Imparcialidade do juiz é critério para medir maturidade democrática de uma sociedade
Claus Roxin, um dos mais importantes juristas alemães, coloca em relevo, na linha preconizada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que “o jogo das aparências tem valor de regra de decisão” (TEDH) e destaca que um juiz pode ser recusado por temor de parcialidade quando exista uma razão para justificar a desconfiança sobre sua imparcialidade [1].
Acrescenta o professor aposentado da Universidade de Munique: “Para isso não se exige que ele [juiz] realmente seja parcial, antes bem, alcança com que possa introduzir-se a suspeita disso segundo uma valoração razoável”.
No mesmo sentido tem se pronunciado a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), para a qual a parcialidade, sem embargo de observada apenas objetivamente, invalida por completo o processo penal [2].
Com independência do fato óbvio, embora até o momento não reconhecido pelos tribunais brasileiros de que a prática ilícita do juiz Sergio Moro de dar a público conversas telefônicas sob sigilo caracteriza flagrante e incontornável situação de comprometimento da imparcialidade subjetiva do magistrado para julgar o ex-presidente, os desdobramentos dos procedimentos contra Lula, sob direção do magistrado, semanalmente trazem mais e mais elementos que comprovam o evidente desrespeito à exigência de imparcialidade.
Exemplo da parcialidade anterior ao processo: a difusão pública da comunicação entre Presidente da República e Lula e conversas sem interesse para a investigação, como por exemplo as que foram travadas por mãe (D. Marisa) e filho.
Exemplos recentes são as perguntas, com nota de parcialidade que já não se procura esconder, sobre o destino do Partido dos Trabalhadores (?) e as que insinuam claramente que o reverenciado (por Moro) ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não pode se comparar ao “acusado” Lula, porque o primeiro em nenhuma hipótese receberia doações “por fora” para o Instituto que leva o seu nome, ao contrário de Lula (?… típica ilustração de pré-julgamento).
Seguem os trechos:
“Questionado se em algum momento seu instituto recebeu doação não registrada ou por fora ou ainda contribuições escondidas, o ex-presidente respondeu: ‘Não. Isso é absolutamente impossível. Absolutamente impossível. Eu pessoalmente não saberia dizer ao senhor quem deu quanto e quando. Eu não sei. Isso tudo é institucional e está tudo registrado, tem publicação’”. (fonte: G1).
“— Essa ideia da refundação, renovação, também envolveria reconhecimento de eventuais irregularidades praticadas por agentes vinculados ao Partido dos Trabalhadores? — perguntou o juiz (Moro à testemunha Tarso Genro). Será isso uma pergunta imprópria?” (fonte: O Globo).
A Operação Lava Jato tem seus prós e contras, como todos os engenhos humanos. Entre os inegáveis méritos conta ter revelado as relações promíscuas entre a classe política e parte do grande empresariado nacional e estar recuperando valores inéditos, desviados em corrupção; entre aquilo que há de indiscutivelmente negativo está a consciência de fazer “terra arrasada” da economia e das empresas nacionais, contribuindo para a desnacionalização da Petrobras, e o fato de instituir paradigma de violação de direitos de acusados, instrumentalizando a prisão preventiva fora das hipóteses legais para incentivar delações premiadas por receio ou por efetiva execução da prisão indevida, em regra não rechaçada pelos tribunais.
Mas há outro aspecto que salta aos olhos e que é muito grave. Em determinado momento o conjunto de procedimentos da Lava Jato deixou de servir com exclusividade aos fins de Justiça (bem ou mal) e converteu-se também em um meio de influenciar a política e de tentar interferir, indiretamente, na vontade popular.
Os trechos destacados acima comprovam o desvio de rota da Lava Jato e, por inscreverem-se no âmbito de procedimentos judiciais, correm o risco de servir de paradigma para a Justiça Brasileira ser tolerante com violações à garantia da imparcialidade do julgador.
Assim, quando à toda evidência um juiz comprometido ao menos objetivamente em seu distanciamento de causa e partes segue conduzindo de forma indevida um processo acompanhado nacionalmente, sem que os tribunais corrijam a distorção, outros magistrados podem se sentir amparados na decisão de dirigir processos contra adversários políticos. Para isso basta “afirmar” a própria imparcialidade, malgrado contraditada por fatos e atos.
Em um ambiente fortemente polarizado, como é o da sociedade brasileira neste momento, muitas pessoas tendem “a dar razão” a Moro, afinal, pensam, é necessário “prender e condenar Lula!” (nesta ordem). Se para alcançar este objetivo, que se lancem às favas os escrúpulos junto com a imparcialidade judicial, este é o suposto “fim que justifica os meios”. Este é também o raciocínio implícito nesta maneira de ver as coisas.
As “rachaduras” na credibilidade do caráter isento da Justiça são os vãos por onde passam diariamente as injustiças do cotidiano. Elas não afetam somente os envolvidos em determinado processo (Lula e outros, no exemplo), mas irradiam-se pelo corpo social para contaminar o maior patrimônio do Poder Judiciário: a crença popular de que as causas são decididas como resultado do embate entre as pessoas envolvidas na disputa (as partes do processo) e não a partir de pré-julgamentos.
Os juízes e juízas de todas as instâncias diariamente atuam apoiados no respaldo que o atributo da imparcialidade lhes confere. Sem este apoio suas decisões passam a ser perigosamente questionadas e as consequências de algo dessa ordem são muito graves.
Uma sociedade madura democraticamente sabe distinguir os campos das disputas: o desejo de não ver prevalecer o adversário político é objeto de ações políticas na seara própria; à justiça criminal reservam-se os casos nos quais, de forma não artificial e forçada, o que se julga são condutas qualificadas como crimes com base em provas que podem ser aceitas em qualquer tribunal de um Estado democrático e republicano.
A perda da confiabilidade das pessoas na isenção da magistratura de seu país pode ensejar que acreditem em “teorias da conspiração” como as de Romero Jucá, e isso, definitivamente, é a porta aberta para o desastre. Os tribunais têm o dever e a responsabilidade de corrigir a tempo os sérios desvios de rota em nossa hoje questionável democracia.
Geraldo Prado é Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Fonte: Justificando/ Carta Capital
Crédito Foto: Ultimo Segundo – IG