A majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão”. Ou como pode dizer qualquer motoboy paulistano: Mano do céu!!!!

1 -Christiane Vieira Nogueira é Procuradora do Trabalho em São Paulo e Sócia-Fundadora do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP).

2- http://aliancabike.org.br/pesquisa-de-perfil-dos-entregadores-ciclistas-de-aplicativo/

 

Covid-19 e o oportunismo desconstituinte

Isso não significa que a constituição tenha sua vigência afastada em tempos de crise. É o contrário: exatamente nesses momentos devemos nos lembrar das regras e princípios constitucionais

Por Cristiano Paixão* 

Vivemos uma emergência na saúde pública. Uma pandemia com graves consequências para o presente e o futuro. Qual é o papel da constituição nesse contexto?

Decisões difíceis devem ser tomadas, e muitas vezes é necessário fazê-lo de forma rápida. Isso não significa, porém, que a constituição tenha sua vigência afastada em tempos de crise. É o contrário: exatamente nesses momentos devemos nos lembrar das regras e princípios constitucionais.

Há nessas situações um grande risco para a comunidade política, qual seja, o de permitir que decisões de longo alcance, que possam afetar a própria estrutura da ordem constitucional, sejam adotadas de forma irrefletida, sem debate e ao sabor das maiorias ocasionais. A Constituição brasileira prevê procedimentos excepcionais, como o estado de defesa e o estado de sítio, que permitem, por determinado período, ampliação dos poderes públicos e restrição de algumas liberdades individuais. Observe-se, aliás, que a pandemia do Covid-19 não constitui circunstância apta a ensejar decretação do estado de sítio, conforme acertada e oportuna manifestação do Conselho Federal da OAB. A legislação também prevê o estado de calamidade pública e a declaração de emergência em saúde pública de importância nacional, em que as funções do governo são redimensionadas.

Esses mecanismos, contudo, existem para a defesa da constituição. Eles permitem decisões ágeis, mas impõem prazos para execução das medidas e não desativam os órgãos de controle político e administrativo. E é importante que seja assim, para que se evitem abusos no uso desses instrumentos. Uma crise, por mais grave que seja, não é uma carta branca para alteração permanente da ordem constitucional. Quando essa orientação é esquecida, graves desdobramentos se produzem.

Vejamos o que ocorreu nos Estados Unidos da América no passado recente. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, o Congresso, pressionado pelo Executivo, aprovou em poucos dias uma lei antiterror (“Patriot Act”) sem nenhum debate público ou discussão em comissões. Houve aumento de poderes investigatórios das forças policiais e de segurança e diminuição de garantias como privacidade e devido processo legal. Muitos artigos tinham vigência limitada no tempo (“sunset clauses”). Com o aprofundamento da “guerra contra o terror” da era Bush, a vigência dessas normas foi prorrogada. Cerca de 14 mudanças temporárias tornaram-se definitivas, e outras partes do Patriot Act continuam em vigor “temporariamente” até hoje, por meio de novos adiamentos.

Uma situação similar ocorre com uma das maiores violações a direitos humanos da era contemporânea: o campo de prisioneiros de Guantánamo. Criado em 2001 numa base militar norte-americana em território cubano, o campo chegou a comportar mais de 600 prisioneiros em situação ilegal (sem proteção das normas internacionais ou acesso a cortes de justiça nos Estados Unidos). Houve casos de tortura, greves de fome e suicídios de detentos (ao menos três prisioneiros tiraram a própria vida, além de muitas outras tentativas). Hoje existem cerca de 40 prisioneiros em Guantánamo. Não é possível imaginar se e quando serão libertados, pois o Congresso proibiu o fechamento do campo e também vedou a transferência dos detentos para prisões em território norte-americano. Guantánamo recebeu os primeiros prisioneiros em janeiro de 2002. Em abril de 2020, quando estas linhas foram escritas, o campo continuava em funcionamento.

E agora pensemos no caso brasileiro. Tive oportunidade de afirmar, em textos escritos a partir de 2016, que o Brasil vem sendo submetido a uma espécie de “pressão desconstituinte”. Forças políticas e sociais (especialmente ligadas a setores do empresariado) têm defendido (e, em alguns casos, lograram aprovar) medidas contrárias ao arcabouço normativo estabelecido na Constituição de 5 de outubro de 1988. A tramitação e promulgação da EC 95 (referente ao teto de gastos), a aprovação de normas jurídicas que desconstituem o sistema de proteção ao trabalho (Leis nº 13.429 e 13.467, de 2017), a edição de norma administrativa flexibilizando o conceito de trabalho escravo (Portaria 1.129/2017, posteriormente revogada) e a extinção pura e simples do Ministério do Trabalho (no início de 2019) são exemplos de atos legislativos e administrativos que contrariam o disposto na Constituição da República.

É nesse panorama de crise com tendências desconstituintes que o Brasil enfrenta a pandemia do novo coronavírus. Já nos primeiros dias da emergência sanitária foi possível chegar a algumas conclusões: (1) o SUS é essencial ao combate ao Covid-19, especialmente pela sua universalidade e sua natureza pública; (2) os contratos de trabalho precisam ser protegidos por medidas extraordinárias, diante da necessidade de paralisação de grande parte da atividade econômica, em razão das medidas de isolamento social; (3) os trabalhadores chamados “informais” necessitam de igual ou maior proteção social, decorrente da sua própria situação de precariedade decorrente da inexistência de vínculo empregatício.

A expressiva maioria dos países afetados pela pandemia tem procurado reforçar o sistema público de saúde e proteger os trabalhadores em geral. No Brasil, contudo, algo diverso acontece. O governo federal editou a Medida Provisória nº 927, que permitia a suspensão do contrato de trabalho sem remuneração. Após reação negativa da sociedade civil, a medida foi parcialmente revogada. Logo após, outra MP foi editada, a de nº 936, que retomou várias violações existentes na anterior. Uma delas, particularmente grave, afronta a Constituição da República ao permitir um contrato individual de trabalho para reduzir jornada de trabalho e salário (o texto exige a negociação coletiva). Em manifestação recente, o ministro da economia afirmou que a pandemia do Covid-19 seria motivo para aprofundar as mudanças iniciadas com a reforma trabalhista, com a retirada de encargos sobre o contrato de trabalho.

Estamos diante de uma postura oportunista. Setores do governo e do empresariado vislumbram na crise atual uma “janela de oportunidade” para impor, em tempos de emergência, mudanças permanentes nas relações de trabalho. Procuram reescrever a história constitucional, diminuindo ainda mais a função pública do Estado e dos direitos sociais quando uma crise nos mostra a sua importância e centralidade.

Gerações de brasileiros –  trabalhadores, estudantes, médicos, empresários, líderes religiosos, políticos – lutaram, em tempos e modos diversos, para que o Brasil voltasse a ser uma democracia após 21 anos de arbítrio e violência. A Constituição de 1988 abriu uma perspectiva para o futuro. Muito do trabalho de implementação e vigência do texto está por ser feito. Mas deve haver um futuro, e ele não pode ser subtraído da atual geração e nem das próximas, também destinatárias do texto constitucional. Em tempos de crise, que a postura seja de afirmação da Constituição, contra toda e qualquer manifestação de oportunismo desconstituinte.

Cristiano Paixão* – Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB