Entre a política de classe e o identitarismo

Por Régis Richael Primo da Silva no GGN

Na verdade, é muito difícil dar uma resposta segura, principalmente quando o conteúdo dessa resposta depende de dados da realidade sobre os quais há muita névoa.

1. A esquerda e o problema identitário

Qualquer pessoa sensata que se julgue de esquerda sabe que a acumulação de capital e a riqueza extraordinária que se concentra nas mãos de poucos não seria possível sem a transferência da maior parte do produto do trabalho produzido pelos trabalhadores para as mãos dos capitalistas. O que pouca gente sabe é que a exploração do trabalhador é, hoje, 25 vezes maior do que era na época em que Marx escreveu O Capital. É o que revela estudo, feito pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, sobre a taxa de exploração dos trabalhadores que produzem o IPhone[2]. O que é perturbador é que a desigualdade de renda e a exploração do trabalho são cada vez maiores justamente quando as novas tecnologias de produção poderiam assegurar a redução da jornada de trabalho, o pleno emprego e o aumento da remuneração dos trabalhadores. Diante disso, pode parecer óbvio que lutar contra a exploração do trabalho deveria ser a prioridade número um da esquerda do século XXI.

Essa, porém, não tem sido sua prioridade. O foco da esquerda na atualidade são as lutas contra a opressão em razão do gênero, da cor e da orientação sexual. Naturalmente, seria absurdo negar a importância dos movimentos sociais contra o racismo, o sexismo e a homofobia. Todas essas formas de opressão são perversas e inadmissíveis, e todos devemos agir para não permitir que a cor, o gênero ou a orientação sexual sirvam de pretexto para a desumanização, a discriminação e a violência contra seres humanos. Contudo, um setor da intelectualidade de esquerda vê com preocupação a centralidade que as políticas de identidade ocupam no imaginário e na militância progressista. Essa preocupação é justificada? A esquerda está atirando no alvo errado, como alguns críticos sugerem?

2. A crítica de esquerda ao identitarismo

O jornalista marxista Christian Parenti, por exemplo, chama a atenção para o equívoco da ideia, disseminada na cultura identitária, de que o racismo e o sexismo são como uma espécie de condição psicológica que pode ser eliminada desfazendo, no nível emocional, algumas das consequências do condicionamento cultural a que os homens e as pessoas brancas foram submetidas[3]. Segundo ele, essa abordagem psicologizada do racismo e do sexismo tem o apoio direto dos maiores oligopólios capitalistas e da mídia que os representa, e é usada por eles para evitar o debate sobre as estruturas sociais econômicas e seu desequilíbrio de poder, que atingem a classe trabalhadora como um todo. A política como conflito de classes cede lugar à política centrada na etiqueta social, na linguagem apropriada e na cultura do cancelamento, e aqueles que teimam em não “desaprender” a linguagem e os comportamentos inapropriados que praticam são julgados e condenados pelos tribunais das redes sociais. A ordem econômica, porém, permanece a mesma. Ou até se torna pior. Mencionando a situação dos EUA, Parenti afirma que, nos últimos quarenta anos, quando mulheres e pessoas negras, gays e trans obtiveram enormes ganhos sociais, a desigualdade econômica disparou. À medida que as barreiras sociais formais foram removidas, o número de cargos de elite ocupados por pessoas de grupos de identidade outrora marginalizados aumentou. No entanto, ao mesmo tempo, a maioria das pessoas (independentemente de raça, gênero ou orientação sexual) viu suas condições econômicas desfavoráveis deteriorarem-se sob o ataque político do neoliberalismo. Hoje, os EUA têm quatro mulheres na Suprema Corte. No entanto, a mulher comum é mais pobre agora do que era em 1975. Para Parenti, a suposta radicalidade da ideologia identitária é falsa: o efeito real da centralidade no privilégio branco e masculino é o de ocultar os problemas de poder de classe e exploração que estão no centro das relações sociais capitalistas.

O cientista político Adolph Reed, estudioso das relações entre desigualdade econômica e cor da pele, também aponta que a desigualdade de renda aumentou muito nos últimos 50 anos, tanto para brancos como para negros. E sustenta que a concentração de esforços para eliminar as desigualdades raciais não só não nos levará à uma sociedade mais igualitária, mas também não é a melhor maneira de eliminar as próprias desigualdades raciais[4]. Para Reed, o racismo é real e o antirracismo é admirável e necessário. Mas o racismo existente não é o maior responsável pela desigualdade racial, e, portanto, o antirracismo não a eliminará. Reed sustenta que a ausência de progresso na superação da desigualdade de renda entre brancos e negros é causada pelo aumento  da desigualdade de renda entre ricos e pobres. Para ele, a própria ideia de riqueza racial é vazia: os 10% mais ricos entre os brancos detêm 75% da riqueza dos brancos; e o mesmo é verdade para a riqueza negra: os 10% mais ricos das famílias negras detêm 75% da riqueza negra. Reed acrescenta: “o que o discurso da desigualdade racial nos diz é que, se você tem uma economia cada vez mais desigual, que gera empregos que não pagam nem um salário mínimo, o problema que precisamos resolver não é como reduzir essa desigualdade e melhorar os empregos, mas como garantir que esses empregos não sejam desproporcionalmente ocupados por negros”.  E conclui: deve ficar claro agora que o foco na desigualdade racial aceita a premissa do neoliberalismo identitário de que o problema da desigualdade não é sua magnitude ou intensidade em geral, mas se é ou não distribuída de maneira racialmente equitativa[5].

O filósofo marxista italiano Diego Fusaro é outro duro crítico do identitarismo. Sua primeira oposição ao identitarismo é que ele teria substituído a perspectiva igualitária e comunitária por uma perspectiva de vingança e competição contra grupos cuja identidade é considerada rival[6]. Identidades coletivas e anticapitalistas teriam sido substituídas por identidades individualistas e centradas em características que não deveriam servir de critério para distinguir os seres humanos – a cor e o gênero. Fusaro afirma que a política identitária invoca o conceito de identidade, mas o desarma, em uma fragmentação social ilimitada: o feminismo liberal divide a sociedade colocando, primeiro, homens contra mulheres e, depois, mulheres negras contra mulheres brancas. Em última análise, esquecemos o que temos em comum e nos concentramos naquilo que nos distingue. Nesse panorama, a cadeia social dos oprimidos desaparece e em seu lugar prevalece uma espécie de guerra de todos contra todos, que se expressa na multiplicação das lutas entre grupos opostos uns aos outros. Isso fica nítido quando potenciais parceiros na luta anticapitalista são vistos com desconfiança por não fazerem parte de determinado grupo caracterizado pela cor ou pelo gênero. Fusaro argumenta que é o capitalismo quem cria essa microconflitualidade generalizada, que atua como uma arma de distração massiva permanente[7]. Por um lado, essa microconflitualidade oculta a contradição capitalista, que já nem é mencionada; e, por outro lado, divide as massas trabalhadoras em identidades cada vez mais atomizadas e em oposição umas às outras.

O linguista John McWhorter, por sua vez, argumenta que certas correntes antirracistas criaram efetivamente uma religião perigosa, que sufoca nuances e debates, e prejudica a luta contra o racismo[8]. Segundo ele, existem pessoas cuja devoção é menos para mudar a vida de pessoas negras que precisam de ajuda do que para mostrar que o racismo estrutural existe. Dogma fundamental dessa “religião”, para ele, é a cultura do cancelamento: você simplesmente será “cancelado” se discordar ou violar as regras do antirracismo. McWhorter, falando como negro e como pesquisador, concorda que o racismo estrutural existe e deve ser combatido. Mas ele pensa que a esquerda deve resistir à ideia simplista de que o combate à desigualdade racial deve ser o objetivo dominante, ao invés de um objetivo entre vários.

O escritor negro Coleman Hughes acha um erro a substituição da perspectiva antirracista de Martin Luther King Jr. pela moderna perspectiva antirracista[9]. King Jr. baseava-se na ideia de que existe uma única raça a que todos pertencemos, e que todas as formas de nos dividir, embora possam ser importantes para entender nossa realidade atual, não devem receber peso moral. A luta antirracista deveria, pois, voltar-se à construção de um mundo em que a cor da pele fosse vista como um atributo insignificante. A moderna perspectiva antirracista, porém, baseia-se na ideia oposta segundo a qual é preciso perceber a cor da pele para combater a desigualdade racial. Para Hughes, esse modelo de antirracismo alimenta a competição racial a partir da falsa suposição de que a vitória de um grupo exige a derrota do grupo rival: o que nos divide passa a ser mais importante do que o que nos une.

O historiador Asad Haider e a cientista política Sheri Berman juntam-se aos críticos do identitarismo. Haider defende que a política identitária contemporânea é uma “neutralização dos movimentos contra a opressão racial, e não uma progressão em relação à luta de base contra o racismo”[10]. Quando a identidade se manifesta em divisionismo e atitudes moralizantes, em vez de estimular a solidariedade, ela reduz a política ao que você é como indivíduo, e não à sua participação em uma coletividade e na luta coletiva contra uma estrutura social opressora. O resultado disso é que a política identitária, paradoxalmente, acaba reforçando as mesmas normas que se dispõe a criticar.

Berman dirige sua crítica principalmente à forma intolerante com que os ativistas identitários tratam aqueles que não pensam como eles. Berman adverte que chamar as pessoas de racistas quando elas não se veem dessa maneira é contraproducente. Se o objetivo é diminuir a intolerância, dizer as pessoas que elas são racistas, sexistas e xenófobas não nos conduzirá a lugar nenhum. O insulto é sempre percebido como uma ameaça, e uma das coisas que sabemos da psicologia social é que, quando as pessoas se sentem ameaçadas, elas perdem a disposição para ouvir, para refletir e para dialogar[11].

3. Uma palavra sobre o problema identitário

Essas críticas são justas? Na verdade, é muito difícil dar uma resposta segura, principalmente quando o conteúdo dessa resposta depende de dados da realidade sobre os quais há muita névoa e disputa ideológica. Podemos, no entanto, começar a conversa concordando com Nancy Fraser, quando ela diz que não precisamos escolher entre política classista e política identitária. A Justiça exige tanto redistribuição quanto reconhecimento[12].

Mas feito esse esclarecimento, penso que já é hora de a esquerda identitária aceitar debater todas as críticas feitas ao identitarismo. Não só aquelas feitas pela esquerda marxista, mas também as que lhe são dirigidas por conservadores moderados. E é necessário debatê-las com honestidade e sem o uso de slogans, insultos e palavras de ordem. Os identitaristas precisam abandonar a ideia de que quem tem discordâncias a respeito das políticas identitárias é racista, sexista, transfóbico ou, no mínimo, padece de ignorância intelectual. Há muita gente da classe trabalhadora branca e pobre que se considera muito mais oprimida e explorada do que as pessoas negras da classe média instruída, ligadas ao ativismo identitário. Muitos desses trabalhadores brancos são pessoas simples, e não conseguem entender por que a cor ou o gênero deveriam ser determinantes para dizer se alguém é vítima de opressão ou não. A esquerda identitária precisa dialogar, com muita empatia, com esses homens e mulheres de pele branca da classe trabalhadora. Vítimas da opressão econômica, eles não consideram justo serem vistos como opressores. E se tudo o que recebem são insultos por parte da militância identitária “esclarecida”, esses trabalhadores acabam se afastando da esquerda e aderindo à agenda da direita, não só nos costumes, mas também nas questões econômicas.

A obsessão de certo tipo de feminismo por caracterizar os homens como um grupo homogêneo de opressores, tampouco ajuda. Muitas mulheres da classe trabalhadora veem seus maridos como homens bons e pacíficos, que as amam, respeitam e são seus parceiros na luta pela sobrevivência e pela criação dos filhos. A esquerda identitária precisa saber lidar com as consequências de dividir as pessoas com base em suas características físicas. Até porque quando são as características físicas que determinam quem é e quem não é vítima, acabamos entrando numa competição infrutífera para saber quem é a maior vítima. Nesse cenário, a mulher preta rivaliza com a mulher branca; o índio com o não índio; a preta hétero com a preta trans, e assim por diante. Não são insignificantes as dúvidas sobre se a política identitária pode trazer algum benefício real para a classe trabalhadora. Quando a desigualdade de renda avança como nunca, precisamos investigar se o aumento da quantidade de mulheres e pessoas negras nas posições de destaque do mundo capitalista tem algum efeito prático positivo para a maioria das mulheres e pessoas negras da classe trabalhadora. E decidir se o que nos interessa é reduzir a desigualdade de renda ou garantir a igualdade da exploração entre homens e mulheres, pretos e brancos. Se a política identitária não toca na questão da exploração do trabalho, os grupos oprimidos que buscam emancipação por meio das políticas identitárias continuarão oprimidos.

Retorno à afirmação de Nancy Fraser, de que não precisamos escolher entre política classista e política identitária. Se isso é verdade, o ativismo identitário precisa abandonar alguns de seus dogmas e abrir-se à reflexão. Ignorar que as políticas identitárias são instrumentalizadas como cortina de fumaça e distração pela política econômica neoliberal, é não enxergar o óbvio. Numa época em que grandes bancos, oligopólios e bilionários como Jeff Bezos se reúnem não só para apoiar, mas também para patrocinar as políticas de identidade, não nos enganemos: tudo isso serve para que, inebriados pela disputa entre identidades rivais, esqueçamos da opressão econômica que afeta a classe trabalhadora inteira: homens e mulheres, brancos e pretos.


[1]Régis Richael Primo da Silva é Procurador da República no Estado do Ceará e membro do Coletivo Transforma MP.

[2]https://www.thetricontinental.org/wp-content/uploads/2019/09/190922_Notebook-2_PT_Web.pdf

[3]https://nonsite.org/the-first-privilege-walk/

[4]https://nonsite.org/the-trouble-with-disparity/

[5]https://nonsite.org/how-racial-disparity-does-not-help-make-sense-of-patterns-of-police-violence/

[6]https://novaresistencia.org/2023/01/23/as-lutas-de-libertacao-arco-iris-sao-tipicas-da-ordem-neoliberal/

[7]https://www.elconfidencial.com/alma-corazon-vida/2019-06-29/diego-fusaro-estado-soberania-derechas-izquierdas_2093646/

[8]https://www.npr.org/2021/11/05/1052650979/mcwhorters-new-book-woke-racism-attacks-leading-thinkers-on-race

[9]https://www.manhattan-institute.org/a-better-anti-racism

[10]https://theintercept.com/2018/06/01/politica-identitaria-asad-haider/

[11]https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/jul/14/identity-politics-right-left-trump-racism

[12]file:///C:/Users/PRCE/Downloads/269802959.pdf

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