VOCÊ É LOUCA. SUA LOUCA. LOUCA!!

(Por todas as loucas dessa pátria desalmada, Brasil.)

Por Cristiane Correa de Souza Hillal* no GGN

  1. Nasce.

Ao longo da história, a tentativa de entender e lidar com a loucura passou por mudanças permeadas de tensões e embates de interesses que custaram vidas.

  1. Tenta aprender a ler.

Há muitas dores por trás da história da luta antimanicomial no Brasil. Mais do que o fechamento de hospitais e leitos psiquiátricos, a luta antimanicomial propõe uma mudança de paradigmas políticos, sociais, culturais, jurídicos e clínicos na forma de enxergar e lidar com a loucura.

  1. Expulsa da escola. Bate em uma amiga.

Para que se lute, eticamente, pela reinserção da pessoa com transtorno mental na família e na comunidade, resgatando sua cidadania e autonomia, é preciso vencer o que teóricos chamam de “desejos de manicômio” consistentes na vontade de dominar, subjugar, classificar, hierarquizar, oprimir e controlar aquele que, em sua subjetividade, revela-se diferente e rebelde à adequação convencional em nossa ordem econômico-social.

  1. Casa-se.

Como já nos ensinou Michel Foucault, o aprisionamento da experiência da loucura e a eliminação da heterogeneidade estão no imaginário de uma sociedade autoritária que vive a ilusão de um mundo uniformizado por homens disciplinados e produtivos, como síntese de virtude.

  1. Apanha do marido alcoólatra.

A lógica da filosofia manicomial/hospitalocêntrica ganhou força com o discurso iluminista do século XVIII e repousa na concepção de um sujeito fundado nos parâmetros da razão universal, sempre capaz de controlar seus atos, sua vida e o mundo que o cerca. É alguém disciplinado que atende às regras, normas e pactos sociais e está apenas comprometido com a manutenção da ordem social.

  1. Apanha mais. E mais… e mais …

A loucura passa a ser vista como falha da razão, um furo no projeto humano.  A cura significava resolver o equívoco que a loucura representa. Sem espaço no universo simbólico, o lugar social reservado para a loucura não poderia ser outro a não ser o da exclusão, do encarceramento e da morte subjetiva. (1)

  1. Três filhas. Primeira internação psiquiátrica.

Em um país como o nosso, estruturado na naturalização da violência e exclusão do negro, esse caldo cultural ganha potência. Não se estranha o desabafo do psiquiatra italiano Franco Basaglia (2), pioneiro na luta antimanicomial na Itália, que, ao vir ao Brasil e visitar o Manicômio de Barbacena em 1979, o chamou de “holocausto brasileiro”. Ele disse: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”.

Sessenta mil mortos foram estimados no Hospital Colônia de Barbacena em Minas Gerais. Despidos de suas roupas, cabelos e identidades, desembarcavam, nos famosos “trens de doidos”, pessoas de todos os cantos do país.

Dentre elas, estima-se que 70% sequer tinham, de fato, transtornos mentais. A maioria estava ali porque eram “pessoas não agradáveis e incômodas”. Opositores políticos, prostitutas, homossexuais, mendigos, pessoas sem documentos, epiléticos, alcoolistas, meninas grávidas e violentadas por seus patrões, esposas adúlteras, amantes indiscretas, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, entre outros grupos marginalizados na sociedade.

“Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia e ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos passaram a ser decompostos em ácido, no pátio da Colônia, na frente dos pacientes ainda vivos, para que as ossadas pudessem ser comercializadas”. (3)

  1. Segunda internação psiquiátrica. Epilepsia. Alucinação.

É nesse contexto genocida que se fortaleceu, no Brasil, o contraponto da reforma psiquiátrica e sanitária na década de 70, momento em que variados movimentos sociais, partidos e sindicatos também se organizavam para resistir à ditadura cívico-militar. É, pois, na carona da mobilização por um país democrático e humanista que o Movimento de Trabalhadores da Saúde Mental se organizou para criticar o aprisionamento da loucura.

O transtorno mental passou a ser visto menos como um problema médico e mais como um fenômeno social.

  1. Ganha jaleco branco e pasta azul. Vira a dona do hospital psiquiátrico Cândido Ferreira.

De 1987 a 1993 consolidou-se o MNLA – Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, que contribuiu a construção dos paradigmas do SUS na Constituição Federal. O Hospital Cândido Ferreira, em Campinas/SP, é pioneiro na adesão ao movimento e inicia processo de inclusão social dos internados criando a primeira residência terapêutica, em 1991.

  1. Bastante autônoma. Faz saídas externas. Volta à escola.

É promulgada a Lei 10216, de 06 de abril de 2001, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Estava sacramentada, como política pública, a reforma psiquiátrica.

  1. Frequenta lojas e escolhe as próprias roupas. Na residência terapêutica, quer quarto só para ela.

Consolida-se a esperança de que a violência dos manicômios, a mercantilização da loucura, a hegemonia de assistência da rede privada, o “saber” psiquiátrico como hierarquicamente superior, o modelo hospitalocêntrico de tratamento, a visão de que o transtorno mental se reduz à lógica “doença e cura” estavam com os dias contados.

  1. Pede festa de aniversário. Dá e recebe carinho.

No rol dos direitos das pessoas com transtorno mental, no artigo 2º. e seus incisos, destacam-se, expressamente, os direitos de um “ambiente terapêutico menos invasivo possível”. O artigo 3º destaca que a Política Pública, de responsabilidade do Estado, será construída com a participação da sociedade e da família. No artigo 4º, consta de forma categórica que a internação só será indicada quando os recursos extra hospitalares se mostrarem insuficientes.

  1. Aprende a usar chave e cadeado. Cuida dos próprios pertences. Adora bolinho de chuva.

Sem qualquer fundamento científico, começa a fortalecer o discurso no seio social de que a luta antimanicomial foi ineficaz. Aumentam as Comunidades Terapêuticas, entidades privadas, de caráter asilar, normalmente destinadas a dependentes químicos e outros, com viés moralista, disciplinar e religioso, na carona de um ideário de “guerra às drogas”.

Nelas, os usuários voltam à lógica de que precisam ser corrigidos e que devem ser submetidos à vontade dos outros, os quais, para salvá-los, decidem como devem dividir o tempo de seus dias e com quem podem se comunicar e se relacionar. O eixo central do tratamento proposto é a abstinência, o isolamento e a restrição do convívio social, familiar e comunitário, na contramão da Lei 10216/2001.

  1. Vai ver o mar. Não desgruda da enfermeira.

Cárcere privado, tortura, sedação, trabalho escravo. Essa é a realidade das Comunidades Terapêuticas estampada no Relatório Nacional de Inspeção realizado em outubro de 2017, em comunidades de cinco regiões do Brasil, em uma iniciativa da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) – em conjunto com o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).

  1. Gosta de ouvir música, dançar e comer bala de coco.

A Lei 13840, de 2019 escancara as portas para investimento público em Comunidades Terapêuticas ao mesmo tempo em que crescem denúncias, nas Promotorias de Justiça, de atrocidades praticadas em suas dependências.

A Resolução 03/2020, do CONAD, autoriza a internação de adolescentes em comunidades terapêuticas.

  1. BEATRIZ. Vira estatística. É uma das 162 mil vidas perdidas para a COVID.

“Lembro daquela senhora negra, de cabelos brancos, em uma festa junina tri bonita, muitas barracas, quadrilha e eu de padre. Fizemos um casamento bem animado: era noivo fugindo, noiva chorando, padre rezando…ela estava lá, com sua pasta azul e o jaleco branco. Me disse: – Filhinha padre, que regulamento é esse? – É o regulamento da alegria, disse, e fui levando Beatriz para a roda da dança.”, conta a enfermeira do Cândido Ferreira, Maria Eugenia.

Maria Eugenia também engrossa uma estatística: a dos profissionais de saúde mental desse país que jamais desistirão de lutar pela liberdade dos corpos, contra o medo de enxergar a loucura que nos habita e a morte em vida.

Seguem rigorosamente o regulamento da alegria, ainda que, como ensinou Walter Benjamin, “o passado não cesse de existir”. Estão ali, atentos e fortes, para enxergar, amar e libertar as loucas dos cadeados que ainda não aprenderam a usar.

Haverá sempre alguém, ao lado dos demasiadamente humanos, para a partilha do mar e da chuva em forma de bolinho.

 

Referências:

[1] SILVA, Maura Lima Bezerra e; CALDAS, Marcus Tulio. Revisitando a técnica de eletroconvulsoterapia no contexto da reforma psiquiátrica brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 28, n. 2, p., dez. 2008.

2  Franco Basaglia, dentre outras obras, indica-se: BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 326 p.

3 BRANCO, Thayara Castelo. O Holocausto manicomial: trechos da história do maior hospício do Brasil!. 2015. Disponível em: <http://www.justificando.com/2015/03/05/o-holocausto-manicomial-trechos-da-historia-do-maior-hospicio-do-brasil/>. Acesso em: 05 mar. 2015.

 

*Cristiane Correa de Souza Hillal é promotora de Justiça MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.

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