Para Marx, o direito pode ser emancipatório?

Por Júlio Gonçalves Melo no GGN

Apesar de ter concluído o curso de direito na Universidade de Berlim – e de lá ter sido aluno de ninguém menos que Savigny –, Marx não deu uma atenção particular, nem um tratamento tão sistematizado ao fenômeno jurídico ao longo de sua obra. Na realidade, parece que há um consenso na literatura de que qualquer um que queira estudar as relações entre o marxismo e a teoria do direito tem que obviamente conhecer não somente a filosofia de Marx em geral como também os trabalhos específicos de outras autoras e autores, herdeiras(os) de seu pensamento.

Em linhas gerais, é possível dizer que, para Marx, a vida em sociedade pode ser vista didaticamente como um edifício, em cuja base estaria fincado um determinado modo econômico de produção, com base no qual seria erguido todo o restante daquele prédio, composto por diversos andares que – segundo tal ilustração – são compreendidos como as outras esferas da vida social, a saber, a política, a religião, o direito etc. O direito, portanto, sob essa perspectiva, forma-se a partir de determinadas relações econômicas que se estabelecem na base da vida em sociedade, ou melhor, ele é um reflexo de certas condições econômicas que edificam uma dada sociedade. O direito, para Marx, não tem uma história própria; ele não é um fenômeno independente, que possa estar situado fora ou acima daquele edifício; ele não é algo eterno ou imutável, criado por uma entidade divina, ou alcançado por uma suposta razão humana universal. A história do direito é a história de um determinado modo de produção, e sua lógica está vinculada à lógica deste mesmo modo de produção, visando pois ao seu aperfeiçoamento, a sua reprodução.         

No famoso prefácio à “Contribuição à crítica da economia política” de 1859, Marx vai dizer o seguinte: “O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu como um guia aos meus estudos, pode ser assim resumido: na produção social de suas vidas, as pessoas procedem, independentemente de sua vontade, a determinadas e necessárias relações de produção, que correspondem a um certo estágio de evolução de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real a partir da qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, a que correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona a produção da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do ser humano que determina seu ser, mas ao contrário o seu ser social que determina sua consciência”[1].  

Ainda que, durante a idade antiga, edificada sobre o modo de produção escravagista, fosse possível falar no direito romano, o fenômeno jurídico tal como o conhecemos hoje, com todas as suas particularidades, é uma realidade do modo de produção capitalista, que tem seu início na longa passagem da idade média para a idade moderna e sua consolidação entre os séculos XVIII e XIX, após as revoluções burguesas na Europa. Em outras palavras, a forma do direito atual é dependente e derivada da forma capitalista contemporânea, baseada em uma economia mercantil e industrial.

Quando se diz que a forma do direito atual deriva e depende do modo de produção capitalista, fala-se também que a lógica de funcionamento do capitalismo é que acaba definindo a forma de funcionamento do próprio direito. E para que a forma de funcionamento do sistema capitalista seja compreendida, é preciso que se entenda como a partir de seu elemento mais básico – de seu ponto central –, derivam todas as demais relações econômicas que se generalizam pela vida em sociedade, fazendo com que, em razão delas, o direito surja com sua forma específica e se apresente como um conjunto de normas capazes de assegurar o bom funcionamento daquelas mesmas relações.

A partir disso, é possível dizer que, na idade contemporânea, a célula básica em torno da qual se organiza a economia capitalista e sobre a qual se ergue todo o edifício jurídico é a figura do contrato, pelo qual as pessoas estabelecem certas relações entre si, fazendo circular por toda a sociedade vários tipos de mercadorias – entre as quais se inclui a própria força de trabalho – destinadas a atender as mais diversas necessidades. O contrato, por assim dizer, é a figura mais básica, o elemento mais simples, a partir do qual relações econômicas cada vez mais complexas vão se estabelecendo na sociedade, relações estas que dão forma ao direito contemporâneo, que, por sua vez, as regulamenta, as assegura e, ao fim, garante a reprodução do próprio sistema capitalista. No campo das relações trabalhistas, em que o empregado vende sua força de trabalho e o empresário a compra pelo preço do salário, Marx inclusive chega a dizer que esse seria o espaço onde os direitos de propriedade, igualdade e liberdade encontram sua expressão mais acabada na sociedade capitalista.

Como ele próprio explica em sua principal obra, O Capital: “Para que o possuidor de dinheiro encontre a força de trabalho como mercadoria no mercado, é preciso que diferentes condições sejam preenchidas. (…) a força de trabalho só pode se apresentar no mercado como mercadoria, desde que ela seja oferecida ou vendida como mercadoria pelo seu próprio possuidor, a pessoa de quem ela é força de trabalho. Para que seu possuidor a venda como mercadoria, ele deve ter o poder de dispor sobre ela, ser, portanto, livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua própria pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro encontram-se no mercado e iniciam uma relação entre si como iguais possuidores de mercadorias, distinguindo-se apenas pelo fato de que um é comprador, o outro, vendedor e ambos, portanto, pessoas juridicamente iguais”[2].  

Em outras palavras, para Marx, os contornos dessa relação jurídica baseada na propriedade, igualdade e liberdade, são apenas um reflexo das condições econômicas que estruturam o modo de produção capitalista. Tal compreensão, que é extraída genericamente da obra de Marx, é posteriormente aperfeiçoada pelo jurista soviético Evgeny Pachukanis em seu famoso livro de 1924 chamado “A Teoria Geral do Direito e o Marxismo”.

De acordo com ele, o que mais importa em uma análise marxista do direito não é tanto o seu conteúdo, que seria estabelecido a partir das lutas de classes e, no mais das vezes, para assegurar o interesse das classes dominantes, mas a sua própria forma, que é definida, na sociedade capitalista, por essa célula básica da economia capitalista: a relação contratual em torno da mercadoria, composta por pessoas livres e iguais, que dispõem de suas propriedades. Como ele mesmo chega a afirmar: “Do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume a forma de uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas. A troca de mercadorias pressupõe uma economia atomizada. A conexão entre as unidades econômicas privadas estabelece uma conexão, caso a caso, por meio de contratos. A relação jurídica entre os sujeitos é apenas o outro lado das relações entre os produtos do trabalho tornados mercadorias”[3].

A forma do direito, enfim, segundo Pachukanis, é determinada pela forma da própria economia mercantil. Isso quer dizer, na prática, que os elementos que estruturam a economia capitalista serão basicamente os mesmos que conformarão o direito contemporâneo. Nessa linha de ideias, esses elementos são os seguintes: pessoas, mercadorias e relações contratuais. De modo mais simples, as relações econômicas que configuram a base do sistema capitalista podem ser representadas por pessoas que negociam umas com as outras mercadorias de seu interesse. Ou de forma ainda mais clara: pessoas que trocam coisas entre si.

Num primeiro momento, parece muito difícil visualizar o direito edificado a partir desses elementos tão básicos, mas se num segundo momento olharmos com um pouco mais de cuidado, veremos que o diagnóstico marxista não está tão enganado assim. O direito do trabalho, sem dúvida, com as figuras do empregador e empregado estabelecendo um contrato é um exemplo evidente. No mesmo sentido, chega a impressionar que a parte geral do Código Civil brasileiro, que regulamenta as bases de todo o chamado direito privado, esteja dividida em três livros que falam exatamente das pessoas, dos bens e dos negócios jurídicos. E também é bastante impressionante quando se olha para ramos mais específicos do chamado direito público e se vê que no direito tributário, por exemplo, o contribuinte é chamado a negociar com o Estado seus débitos fiscais; no direito administrativo, o cidadão pode estabelecer acordos com o Poder Público em uma série de situações, como a intervenção do Estado na propriedade privada e até mesmo no campo da improbidade administrativa; bem como no direito penal, no qual o próprio Ministério Público pode ser chamado como uma parte disposta a negociar as consequências jurídicas do crime praticado por alguém, tudo isso muitas vezes em nome de uma suposta eficiência econômica.     

Em linhas gerais, como se disse, essa é a visão dominante do direito na tradição marxista. Ele é um reflexo das relações econômicas que configuram a base da vida social. Somente com a mudança dessas relações de produção é que, por consequência, será produzida uma mudança na superestrutura, onde o direito se encontra. O direito, ele mesmo, não é visto como um instrumento capaz de provocar mudanças mais profundas nas relações de base; muito pelo contrário, se ele é um produto dessas relações, é preciso que primeiro elas se transformem; e caso elas se modifiquem e, por meio de uma revolução, um novo modo de produção é estabelecido, então, aí sim, pode acontecer não só do direito se transformar, como também em situações mais radicais deixar ele próprio de ser necessário e, portanto, de existir.

A pergunta, todavia, que se levanta a partir de agora é se é possível fazer uma outra leitura do pensamento do próprio Marx e chegar a conclusões diversas. Primeiramente, há mesmo uma relação de determinação direta do direito pela economia? E, além disso, pode o direito provocar mudanças mais ou menos significativas nas relações econômicas e sociais, apresentando-se como uma ferramenta de luta e de emancipação?

Em relação à primeira questão, muitos já questionaram uma interpretação muito determinista da história pela economia, alegando que essa não seria uma leitura tão dialética. E de fato, isso parece fazer sentido. Ainda que se possa localizar na economia um elemento de desequilíbrio, que tenha mais força para definir a forma de organização da política, da religião ou do próprio direito, não parece um absurdo dizer que entre a base e a superestrutura da história haja também uma interação, com influências recíprocas entre elas, e não só uma imposição única e exclusiva da economia sobre todas as demais instâncias da vida social.  

Pode parecer um detalhe, mas quando se diz que o direito é um “reflexo” das relações econômicas, a própria palavra “reflexo” já traz em si um conteúdo filosófico, que não precisa se limitar à descrição de uma simples relação de causa e efeito, mas revelar uma ideia, quem sabe mais dialética, que traduz uma relação de mútua influência entre o direito e a economia. Apenas porque tem interesse para esse texto, uma das palavras em alemão que pode ser traduzida para o português como “reflexo” é Widerspiegelung: Spiegel, por um lado, quer dizer espelho (Spiegelung = reflexo) e a palavra wider, por outro, tem um sentido próximo a algo que é “contrário”, “oposto”. “Contradição”, por exemplo, em alemão é Widersprechung (Sprechen significa basicamente falar ou conversar). Widerspiegelung, portanto, que costuma ser traduzido como “reflexo” ou “reflexão”, poderia também ser entendido como algo parecido com “contrareflexo” ou com o efeito de coisas que se refletem umas nas outras.

Quem utiliza essa palavra em um texto-chave para essa discussão é ninguém menos que Friedrich Engels, em uma carta a Conrad Schmidt de outubro de 1890. Segundo ele:  “O reflexo (Widerspiegelung) das relações econômicas como princípios jurídicos coloca-se necessária e igualmente de cabeça para baixo: ele processa-se sem que o negociante tome consciência dele; o jurista imagina que opera com ideias apriorísticas, enquanto elas são apenas reflexos econômicos – assim tudo se coloca de cabeça para baixo. E parece-me óbvio que essa inversão, que, enquanto não reconhecida constitui aquilo que nós chamamos de visão ideológica, lança-se de volta à base econômica, podendo modificá-la dentro de certos limites”[4].   

Ou seja, para Engels, apesar de os princípios jurídicos serem considerados uma forma de ideologia, que se situa na superestrutura e disfarça a realidade das relações materiais, ocultando suas desigualdades, é possível que, num movimento de volta, de “contrareflexo”, eles venham a influenciar as relações de base econômica, podendo até mesmo modifica-las, ainda que dentro de certos limites. Quem, neste ponto, também trouxe contribuições importantes foi o filósofo marxista Louis Althusser, ao colocar em destaque um certo aspecto material, por assim dizer, da ideologia, sobretudo nos aparelhos ideológicos do Estado, que “podem ser não só o alvo mas também o local da luta de classes e por vezes de formas renhidas de lutas de classes”[5].

O Estado, portanto, e mais especificamente o direito não são, assim, simples esferas da superestrutura sem importância, que estão ali apenas para gerir o interesse burguês; eles são ambos espaços de luta, que podem, de um jeito ou de outro, provocar mudanças significativas na base da vida social. Em outras palavras, antes de serem espaços predefinidos, a serem ocupados e exercidos somente em prol da classe burguesa, o Estado e o direito estão em disputa e poderão servir melhor aos interesses de quem, nessa mesma disputa, conseguir toma-los para si.

É obvio que não se deve cometer exageros nesse momento. Na teoria de Marx, é muito claro que a revolução deve ser feita na base das relações sociais, de onde as maiores mudanças de fato virão. A grande questão que se coloca é se, diante da possibilidade de o direito poder exercer influência sobre a infraestrutura capitalista, ele não pode ser uma das armas a serem utilizadas a serviço da emancipação. E quem parece confirmar essa hipótese é o próprio Marx, ao dizer o seguinte no prefácio à primeira edição do Capital: “Prescindindo de motivos mais elevados, os interesses mais particulares das atuais classes dominantes obrigam-nas à remoção de todos os obstáculos legalmente controláveis que travem o desenvolvimento da classe trabalhadora. É por isso que, neste volume, reservei um espaço tão amplo à história, ao conteúdo e aos resultados da legislação inglesa relativa às fábricas. Uma nação deve e pode aprender com as outras. Ainda que uma sociedade tenha descoberto a lei natural de seu desenvolvimento (…), ela não pode saltar suas fases naturais de desenvolvimento, nem suprimi-las por decreto. Mas pode, sim, abreviar e mitigar as dores do parto”[6].

E, além disso, mais do que talvez “abreviar e mitigar as dores do parto” – ou seja, de provocar mudanças pontuais, sem realmente atacar as estruturas da dominação capitalista –, no prefácio à edição inglesa do Capital, Engels vai dizer que se, por um lado, o próprio Marx duvidava que, sem uma rebelião de escravos, as classes burguesas acabassem aceitando a emancipação dos trabalhadores, por outro, ele mesmo também apostava na possibilidade de uma revolução pacífica por meio das leis na Inglaterra. Como disse Engels: “Em um tal momento, deverá ser seguramente ouvida a voz de um homem, cuja teoria é resultado de uma vida inteira de estudos da história econômica e da situação da Inglaterra, e que, a partir desses estudos, chegou à conclusão de que, pelo menos na Europa, a Inglaterra é o único país onde a inevitável revolução social poderia ser executada inteiramente por meios pacíficos e legais”[7].  

Se, por um lado, afirma-se que na teoria de Marx o direito se localiza na superestrutura, como uma manifestação ideológica e como um reflexo das relações de produção econômica, sem potencial para revolucionar tais relações, por outro, parece possível também afirmar que, em uma leitura talvez mais dialética, o direito é um elemento de tensão, que reage sobre a economia, podendo influencia-la e até mesmo modifica-la, sem que ele esteja limitado a ser um mero reflexo das condições econômicas da sociedade ou um simples instrumento da classe burguesa. Se, como Marx afirma, o direito não só tem condições de “abreviar e mitigar as dores do parto”, como também poderia ao menos na Inglaterra conduzir a uma revolução social pacífica, então talvez não seja exagero dizer que o direito, para Marx, pode, sim, ser emancipatório, em certas situações.

O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade tem um lindo poema chamado “Nosso Tempo”, no qual ele diz:  “Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”. Sem contrariar a genialidade de Drummond, talvez não fosse tão equivocado reler seu poema, a partir da discussão feita neste texto, concluindo que, de fato, as leis não bastam, mas os lírios podem um dia nascer das leis, e o Direito, enfim, ser chamado de tumulto!   

Júlio Gonçalves Melo: Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Membro do Coletivo Transforma MP.


[1] MARX, Karl. Kritik des Kapitalismus. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2018, p. 160.

[2] MARX, Karl. Kritik des Kapitalismus. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2018, p. 200 e 201..

[3] PACHUKANIS, Evgeni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 97.       

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke: Band 37. Berlin: Dietz Verlag, 1967, p. 491 e 492.

[5] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Editorial Presença (3ª ed.), p. 49.

[6] O texto encontra-se disponível em: https://vermelho.org.br/2018/05/04/o-dificil-comeco-de-uma-ciencia-nova/.

[7] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke, Band 23. Berlin: Dietz Verlag, 1968, p. 40. O texto também pode ser encontrado em português com outra tradução, na seguinte página eletrônica: http://www.filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/234.txt.

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