Arquivos Diários : agosto 24th, 2021

A ‘defesa da democracia’ como justificativa para o estado de exceção

Artigo do procurador e membro fundador do Coletivo Transforma MP, Gustavo Roberto Costa, no Conjur.

A prisão do ex-deputado Roberto Jefferson traz três questões que me parecem de suma importância no contexto atual. A primeira é a tal da “defesa da democracia” (seja lá o que isso signifique). A segunda é a renúncia paulatina dos mais básicos direitos fundamentais em nome do combate ao autoritarismo (uma contradictio in terminis). E a terceira é o péssimo hábito de setores progressistas em insistir na utilização do Direito Penal para a perseguição de inimigos políticos e para a conquista de direitos (a famosa esquerda punitiva).

Assim como já foram causas para o exercício arbitrário do poder o comunismo, a “guerra às drogas”, o terrorismo e a corrupção (com consequências particularmente nefastas para o Brasil), a bola da vez é a “defesa da democracia”. Vale tudo para defendê-la, até praticar os mais ilegais atos judiciais.

Se Roberto Jefferson praticou os crimes descritos na decisão do ministro Alexandre de Moraes, deveria ser investigado e processado pela autoridade competente (artigo 5º, LIII, da CF). Não detém ele foro por prerrogativa de função. Então, sob qualquer ponto de vista, o Supremo Tribunal Federal não tem competência para prendê-lo, nem para julgá-lo.

O regimento interno do STF, a par de não poder se sobrepor à Constituição e às leis, trata, em seu artigo 43, em “infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal”, o que, evidentemente, não é o caso. A decisão fala em “organização criminosa”, com “atuação digital”, com a finalidade de “atentar contra a democracia”, em ataque a “integrantes de instituições públicas”, descrédito “do processo eleitoral brasileiro”, reforço do “discurso de polarização e de ódio” e outras coisas mais.

Teria Jefferson praticado “crimes contra a honra, racismo, homofobia e incitação à prática de crimes”. Além disso, teria falado na “invasão do Senado”, “ofendido a dignidade e o decoro de ministros do STF e senadores”, induzido a discriminação de pessoas de “índole chinesa e em razão de orientação sexual”, “tudo em postagens e entrevistas difundidas em meios de comunicação”.

A decisão não menciona, nem remotamente, crimes praticados na “sede ou dependência do tribunal”. Os ministros é que teriam sido atingidos em sua honra. Trata-se de um inquérito ilegal desde sua instauração, portanto. Pouco importa se o dispositivo do regimento interno foi ou não recepcionado pela Constituição; importa que está sendo utilizado em hipótese diversa daquela prevista.

Consta da decisão que, em suas falas para canais de comunicação, Jefferson menciona sobre a utilização do artigo 142 da CF para a intervenção das Forças Armadas como poder moderador (uma interpretação errônea, mas livre), chama os ministros de “urubus” e de “bruxas”. Fala da “narcocorte constitucional da Venezuela”, fala de decisões do STF que teriam silenciado canais de “conservadores”, fala que as eleições no Brasil são fraudadas (ainda que equivocado, qualquer um é livre para achar isso), fala na “troca de ministros” (mediante aposentadoria ou impeachment) do STF, fala sobre o “cano do fuzil” das Forças Armadas, fala de uma “ditadura gay” em São Paulo. Diz que se deve “invadir o Senado” e colocar para fora a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) “a pescoção”, chama os senadores de “moleques”, diz que o STF e o Senado são corruptos, que se Lula for eleito “não pode tomar posse”, que o STF é uma organização criminosa. Chama o embaixador da China de “macaco de realejo”. Fala ainda que, “sem eleições limpas, não haverá eleições”.

Parece-me, data venia, que não se trata de um “atentado à democracia”, mas, sim, da prática de crimes comuns.

Se crimes contra a honra há, e parece-me que há, que sejam processados na seara própria (desde que respeitadas as condições de procedibilidade, notadamente o exercício da ação penal privada e a representação dos ofendidos). Os crimes de apologia ao crime e ao criminoso são de menor potencial ofensivo. Grande parte deles não tem pena máxima superior a quatro anos, sendo incabível a prisão preventiva (artigo 313, I, do CPP). E todos os crimes, sem exceção, são praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa. Discutível, para se dizer o mínimo, o cabimento da medida cautelar extrema (artigo 282, I e II, CPP).

Os ataques ao STF não foram com bombas, armas ou tanques, e, sim, ataques verbais, razão pela qual devem, como tal, ter o tratamento jurídico próprio — e nem de longe é a prisão preventiva decretada pelo próprio supremo. Ademais, qualquer um pode entender que os ministros do STF devem ser “trocados”, devem ser aposentados ou sofrer impeachment. Por que não? Qualquer um pode entender possível a intervenção das Forças Armadas e a pressão popular para tal ou qual medida estatal. Trata-se do exercício da liberdade de expressão, por mais absurda e descabida que possa parecer.

E isso sem se falar sobre o ressurgimento (quase que das cinzas) da Lei de Segurança Nacional, o principal instrumento da ditadura militar, aparecendo como uma arma “a favor da democracia”. Contradição maior, impossível.

A luta contra o autoritarismo é uma luta política, e não jurídica. O Poder Judiciário — o mais antidemocrático dos poderes — não pode ser o árbitro da contenda. Amanhã serão os democratas que serão presos por criticar o STF — e não faltam críticas à sua atuação. Defender direitos democráticos para quem gostamos é fácil, mas também são titulares aqueles com quem não temos qualquer afinidade.

Por fim, questão que sempre retorna à pauta é sobre a chamada “esquerda punitiva” — aquela que acredita no Direito Penal como instrumento para a luta por liberdades democráticas. É assim com parte do movimento feminista, que crê no Direito Penal e na supressão de direitos para combater a violência contra a mulher, com alguns antirracistas e defensores da causa LGBT, que creem que processando criminalmente e prendendo pessoas por atos racistas e homofóbicos se pode avançar na conquista de direitos.

O Direito Penal, desde sua fundação como o conhecemos hoje, jamais cumpriu qualquer função para a qual se propôs. Prometeu acabar com a violência, mas só fomentou a violência. Prometeu acabar com as drogas, mas as drogas estão mais disponíveis que nunca. Prometeu acabar com a corrupção, e nem é preciso dizer em que estágio se encontra a corrupção no país e no mundo. Por que acreditar que ele é capaz de “defender a democracia”?

A única coisa que o Direito Penal é capaz de trazer são injustiças. Mais e mais pobres e negros sendo presos, acusados e condenados injustamente. O Direito Penal foi “inventado” para a perseguição das classes subalternas e de inimigos políticos. É incapaz, portanto, de exercer qualquer outra finalidade. É triste ver, até hoje, pessoas que se dizem progressistas que não tenham enxergado essa realidade. Para um Roberto Jefferson que é preso, milhares de desvalidos são jogados em masmorras muito piores.

A luta por direitos não tem nada a ver com o endurecimento do Direito Penal. Não tem nada a ver com a supressão de liberdades processuais. Não tem nada a ver com a prisão. Não tem nada a ver com o fortalecimento do Poder Judiciário. Dar ao Judiciário o papel de mediador das causas democráticas, ainda mais com o uso do Direito Penal, é relegar o país ao atraso.

É lutar contra a democracia, e não a seu favor.

 é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

Namastê: A escola-empresa e o professor gratiluz

 

Artigo do procurador e integrante do Coletivo Transforma MP, Prof. Plínio Gentil, no GGN. 

         Aqueles integrantes de carreiras jurídicas que, como eu, há décadas construíram também uma carreira como docentes nas faculdades de Direito, puderam perceber a virada da educação superior, de um direito para um serviço. O motor dessa virada foi a transformação da escola-instituição em escola-organização, ou escola-empresa, sem enraizamento social ou histórico, movida pelos ideais de gestão, controle, êxito e lucro, estimulada pela competição. Seu motivo é o que muitos chamam de reforma empresarial da educação, fruto de um movimento do capital internacional, a partir da década de 1990, que se voltou para a exploração da educação como mercadoria, impondo, sobretudo nos países periféricos, a lógica do Consenso de Washington.

            Portanto era preciso padronizar os conteúdos escolares, formação de professores e critérios de avaliação, pois o capital trabalha com horizontes claros e odeia correr riscos. Assim vieram programas, diretrizes e recomendações de organismos supranacionais, cujas intenções declaradas eram melhorar a qualidade do ensino, acabar com a evasão escolar e democratizar a escola, “preparando os países subdesenvolvidos para um salto que os capacitaria a responder aos desafios do século XXI”. Todo esse palavrório representa, por óbvio, um eufemismo para edulcorar a exploração da educação como mercadoria no terceiro mundo, criando oportunidades para sócios locais, com a adesão, é claro, dos respectivos governos.

            Mudado o ambiente escolar, muda também o perfil do professor. Educação converte-se em aprendizagem, o educador torna-se uma espécie de tutor. Assim, nesse novo cenário, a figura de um professor tarefeiro, sem empáfia nem glamour, vai substituindo, nas faculdades de Direito, aqueles doutores de antigamente, tornados professores mais por seus títulos que por suas qualidades para a docência. Mas, ao contrário do que se pode pensar, isso não representa evolução alguma: na verdade troca-se um problema por outro e o professor com algum brilho, capaz de provocar inquietação no aluno, continuará opaco e nivelado pela ditadura dos itens e planilhas de uma avaliação padronizada, que produz robôs tarefeiros, de quem apenas se pede o cumprimento das metas da organização, num horizonte em que a pesquisa instigante e a inútil igualam-se completamente.

            Eis que, como uma subespécie do professor tarefeiro, surge o professor gratiluz. Dócil, feliz, acredita que é quase um sócio da organização escolar que o emprega. Convencido pela pregação neoliberal, acha que a ciência é neutra, acredita na imparcialidade das instituições e na sacralidade do direito. Na sua vida pessoal, se algo não lhe saiu bem, entende que foi por sua própria culpa.

            O professor gratiluz é, ao mesmo tempo, uma vítima e um produto da reforma empresarial da educação, que formou a escola-empresa. Como não se sente pertencendo a uma categoria, dirige-se aos colegas sempre os chamando de ‘professor’, evitando intimidades. Sem o perceber, nega-lhes pessoalidade, reduzida a um crachá, e interdita o companheirismo. O fato de compartilharem o balcão da cantina e as exigências da coordenação e da secretaria não o faz sentir-se parte de um grupo que possa, em bloco, reivindicar alguma coisa, parecendo-lhe natural que qualquer questão há de ser tratada individualmente com a organização. Uma modalidade mais radical do professor gratiluz, ao referir-se a si mesmo, fala suavemente com os alunos na terceira pessoa do singular, neles projetando uma infantilização que reflete sua própria visão pueril do processo de ensino-aprendizagem. Um infantilismo produto, em parte, da própria organização, ao tratar alunos como clientes que não devem ser desagradados, especialmente com notas baixas e registro de faltas.

            Na escola-empresa as demissões ocorrem fria e mecanicamente, nada mais significando, aos olhos do professor gratiluz, que uma reposição de peças numa engrenagem; tanto que, sobre os colegas descartados, esse professor, agradecido por sua sobrevivência, vai aderir a um pacto geral de silêncio. Demitidos e recém contratados não lhe despertam saudades nem júbilo e o professor gratiluz adestrou-se para não sentir emoções inconvenientes. Diferente do oportunista, que monta um negócio no entorno da escola-empresa, e do militarista assumido, que grita contra a universidade pública e os direitos humanos e apoia o escola sem partido, o professor gratiluz habita uma espécie de mundo esotérico, no qual uma relação entre energias cósmicas, fé e trilhas na mata faz todo o sentido. Seu repertório emocional externa-se em palminhas no grupo de whatsapp e saudações metafísicas em que esbanja gratidões e enaltece um mundo de luz, flores, pássaros e corações. Exalando uma humildade sem sentido concreto, escreve ‘namastê’ e clica enviar. Dessa maneira exterioriza um intimismo que só encontra espaço numa dimensão imaterial, contra o qual ninguém haverá de se insurgir, justamente porque situado para além de uma existência real.

            Acata agradecido tudo que a organização lhe passa e, mesmo oprimido pela gradual e constante imposição de novas tarefas, espalha nas redes carinhas de contente e disponível.  Ante a súbita obrigação de navegar em intrincadas plataformas, legendadas em inglês, que a reforma empresarial da educação introduziu, especialmente durante a pandemia do coronavírus, sente-se genuinamente feliz, quase orgulhoso, quando percebe que, depois de horas e horas não remuneradas diante do próprio computador, consegue dominar, mesmo precariamente, algo daquele universo virtual. O professor gratiluz vê oportunidade nesse aprendizado de outras tarefas e não uma nova modalidade de superexploração, graças à qual a organização economiza recursos, quer deixando de contratar, quer demitindo funcionários especializados.

            Aceita integrar grupos e redes por meio dos quais será cobrado em tempo integral e em prazos exíguos, como uma espécie de Diário Oficial acelerado, sem limite de horas ou fins de semana. É a organização que, criando à sua revelia um e-mail institucional, lhe determina o lugar em que receberá correspondências, contrariando aquela regra da natureza de que é o morador quem fornece o endereço de sua casa. Para atender exigências dos medidores de qualidade das escolas, precisadas de bom nível no ranking, concordará em se inscrever em eventos pagos de seu bolso, assim como agrupar-se com colegas para uma pesquisa de duvidoso interesse científico, cuja publicação pagará para algum veículo parte dessa indústria da publicação que surgiu nas imediações da educação mercantilizada.

            O professor gratiluz, totalmente de bem com a vida, não desenvolverá qualquer percepção estrutural dessa sua condição, nem de sua precariedade. Vendo profissionalismo nesse alheamento e proclamando-se apolítico, seguirá contente, como um profissional good vibes, que aprendeu a sentir-se parte da escola-empresa, ao invés da categoria laboral que integra. Insciente do papel que ele próprio poderia representar no antagonismo entre capital e trabalho, serve a um modelo em que vai aos poucos sendo substituído por plataformas de ensino, ou vídeo aulas, onde o que menos importa é justamente a figura do professor. Crente que seu mérito individual o distinguirá frente ao empregador, repudia qualquer sinal de vida associativa. É uma peça moldada pela escola-empresa, que o faz personagem de uma narrativa modernosa, destilada pela mídia corporativa. Assim, sua ínfima relevância para o modelo é adornada pela imagem de um colaborador, não mero empregado: um predestinado luminoso, dotado de tamanha grandeza, que não lhe fica bem ocupar-se com quinquilharias como acúmulo de funções ou reduções indiretas de salário e mais besteiras desse naipe.

            A palavra namastê, em sânscrito, designa um sentimento de respeito obsequioso, e deve ser pronunciada com as mãos postas e uma ligeira curvatura de cabeça: isso possui um sentido real, apropriado a certas relações interpessoais nas culturas indiana e nepalesa. Fora de contexto, utilizada naquela dimensão metafísica em que o professor tutor tarefeiro gratiluz proclama aos céus a alegria de ser explorado, insistindo em se manter ingenuamente alheio a essa realidade, namastê representa o coroamento do sucesso, para o capital, da reforma empresarial da educação, que desmobiliza a reivindicação e deslegitima sindicatos e associações em sua luta secular por redução do abismo social entre a propriedade e o trabalho. Esse namastê dirige-se, na verdade, à escola-empresa, à qual é dito ‘eu humildemente me curvo e a saúdo’. Difícil, muito difícil, fazer cumprir-se dessa maneira o papel histórico da educação, incorporado no texto constitucional (art. 205), que é emancipar de toda opressão.

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Plínio Gentil é Professor universitário. Integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Direito (UFSCar). Procurador de Justiça em S. Paulo. Membro fundador do Coletivo MP Transforma. Contato: <pabgentil@apmp.com.br>