Publicado no Jota.
30 anos da Constituição. A data, em si, precisa ser celebrada. As constituições são feitas para durar. A experiência brasileira, contudo, mostra que algumas constituições democráticas tiveram vida relativamente curta: a de 1934, substituída por uma carta outorgada em novembro de 1937. A de 1946, ignorada e desmoralizada pelos tanques em abril de 1964. Assim, não é pouco o que se conseguiu a partir de 5 de outubro de 1988. Uma Constituição elaborada por meio de um processo participativo e inclusivo, que significou uma ruptura com o regime autoritário e viabilizou um caminho para a instalação e o aperfeiçoamento da democracia no Brasil.
O nosso momento, contudo, é delicado e perigoso. Além das crises política e econômica, constatamos que a própria Constituição se encontra em crise. É necessário, portanto, para celebrar o passado e lutar pelo futuro do constitucionalismo democrático brasileiro, compreender os principais elementos dessa crise e identificar as alternativas que se colocam para o direito e para a política nas próximas décadas.
O retorno do passado: escravidão e voto de cabresto
Como seres históricos, estamos sempre situados no tempo. Também estamos em condições de analisar as disputas que se colocam em relação ao nosso próprio tempo. Um dos aspectos da crise desencadeada em 2016 envolve uma tensão que é temporal: entre passado e futuro, entre barbárie e civilização, entre colonialismo e emancipação. Duas situações político-econômicas ocorridas nesse curto intervalo entre 2016 e 2018 são muito significativas. Elas nos mostram a dimensão da crise e os riscos que corremos exatamente no momento em que a Constituição completa 30 anos.
Em outubro de 2017, o governo Temer editou uma portaria que redefinia o conceito de trabalho escravo. Negando a própria legislação brasileira e todos os avanços que o Brasil construiu no combate à escravidão contemporânea, o governo, possivelmente por razões políticas, baixou uma norma que violava compromissos internacionais, a Constituição e o Código Penal. Houve imediata reação da sociedade civil, que denunciou o imenso retrocesso que ali se verificava. Felizmente, a portaria, após recomendação conjunta do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho e a suspensão por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, acabou revogada.
Em setembro e outubro de 2018, uma prática empresarial passou a ser noticiada. Proprietários de empresas passaram a constranger diretamente seus empregados a votar em candidatos de sua preferência nas eleições de 7 de outubro, especialmente no pleito presidencial, marcado por forte polarização. Alguns casos isolados foram identificados em pleitos anteriores, porém nada similar à enorme quantidade de episódios recentes, envolvendo inclusive grandes corporações. Apenas entre os dias 1º e 4 de outubro, foram apresentadas 120 denúncias. O Ministério Público do Trabalho está atuando no combate a essa prática, tendo obtido termo de compromisso num importante caso e logrado êxito num pedido liminar para vedar outra coação amplamente noticiada.
Esses dois casos são extremamente reveladores de nossa crise atual. Neles podemos vislumbrar camadas de temporalidade. A flexibilização do conceito de escravidão sinaliza uma postura branda em relação a uma das maiores violências já cometidas na história, a saber, a escravização maciça de povos africanos e indígenas. A prática de coagir empregados a seguir a opção política do empresário remete às práticas comuns dos coronéis da Primeira República, que mantinham sob controle os trabalhadores que eram deles dependentes, perpetuando assim uma estrutura de dominação política e econômica.
O ovo da serpente: o Judiciário e sua relação com a Constituição
Em o Ovo da Serpente, direção e roteiro de Ingmar Bergman, diz o inspetor Bauer para Abel Rosenberg que nada funciona bem, exceto o medo. Alemanha, final da década de 1920, espaço e tempo onde tudo parece ser possível e permissível. De fato, tudo foi possível e permissível com a ascensão do nazismo. Ou mais do que tudo, o que transcendeu todas as categorias morais e explodiu todos os padrões de jurisdição, no dizer de Hannah Arendt. Brasil, 2018, espaço e tempo onde tudo parece ser possível e permissível. Ou mais do que tudo. As categorias morais e os padrões de jurisdição estão por um fio. Nada parece funcionar bem, exceto o medo.
Mas a narrativa dos últimos trinta anos não foi sempre essa. Com o evento da constituinte em 1987 e o advento da Constituição de 1988, o constitucionalismo autoritário cedeu lugar para o constitucionalismo democrático. Isso não significa que as antigas engrenagens se adequaram tranquila e mecanicamente à democracia, na medida em que tinham sido forjadas para um modelo de Estado e de governo de concentração de poder, de renda e de privilégios. Entretanto, o esforço coletivo de interpretar a constituição à sua melhor luz fez com que as tensões na e da Constituição fossem produtivas.
Sujeitos que outrora não eram reconhecidos em suas diferenças e direitos que se limitavam à sua enunciação sem qualquer aplicação passaram a ser conjugados na dinâmica constitucional-democrática produzindo decisões (legislativas, jurisdicionais e administrativas) como o estatuto da igualdade racial, a quebra das patentes dos medicamentos da aids, a união entre pessoas do mesmo sexo, as cotas nas universidades públicas (apenas para citar algumas), que melhoraram a vida das pessoas.
Isso não quer dizer que a Constituição elidiu os paradoxos próprios da relação entre constitucionalismo e democracia; ao contrário, apostou neles, na inevitabilidade do conflito, na medida em que decisões são contestáveis e o desacordo é o campo por excelência da política democrática e não a sua eliminação.
Entretanto, um certo triunfalismo do constitucionalismo da primeira década de vigência da Constituição, com constitucionalismo da efetividade e a crença de que todos os problemas da refundação da democracia constitucional no Brasil seriam respondidos por meio da sua aplicação pelo poder judiciário, sugeriu uma eliminação da tensão entre constitucionalismo e democracia. O protagonismo das Cortes, o crescente incentivo à judicialização de questões políticas, a mobilização de grupos sociais em torno da judicialização deram a sensação de que o constitucionalismo da redemocratização havia conquistado um lugar seguro, eis o ovo da serpente.
O constitucionalismo da efetividade considerou que bastava a concretização dos direitos fundamentais por meio de um judiciário ativista, mas desconsiderou a permanência da estrutura conservadora desse mesmo judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal. Ao produzir uma dogmática celebratória de si, o constitucionalismo da efetividade se colocou como marco zero da história constitucional brasileira, quando em realidade, sem o exercício de memória e sem a narrativa do passado, o risco do uso da Constituição contra ela mesma é iminente. Há, portanto, uma fratura que se manifesta em 2016. Como dito no primeiro texto desta série, a Constituição completa 30 anos em plena crise.
Conclusão: passado e futuro
A Constituição completa 30 anos em uma encruzilhada. Entre passado e futuro. Os casos aqui mencionados revelam práticas antigas, desgastadas, colonizadoras, violentas. A atuação institucional do Judiciário, especialmente do STF, é conivente com o esvaziamento dos direitos sociais e a supervalorização do mercado. Mas a Constituição, como sabemos por sua história e seu texto, permite soluções modernas, inéditas, emancipatórias, libertárias. Em que ponto está a história da Constituição de 1988? Sucumbirá ao contexto de crise? Ou permanecerá indicando caminhos possíveis para inclusão e cidadania, tão necessárias na sociedade brasileira? Esta reflexão se encerra, de modo proposital, com essas perguntas. As respostas – com todos seus riscos e possibilidades – cabem à sociedade civil e aos setores políticos comprometidos com a democracia.
*O presente artigo está incluído em uma série dedicada aos 30 anos da Constituição de 1988. Este espaço é compartilhado por professores e pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (UnB – Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição), por componentes do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e por pesquisadores convidados.
Vera Karam de Chueiri – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.