Arquivos Diários : março 24th, 2020

“A nova razão do mundo” em um mundo em pandemia, por Vanessa Patriota da Fonseca

Todas essas medidas de exceção à ordem jurídico-trabalhista, com a MP 927, vieram em um momento em que o trabalhador já sentiu no lombo o peso da Reforma Trabalhista

Por Vanessa Patriota da Fonseca, no GGN

Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra e outros países capitalistas têm lidado com a pandemia por meio do estabelecimento ou do fortalecimento de programas de renda mínima, e focado em medidas de preservação do contrato de trabalho, o que permite que o trabalhador se isole socialmente, contribuindo para não propagar o coronavírus, mas com condições de garantir sua subsistência. Enquanto isso, o governo brasileiro optou por uma postura em sentido contrário.

De início, para demonstrar essa assertiva, chamamos a atenção para o art. 18 da Medida Provisória 927/2020, revogado horas depois da sua publicação, que prescrevia que, por mero acordo individual entre empregado e empregador,  o contrato de trabalho poderia ser suspenso, pelo prazo de até quatro meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional. Em português mais claro, o trabalhador poderia ficar por quatro meses em capacitação sem receber um real sequer. Não é preciso ser inteligente como o peixe para deduzir que isso aceleraria a estagnação econômica e colocaria o trabalhador em situação de maior vulnerabilidade, inclusive frente ao coronavirus. Como iria comprar medicamentos? Como iria adquirir itens de higiene? Aliás, como iria se isolar socialmente durante a pandemia, se teria que ganhar a rua em busca de qualquer bico que lhe permitisse garantir a sua subsistência?

Em que pese a revogação desse dispositivo, foi mantido o art. 2º da MP que dispõe que o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, e que esse acordo tem preponderância sobre instrumentos normativos eventualmente firmados pelo sindicato profissional e a categoria econômica.

O trabalhador possui tanta condição para negociar cláusulas contratuais, principalmente nesse momento de crise, quanto é correta a afirmação de que a terra é plana. Premido pelo temor do desemprego em meio a uma crise como a atual, o trabalhador aceitará qualquer negócio, qualquer migalha que lhe permita colocar um pão que seja na sua mesa. É se aproveitar da sua condição de vulnerabilidade e hipossuficiência para esmagá-lo.

Mas o pacote de maldades vai além, nos termos do art. 15 da MP, está suspensa a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto os exames demissionais. E nos termos do art. 16 está suspensa a obrigatoriedade de realização de treinamentos previstos em normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho.

Portanto, em meio a uma crise de saúde pública, o governo resolve afastar, exatamente, o cumprimento de normas de saúde e segurança no trabalho em vez de reforçar o seu cumprimento. O empregador não terá sequer a obrigação de realizar treinamento de segurança e saúde no trabalho visando orientar os empregados a se protegeram do vírus.

E mais, durante o de estado de calamidade pública os estabelecimentos de saúde podem, mediante acordo individual escrito, mesmo em caso de atividades insalubres e de jornada de 12X36, prorrogar a jornada de trabalho. Podem, inclusive, adotar escala de horas suplementares entre a décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada. Ou seja, está liberada a jornada de 24X24.

Não se refuta que seja razoável a prorrogação da jornada de profissionais de saúde em contexto de pandemia. Mas quando tais profissionais já exercem jornada de 12X36 a situação se torna extremamente grave. São trabalhadores que lidam com a vida humana, com instrumentos perfurocortantes, com risco à saúde, em situação de estresse, quando o risco de acidente aumenta consideravelmente.

E segue, a MP diz que durante o período de cento e oitenta dias, contado da data de sua entrada em vigor, os Auditores Fiscais do Trabalho atuarão de maneira meramente orientadora, exceto quanto à falta de registro de empregado, situações de grave e iminente risco, ocorrência de acidente de trabalho fatal, trabalho escravo e trabalho infantil.

Agora o empregador tem um salvo-conduto para fazer quase tudo o que quiser sem sofrer punição. Prorroga a jornada de trabalho por mais seis horas, e não será autuado. Põe trabalhador para laborar durante 12 horas seguidas sem intervalo para refeição, e não será autuado. Não fornecer EPI, justamente em momento de epidemia, e não será autuado.

Por fim, é importante destacar, também, a possibilidade de antecipação de férias prevista na Medida Provisória. Vejam, parece-nos bastante razoável a antecipação de férias, o estabelecimento de banco de horas, a antecipação de feriados não religiosos, entre outras medidas, durante esses dias tenebrosos em que vivemos e os que ainda estão por vir. Ocorre que o texto da MP diz que empregado e empregador poderão negociar a antecipação de “períodos futuros de férias” sem nada dizer sobre o total de períodos permitido. Se a situação durar seis meses e o empregador antecipar seis férias implica que ao retomar as atividades o trabalhador passará seis anos laborando sem parar. Trata-se de nítida afronta à saúde física e mental do trabalhador.

Todas essas medidas de exceção à ordem jurídico-trabalhista vieram em um momento em que o trabalhador já sentiu no lombo o peso da Reforma Trabalhista. A norma, além de não proteger o trabalhador formal, não prevê qualquer medida de proteção ao trabalhador informal, que vive em situação de grande instabilidade e penúria e que, para permanecer em isolamento social, ficará sem meios de subsistência no período de crise. Atualmente, 40,7% dos trabalhadores brasileiros ocupados sobrevivem do trabalho informal, muitos dos quais intermediados por plataformas digitais e com o vínculo empregatício sonegado apesar da existência dos requisitos da relação de emprego.

Se olharmos para além das nossas fronteiras, o caminho trilhado tem sido no sentido oposto. Na França, entre outras medidas, um dos responsáveis por filho menor de 16 anos, que não tenha com quem deixá-lo, recebe licença remunerada financiada pelo governo durante a pandemia. A Itália proibiu a dispensa imotivada dos trabalhadores por dois meses. Nos EUA, 1,5 trilhão de dólares será destinado, pelo governo, ao pagamento direto de benefício ao cidadão. E para não dizer que estamos olhando apenas para o hemisfério norte, o governo da Venezuela anunciou, neste domingo, que vai assinar um decreto proibindo rescisão de contrato de trabalho por iniciativa do empregador e suspendendo o pagamento do aluguel dos estabelecimentos comerciais e das residências principais nos próximos seis meses. Disse que serão concedidos subsídios especiais a mais de seis milhões de trabalhadores do setor privado e da economia informal. E, ainda, anunciou um plano prioritário de investimento agroalimentar.

Do lado de cá, o governo federal desligou profissionais do Programa Mais Médicos, contratados há três anos, por não terem o revalida, e reduziu em 158.452 o número de famílias atendidas pelo bolsa-família, sendo 96.861 da Região Nordeste. A decisão foi suspensa pelo STF após ajuizamento de ação por sete estados.

Por outro lado, o mesmo governo federal aprovou a liberação, pelo BNDES, de R$ 55 bilhões em medidas emergenciais de reforço para o caixa das empresas, mas, destes, apenas 5 bilhões para micro, pequenas e médias. Assiste-se à maior transferência de renda do pobre para o rico já vista nesse país, enquanto o trabalhador é jogado à própria sorte.

É preciso reverter essa lógica. É preciso tributar as grandes fortunas. É preciso promover uma alteração radical no sistema de seguridade social e de suas fontes de financiamento. Se a vida humana sofre, profundamente, com as movimentações das grandes corporações multinacionais, que invadem países, destrói o planeta e promove pobreza, é na taxação do seu capital que se deve vislumbrar um novo modelo de Estado que garanta a distribuição de rendas e riquezas, a estabilidade social e a dignidade humana.

É necessário que a população esteja atenta e forte. É imperioso ter clareza de o mais importante não é o tamanho da dívida pública, mas a preservação da vida humana!

*Vanessa Patriota da Fonseca  é Procuradora do Trabalho, membra do coletivo Transforma MP e Doutoranda em Direito do Trabalho pela UFPE

Acesse o artigo no GGN: https://jornalggn.com.br/artigos/a-nova-razao-do-mundo-em-um-mundo-em-pandemia-por-vanessa-patriota-da-fonseca/

Transforma MP repudia ação do governo sobre COVID-19

O Coletivo por um Ministério Público Transformador – Coletivo Transforma MP,
entidade associativa sem fins corporativos ou lucrativos formada por integrantes do
Ministério Público brasileiro engajados na luta pela democracia, diante da pandemia do
vírus COVID-19 (coronavírus), vem a público externar seu repúdio à forma por meio da
qual os governos estão lidando com tão grave problema.

É correta a orientação geral para o distanciamento e isolamento social, que têm o fim
específico de controlar a propagação e o contágio do vírus a um número grande de
pessoas. Por outro lado, para uma parcela significativa da população, a medida é inócua
e impossível de ser cumprida. Trabalhadores e trabalhadoras do transporte público, de
redes de supermercado, da área da saúde, de entregas por aplicativos e outros não foram
dispensados e correm sério risco (de serem infectados e de espalharem o vírus).
A suspensão do funcionamento de diversos setores da economia acarretará em um
número enorme de pessoas desprotegidas, o que pode gerar um caos social de
proporções difíceis de prever. Neste momento delicado, medidas efetivas por parte do
Poder Público, como garantia de renda mínima, abastecimento de produtos de primeira
necessidade e proteção ao trabalho (entre outras), se fazem necessárias, a fim de garantir
o mínimo vital para toda a população.

Afora isso, iniciativas para o atendimento de pessoas suspeitas ou infectadas, a
disponibilização de leitos, medicamentos e respiradores, espaços que garantam o
isolamento desses pacientes e a mais severa proteção aos trabalhadores do sistema de
saúde mostram-se imprescindíveis, para controlar e enfrentar adequadamente a
disseminação do vírus.
É hora também de questionarmos o modelo econômico neoliberal adotado no país há
vários anos. Em momentos como o presente, fica claro que o chamado “mercado” (seja
lá o que isso signifique) é completa e profundamente incapaz de atender aos anseios da
população. O dinheiro que é diariamente irrigado para o sistema financeiro, garantindo,
assim, o lucro de alguns poucos em detrimento de muitos, faz muita falta agora, quando
o governo precisa de estrutura e capacidade para proteger, principalmente, os mais
vulneráveis.

Os exemplos ao redor do mundo têm mostrado que Estados responsáveis e preparados
estão tendo mais sucesso no controle da pandemia. É preciso que a riqueza seja
imediatamente desconcentrada, revogando-se a EC 95 (chamada PEC da morte) e
garantindo-se que o Estado e a sociedade, em conjunto, possam deliberar sobre os
investimentos públicos necessários para a efetivação dos direitos previstos na
Constituição de 1988. Neste sentido, impõe-se a imediata concessão dos benefícios

previdenciários e assistenciais (benefício de prestação continuada e bolsa família), para
todos/as que têm direito.

Porém, ao contrário disso, entre as medidas tomadas até o momento estão a liberação de
R$ 55 bilhões de reais pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social) para a preservação das empresas, sem a exigência da devida contraprestação de
compromisso e responsabilidade com o contexto sóciolaboral. Outra não pode ser a
conclusão quando se compara esta medida com o conteúdo da MP 927/2020, que prevê,
no sentido do que já vinha ocorrendo com as Reformas Trabalhistas, a mitigação de
inúmeros direitos laborais, alguns fundamentais, inviabilizando a possibilidade de
isolamento social para as trabalhadoras e trabalhadores mais vulneráveis, entre os quais
os aproximadamente 38 milhões de informais. Não há garantias de renda mínima ou de
manutenção de postos de trabalho e o que se vislumbra é o aumento da miséria e do
desemprego.

Por fim, é urgente e necessário que o Estado brasileiro saiba lidar com o vírus mantendo
o respeito aos direitos fundamentais da população. Deve ser evitado ao máximo o uso
da força e da repressão. O vírus pode exigir medidas drásticas e emergenciais, mas não
pode revogar nosso estatuto jurídico para a implementação de uma ditadura velada, que
pode ter consequências trágicas em um futuro próximo.
Brasília, 24 de março de 2020

COLETIVO POR UM MINISTÉRIO PÚBLICO TRANSFORMADOR

TRANSFORMA MP