Por Daniel Serra Azul Guimarães, no GGN.
A história do Brasil é fortemente marcada por longos períodos de governos autocráticos, rupturas institucionais e vigorosa reação aos tímidos processos de tendência democratizante e civilizatória. Neste contexto, vivemos, em 2018, um momento crucial. Depois de mais de duas décadas de uma ditadura civil-militar instaurada para evitar os modestos avanços democráticos que se desenhavam na década de 1960, a promulgação da Constituição de 1988 marcou o início de um audacioso projeto democratizante em um país que insiste em ser oligárquico.
Refiro-me a democracia em sentido formal e material, ou seja, como verdadeira inclusão do povo nos processos de tomada de decisão e também como processo de expansão de direitos que assegurem a todos uma existência digna, nos termos do projeto de nação estabelecido, entre outros dispositivos, no art. 3º da Constituição de 1988: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A ditadura civil-militar iniciada em 1964/1968 e encerrada (em sentido formal) em 1985, surgiu como reação das camadas dominantes da sociedade brasileira, aliadas a setores hegemônicos de instituições estatais (notadamente as militares, mas também as ligadas ao sistema de justiça) e da imprensa, ao movimento democratizante liderado por João Goulart.
Isto se deu em um contexto global de prevalência da lógica binária da guerra fria, com a drástica redução de toda a complexidade de questões sociais e políticas postas pela modernidade a uma disputa entre dois fundamentalismos: o do capital, promovido principalmente pela indústria cultural e demais aparelhos da propaganda estadunidense e o do chamado “marxismo-leninismo”, adaptação ideológica de elementos do pensamento de Marx e de Lênin para a justificação do poder ditatorial de governos tidos como socialistas.
Tamanha simplificação e mistificação fez, por exemplo, com que manifestações de setores conservadores e intolerantes da sociedade civil contra o tímido processo democratizante e emancipatório liderado por João Goulart tivessem entre suas bandeiras a liberdade, como se se tratasse de um governo opressor, em uma óbvia alusão, consciente ou não, à versão caricaturada de processos revolucionários desvirtuados por razões cuja complexidade a mentalidade tacanha dos “patriotas” da época não dava conta e que não tinham absolutamente nada a ver com a realidade brasileira.
Qualquer semelhança com o tempo atual, em que milícias virtuais se apresentam como movimentos pela liberdade, ao passo que voltam seu discurso intolerante e violento contra qualquer perspectiva libertária na cultura, nas artes e na educação, por exemplo, não é mera coincidência.
Em outro exemplo que pode ser mencionado – entre tantos outros –, logo após o assalto à democracia realizado em 1964, o jornal O Globo estampou uma primeira página que se tornou histórica: “a democracia está sendo restabelecida”. Como dito, não por coincidência, no golpe – ainda em curso – de 2016/2018 e em manifestações de certos setores sociais que lhe serviram de pretexto, falou-se muito em liberdade e democracia, sendo que o oligopólio que controla a chamada mídia empresarial (a chamada “grande” mídia), tentou e ainda tenta atribuir ao golpe ares de normalidade democrática, exatamente como fez em 1964.
É neste contexto, de um senso comum forjado à base de grandes mistificações e simplificações, que muitos operadores do direito, com sua formação deficiente, suas crenças pessoais e preconceitos, contribuem para a reprodução de um estado de coisas desigual, excludente e violento.
É claro que há, no sistema de justiça, movimentos em sentido diverso, pautados pela razão crítica ao invés da razão instrumental, que buscam na ciência e no acumulado ético da humanidade, ao invés do febeapá das redes sociais e da “autoridade” supostamente inerente ao cargo ocupado, o fundamento da legitimidade de sua ação. Não é o que ocorre, no entanto, em termos hegemônicos. Infelizmente.
Em um mundo pautado pelo individualismo, pela competitividade, pela crença na concorrência de egoísmos como caminho para o bem comum e, para piorar, numa era em que ser é sinônimo de ter, em geral se almeja “ser alguém”, ser um sujeito “produtivo”, alguém que “faz a diferença” e, claro, neste processo, acumular a riqueza que garanta a “distinção” social.
Neste projeto existencial pasteurizado e massificado, o forte papel desempenhado pelo culto à personalidade nos produtos alienantes da indústria cultural potencializa o pavor de se ser um perdedor (ou “looser”, numa versão ainda mais colonizada). O avanço sobre o erário por meio das pautas corporativistas soma-se à vaidade daqueles que não querem ser vistos como meros servidores públicos, trabalhadores de um sistema de justiça democrático, a serviço de uma sociedade mais igualitária, includente e tolerante às diferenças. A tentação de se ver como um modelo de “gente de bem” acaba sendo muito forte. Neste contexto, somadas diversas peculiaridades da formação no campo do direito, torna-se um grande desafio exercer a humildade e a autocrítica.
Nós, operadores do direito, inclusive estimulados por simplificações promovidas pelo ensino jurídico e por ficções jurídicas como a que diz que o juiz é o “perito dos peritos”, tendemos a uma pretensão de sobreposição de nosso discurso a todos os demais. Uma observação atenta permite perceber a tragédia comunicacional que são “diálogos” travados entre operadores do direito e especialistas de outras áreas, considerados “auxiliares da justiça”.
A humildade não é nosso forte. Não obstante, precisamos fazer o esforço autocrítico de compreender que a formação jurídica no Brasil, a partir de um discurso dogmático autorreferenciado, a-histórico e apolítico, é extremamente limitante, alienante, que precisamos buscar permanentemente uma formação transdisciplinar mais completa e questionar insistentemente nossos pressupostos, o que, infelizmente, não tem sido suficientemente promovido pelas escolas institucionais do sistema de justiça, com raras e episódicas exceções.
Estou convencido de que não está necessariamente de má-fé o juiz ou membro do Ministério Público que acredita ser possível ao sujeito despir-se de sua história de vida, de sua condição de classe, gênero, cor, etnia, religião, visão de mundo e tudo o mais que atribui individualidade à sua existência e à sua maneira de perceber o mundo que o circunda e se orientar diante dele.
Isto porque, entre nós, a graduação em direito é marcada por consideráveis deficiências em termos curriculares, praticamente limitando-se os programas dos cursos às disciplinas dogmáticas, ou seja, ao estudo dos textos normativos vigentes, a partir de uma perspectiva epistemológica positivista, de uma base filosófica individualista típica do século XVIII, um método meramente lógico-formal e processos cartesianos de fragmentação do real, contribuindo para a mistificação.
A presença de disciplinas ditas zetéticas, que propiciam (ou poderiam propiciar) alguma reflexão crítica, na verdade, é irrisória e acaba funcionando apenas como um verniz supostamente capaz de dar um ar de cientificidade aos rios de tinta e às infindáveis horas-aula baseadas em puro senso comum e, assim, em preconceitos voltados à reprodução de privilégios e da desigualdade, em sentido oposto ao determinado em nossa ordem constitucional.
O curioso é constatar que sujeitos imersos neste caldo ideológico qualificam como “ideológica” qualquer atuação pautada na razão crítica, na historicidade do direito ou, de qualquer modo, na realidade concreta. O que se vê, na verdade, é a formação de uma forte cultura intolerante e excludente, que classifica opiniões divergentes como “ideológicas” para desautorizá-las, por mais que elas estejam em conexão com os processos concretos do mundo real, tão distantes dele que se encontram, nas nuvens ideológicas que sustentam suas posições, às quais ascenderam à base de uma grande dose de alienação.
Desperdiçadas com discussões sobre as aventuras de Tício, Mévio e Caio (personagens abstratos clássicos dos livros de dogmática jurídica) em uma sociedade contratual imaginária, imune às disputas distributivas ou identitárias, à desigualdade, à dominação, à exploração, as horas-aula da faculdade de direito poderiam ser melhor usadas para reflexões críticas a partir do real, do concreto, discussões sobre a construção ética necessária para que o direito fosse um ponto de convergência mínima das múltiplas culturas e perspectivas que permeiam os conflitos distributivos e identitários na sociedade.
Saímos todos dos cursos de graduação em direito (e, em grande medida, também dos de pós-graduação lato e stricto sensu) com ótimas definições, na ponta da língua, para conceitos como “ordem pública”, “bons costumes”, “boa-fé”, “autonomia da vontade”, “ressocialização”, “reprovabilidade”, “interesse público”, “razoabilidade”, entre tantos outros, sem que tal processo de formação tenha qualquer elemento de contato com a sociedade real, concreta, na qual se produz e se reproduz a dor concreta do ser humano de carne e osso, onde existe a fome, a miséria, a violência estatal, a negação de direitos e sobretudo onde existem as disputas distributivas permeadas pela opressão e exploração de classe.
A sociedade dos cursos de direito, aquela em que vivem Tício, Mévio e Caio, não apresenta estas complexidades, não tem, para usar uma expressão da moda, “tons de cinza”, nela é tudo preto no branco, exatamente como naquela presente em discursos fascistas que têm crescido neste preocupante momento histórico.
Aliás, nela não há qualquer questão identitária, discriminação ou desigualdade, nem mesmo classes sociais. Existem apenas “sujeitos de direito”, cujos conflitos de interesse são dirimidos por juízes que, também vivendo nesta sociedade ideal, não têm preferências, visão de mundo, gênero, cor, nem mesmo fazem parte de uma classe social. A depender da natureza da causa, promovendo-a ou intervindo para supostamente defender a ordem constitucional vigente, estará presente um membro do Ministério Público proveniente da mesma formação jurídica deficiente e sujeito à mesma ausência de políticas institucionais voltadas à formação inicial e continuada – não são necessários maiores comentários sobre os efeitos da tentação do “ser alguém”, “detacar-se” acima referida em um contexto assim.
Deste modo, não tendo qualquer interesse nos conflitos que lhes são apresentados, espera-se que tais juízes, promotores e procuradores sejam neutros, equidistantes. Apenas nos casos em que tenham relação pessoal direta com as disputas imediatas que lhes são apresentadas, nas hipóteses legais de suspeição e impedimento, se reconhece que a esperada equidistância do juiz possa ser prejudicada, o que acarreta seu afastamento do caso para que outro juiz, este sim, neutro, equidistante, de vida desvinculada da teia de disputas em que se entrelaça o conflito trazido a juízo, faça presente uma justiça impessoal, equidistante, até mesmo neutra. Daí o problema, no discurso corrente do senso comum, de operadores do direito agirem “politicamente” ou “ideologicamente”, conforme já observado acima.
O resultado só pode ser um discurso de confirmação irrefletida do status quo, de afirmação concreta e reprodução exatamente da ideologia dominante, aquela em que aqueles mais afeitos à razão instrumental que à razão crítica, alienam-se de si.
Os concursos públicos que fazem a seleção de profissionais do direito para tais carreiras não têm ajudado a corrigir esta distorção. Ao contrário, a têm aprofundado.
Esta é a armadilha em que nos encontramos. As instituições que mereceram tamanha aposta por parte do constituinte, aposta esta que esteve entre os poucos consensos presentes em praticamente todo o espectro político em 1988, seja pelo corporativismo, seja pelo obscurantismo, vêm revelando, neste período de crise política, suas contradições internas e uma possível ausência de vocação para contribuir com o processo democrático. Não em razão de alguma perversidade inerente ao sistema de justiça ou aos sujeitos que nele operam, não em razão de um projeto autoritário claramente delineado e avençado, mas sim por um processo de recrutamento que tem alimentado uma verdadeira indústria de “fast food” educacional, repleta de grandes novidades dos tempos líquidos que vivemos, sempre sob a perspectiva do indivíduo como empresário de si.
As distorções ainda presentes nos processos de ingresso, somadas à quase absoluta falta de compreensão quanto à importância dos processos formativos, iniciais e continuados, na perspectiva da ordem constitucional democrática e transformadora fundada pela Constituição de 1988, têm levado consideráveis setores das instituições do sistema de justiça a uma melancólica indigência intelectual e ética que tem corroído a própria legitimidade de tais instituições.
Assim, o irônico resultado das grandes apostas feitas no sistema de justiça em 1988 acaba sendo, lamentavelmente, o surgimento de uma geração de operadores do sistema de justiça que, ao menos em termos hegemônicos, tem se revelado insensível às questões sociais, à dor do outro, movendo-se por ações mecânicas de mera reprodução dos fatores de poder vigentes na sociedade aspecto que, somado a uma rasa ideia de meritocracia decorrente da ideologia mercadológica da prosperidade que move a indústria do concurso, leva a um perfil extremamente preocupante.
Daí não ser raro, atualmente, vermos atuações de instituições como se fossem meras organizações. De espaço de encontro das variadas perspectivas existentes na sociedade, de cristalização das disputas históricas em direção a uma convivência democrática e civilizada e, sobretudo, de espaço privilegiado para a preservação dos direitos e garantias fundamentais contra os arroubos antidemocráticos de indivíduos e grupos, passa-se a atuações típicas de meras organizações, por meio de “operações” que, por definição, têm metas determinadas – não necessariamente integrantes de um programa mais abrangente definido em instâncias participativas – e prazo certo. Ao invés de a instituições estarem se organizando para o enfrentamento, em termos estruturais, de problemas ligados à corrupção, à violência e outras formas de abuso que vulneram o processo democrático, abriu-se espaço para atuações de exceção, muitas vezes – consciente ou inconscientemente – a serviço de toda sorte de interesses contrários àqueles que tais instituições deveriam preservar.
Em um tempo em que representantes de importantes instituições do sistema de justiça atacam de “youtubers”, de “influencers” da opinião pública, inclusive exibindo camisetas de campanha com seus próprios retratos e a alusão a uma “república” paralela, de notáveis, em que suas próprias visões de mundo se sobrepõem, com toda a força que for possível, à soberania popular, em outras palavras, querendo “encarnar o mito”, na feliz expressão da recente canção do Gil, realmente precisamos refletir sobre os riscos a que a democracia brasileira está sujeita. Também não foi à toa que um tal general sentiu-se à vontade para falar em uma constituinte sem povo, formada por notáveis. Tudo em nome da isenção e da impessoalidade, claro!
As peculiaridades do papel do sistema de justiça no corrente processo eleitoral têm revelado, ao mesmo tempo, que grande parcela do povo não tem mais aceitado ser tutelado por gabinetes de burocratas “bem formados” e “bem intencionados”. A contrapartida deste fato positivo é a preocupante queda na legitimidade das instituições do sistema de justiça, o que somente pode interessar a quem não tem compromisso com mínimos valores civilizatórios – dentro e fora de tais instituições.
As abordagens transdisciplinares, as reformas estruturais e culturais nas instituições para a retomada da defesa da democracia e dos direitos sociais, colocados na nossa Constituição como instrumentos para a realização da democracia social que lhe dá sentido, constituem uma pauta para lá de urgente.
O desafio torna-se ainda maior quando percebemos, nos corredores do sistema de justiça que as deficiências de formação e de caráter de muitos dos responsáveis pela defesa e garantia dos direitos fundamentais têm levado alguns inclusive a apoiarem a propostas excludentes e violentas, marcadas pela promessa de soluções simples para problemas complexos.
Os desafios são enormes para aqueles que acreditam, sinceramente, que o sistema de justiça tem um papel importante a cumprir na preservação do ambiente democrático e na afirmação do projeto emancipador da Constituição de 1988, prestes a completar trinta anos.
Para aqueles que se sentem maiores que as instituições de que fazem parte ou que se valem dos cargos que ocupam para a obtenção de variadas formas de de proveito pessoal, lembro, parafraseando o Cazuza, que “o tempo não para” e ainda “estão rolando os dados”. É isto que anima a ler, refletir, discutir e compartilhar reflexões como esta com o público realmente preocupado com a defesa da democracia em período tão crítico. Sobretudo é isto que anima a lutar, ao lado do povo – e não contra ele – por um sistema de justiça democrático e pacificador, posto à disposição da soberania popular para a construção daquela sociedade almejada no referido art. 3º da Constituição de 1988, hoje sob ataque, inclusive por parte de muitos que deveriam defendê-la.
Daniel Serra Azul Guimarães – promotor de justiça, mestre em direito do Estado pela PUC-SP, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP.