Captura da constituição e manobras desconstituintes: crônica do Brasil contemporâneo

A partir do exemplo chileno, o líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros, propôs que o Brasil também passasse por um plebiscito relacionado à elaboração de uma nova constituição.

Por Cristiano Paixão no GGN 

Numa importante afirmação da democracia e da esperança em um futuro menos desigual, a sociedade chilena votou de forma consistente a favor da elaboração de uma nova constituição, que substituirá o documento constitucional que vigora desde o período da ditadura de Pinochet. A partir do exemplo chileno, o líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros, propôs que o Brasil também passasse por um plebiscito relacionado à elaboração de uma nova constituição. Segundo o deputado, a Constituição de 1988 “só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a nação”. Ainda na opinião do deputado, a Constituição de 1988 torna o país “ingovernável” (https://www.poder360.com.br/congresso/lider-do-governo-volta-a-defender-nova-constituinte-privilegiados-nao-gostaram/).

A proposta foi recebida com frieza e ceticismo pela expressiva maioria da classe política. Não houve significativas adesões à proposta e o assunto não demorou a sair das manchetes. Esse desfecho poderia, a princípio, autorizar a conclusão de que se formou no Brasil uma cultura política de aceitação da Constituição. A realidade, contudo, não é exatamente assim.

Ainda que seja positivo o fato de a iniciativa não ter sido levada em consideração por boa parte dos atores políticos no Brasil, há algo que chama a atenção. Talvez seja outra a motivação para a ausência de adesão à proposta de Barros. É possível que atores sociais interessados na desconstrução da Constituição de 1988 tenham percebido que não é necessário escrever um novo documento constitucional. Eles aprenderam a desfigurar a constituição sem necessidade até mesmo de aprovar uma emenda constitucional. Eles utilizam, ao invés disso, a lei ordinária.

Trata-se de uma mudança de abordagem. É interessante notar que surgiram seis diferentes propostas de emenda à constituição (PECs), entre 1997 e 2009, que tinham receitas diferentes para o mesmo objetivo: modificar a forma de modificar a Constituição. Frustrada a revisão constitucional prevista no art. 3º do Ato da Disposições Constitucionais Transitórias (com a aprovação de seis emendas entre março e junho de 1994), não mais subsistiu, no sistema, nenhuma alternativa para alteração do texto além da emenda constitucional (que exige, como se sabe, duas votações em cada casa do Congresso, com quórum de três quintos dos votos).

Começam então a surgir as PECs, seja para convocação de uma assembleia constituinte limitada, de uma assembleia revisora, de uma constituinte exclusiva para o sistema político e ideias similares. Ocorre, contudo, que nenhuma delas foi aprovada – muito embora algumas ainda estejam tramitando no Parlamento.

Então uma nova estratégia apareceu no horizonte. E ela é mais engenhosa, pois usa o processo legislativo, com soluções heterodoxas, para promover mudanças de alcance constitucional. E assim se inicia, com sutileza e particularidades brasileiras, aquele fenômeno que Jan-Werner Müller denominou como “captura da constituição” (https://www.eurozine.com/rising-to-the-challenge-of-constitutional-capture/).

Quando tudo isso começou?

O processo tem várias etapas e responsáveis, mas é possível rastrear seus passos iniciais, que se localizam na década de 2010, já na antessala da crise política que encontraria seu ápice com o impeachment de 2016. E a estratégia foi utilizada pela primeira vez num dos temas mais sensíveis relacionados com a defesa dos direitos humanos: o conceito de trabalho em condições análogas à de escravo.

Após uma longa tramitação, foi aprovada, no Senado Federal, a PEC 57/99, que estabeleceu nova redação ao art. 243 da Constituição, com o objetivo de permitir a expropriação de terras em que fosse encontrado o trabalho escravo. Em 5 de junho de 2014 foi então promulgada a Emenda Constitucional nº 81. Já naquele momento, a aprovação chamou a atenção de vários observadores, considerando-se a crescente influência do agronegócio e da bancada ruralista no cenário político brasileiro, especialmente no Senado. A explicação não tardaria a vir à tona. Havia um preço a pagar pela aprovação da proposta: a criação de uma comissão no Senado com o intuito de “regulamentar” a emenda, e com isso promover alterações no conceito de trabalho em condições análogas à de escravo. Não por acaso, havia sido inserida a expressão “na forma da lei” no texto final da emenda. Até hoje não se pode afirmar com exatidão a existência de um acordo parlamentar para a votação da PEC, muito embora haja vários indícios de que ele ocorreu. A tramitação da PEC foi acidentada e complexa, como demonstrado na análise, feita com rigor e propriedade, por Adilson Santana de Carvalho em monografia defendida na Faculdade de Direito da UnB em junho de 2018.

A comissão constituída no âmbito do Senado começou a se reunir. E chegou a propor um texto de regulamentação que, como se imaginava, restringia o conceito então em vigor, diminuindo as hipóteses em que seria possível qualificar o trabalho em condições análogas à de escravo. O projeto teve urgência concedida e caminhava para aprovação, até que setores da sociedade civil se mobilizaram e denunciaram a articulação. Foi decisiva a atuação do ativista em direitos humanos Kailash Satyarthi, que, em visita ao Brasil, esteve no Senado com lideranças políticas e com o próprio Presidente daquela Casa (https://www12.senado.leg.br/institucional/presidencia/noticia/renan-calheiros/premio-nobel-da-paz-pede-apoio-do-senado-no-combate-ao-trabalho-escravo).

Naquele momento, a estratégia não “funcionou”. Mas o aprendizado ficou. Em 2017 ela seria utilizada de forma seletiva e com um desfecho recheado de consequências para o mundo do trabalho. Em março de 2017 a Câmara resolveu aprovar, sem nenhum diálogo social e de maneira completamente inesperada, um projeto de lei que havia sido apresentado em 1998 e estava com tramitação paralisada havia vários anos. Aquele projeto (PL 4.302/1998) se converteu na Lei nº 13.429/2017, que ampliou de forma desmesurada e sem qualquer justificativa o fenômeno da terceirização, permitindo a locação de mão de obra em empresas públicas e privadas. Independentemente do juízo acerca dessa modalidade de prestação de trabalho – que tem inúmeros problemas ligados à precarização da condição do trabalhador –, é evidente que se trata de uma mudança significativa dos parâmetros protetivos da relação de trabalho, que têm dimensão constitucional. E foi introduzida por meio dessa deliberação furtiva da Câmara dos Deputados, sem uma discussão minimamente séria acerca das repercussões da norma.

O mesmo fenômeno ocorreria, com consequências ainda mais devastadoras, naquele mesmo ano de 2017. A aprovação da chamada “reforma trabalhista”, objeto da Lei nº 13.467/2017, seguiria um curso legislativo incomum, com a inserção de muitos artigos em relação ao projeto original e, principalmente, com a abstenção do Senado Federal em todo o processo legislativo (o projeto originário da Câmara foi aprovado sem nenhuma alteração). Houve também insuficiência no diálogo social, considerando-se dois fatores: (1) a visível acolhida, por parte dos parlamentares, a integrantes de federações e confederações empresariais favoráveis ao projeto, com pouquíssima oitiva de representantes de sindicatos de trabalhadores; (2) a violenta repressão das forças de segurança ocorrida no dia 24 de maio de 2017 em Brasília, que impediu a manifestação de centrais sindicais e trabalhadores em geral contra a aprovação da matéria no Congresso (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1887139-protesto-em-brasilia-termina-com-49-feridos-7-detidos-e-exercito-nas-ruas.shtml). E a repercussão da reforma no mundo do trabalho foi gigantesca: jornada de trabalho, saúde e segurança, organização sindical, atribuições da Justiça do Trabalho, extensão do dano moral, acesso à justiça, normas processuais, tudo isso está na norma legal com o objetivo declarado de transformar radicalmente as relações de trabalho no Brasil.

É evidente que há repercussão constitucional nas normas aprovadas. Isso é especialmente visível em relação ao financiamento das entidades sindicais, que tiveram suprimida sua principal fonte de recursos sem que houvesse nenhuma medida de transição ou de implantação gradual do novo sistema. O resultado, entre outros, é a diminuição da capacidade dos entes sindicais de prestarem assistência aos seus filiados e o enfraquecimento de sua presença no espaço público, o que ocorreu com grande intensidade desde o período de transição para a democracia.

Não por acaso, a matéria foi objeto de várias ações no STF. O ritmo da análise das demandas é lento e desigual. A perda de receita das entidades, contudo, já foi autorizada pelo Plenário do Supremo, em julgamento ocorrido em 2018 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-stf-e-o-direito-do-trabalho-as-tres-fases-da-destruicao-29062020). Outras violações constantes da reforma, como a restrição ao acesso ao Judiciário e a redução discriminatória dos valores referentes a indenização por dano moral, ainda aguardam julgamento.

Os casos tratados até aqui têm um elemento comum: eles envolvem a utilização do processo legislativo para a aprovação de medidas contra a Constituição. A primeira experiência, da regulamentação do conceito de trabalho escravo, não logrou sucesso por conta da mobilização da sociedade civil. Nos outros dois casos, que resultaram nas Leis nº 13.429 e 13.467 de 2017, a manobra foi exitosa. Modificou-se a estrutura do sistema de proteção do trabalho, previsto na Constituição, por meio da legislação ordinária (https://www.academia.edu/35242994/Reforma_trabalhista_terceiriza%C3%A7%C3%A3o_contra_a_Constitui%C3%A7%C3%A3o_JOTA ).

A partir de 2019, outros dois fenômenos se manifestam no Brasil, ambos já discutidos por mim em textos anteriores: o oportunismo desconstituinte (https://jornalggn.com.br/artigos/covid-19-e-o-oportunismo-desconstituinte-por-cristiano-paixao/) e a desconstrução “por dentro” da Constituição (https://jornalggn.com.br/artigos/destruindo-por-dentro-praticas-desconstituintes-do-nosso-tempo-por-cristiano-paixao/). Eles são partes do mesmo movimento, que envolve uma desativação seletiva das salvaguardas institucionais previstas na Constituição em temas sensíveis para a comunidade política brasileira. O oportunismo desconstituinte decorre da utilização do contexto de pandemia para retirar o protagonismo das entidades sindicais laborais na sua função essencial, que é a de promover a negociação coletiva. Ao permitir acordos individuais para redução de jornada de trabalho e salário, sem participação do sindicato, a MP 936 afronta diretamente a Constituição. Especialmente num momento de emergência sanitária, o diálogo social se torna ainda mais importante. Mesmo com tal argumento, o STF decidiu pela constitucionalidade da medida (ADI 6363).

A desconstrução “por dentro” pode ser verificada todos os dias: não há políticas públicas de combate ao racismo, não há preservação do meio ambiente, não há fomento à cultura e não há conservação do patrimônio histórico, porque as instituições encarregadas de zelar por essas áreas cruciais da vida social brasileira estão com suas atribuições esvaziadas ou se colocam frontalmente contra a proteção de bens constitucionais.

É hora de compreender de forma abrangente os fenômenos discutidos até aqui: uso do processo legislativo contra a Constituição, utilização da pandemia para esvaziar preceitos constitucionais, desativação do aparato institucional voltado à efetivação de políticas previstas na Constituição. Esse é o receituário da reação desconstituinte que se descortina no Brasil contemporâneo, e que torna dispensável o desgaste de se proceder a alterações formais no texto constitucional ou lançar mão de recursos como “constituinte revisora”, “miniconstituinte exclusiva” ou similares. Fica clara, com essa explicação, a falta de adesão à proposta do deputado Ricardo Barros. Para atores interessados na desconstrução da Constituição de 1988, há vários meios disponíveis, mais eficazes e menos ruidosos.

Essa situação vivenciada no Brasil, que envolve uma parcela da classe política que começa a operar contra a própria constituição, não é inédita. Vários países têm experimentado um quadro de instabilidade democrática e institucional. Alguns lograram inclusive aprovar uma nova constituição, como no caso da Hungria. Outros entram num processo de degradação das instituições políticas e jurídicas, como os Estados Unidos sob a presidência de Trump. E há ainda aqueles que promovem alterações pontuais na legislação e na estrutura do governo que colocam a constituição em uma posição de fragilidade, como na Polônia. Em todos esses casos, o que está em jogo é a capacidade do país de se constituir como uma comunidade política democrática, com ênfase na realização da liberdade e da igualdade. Os desafios que se colocam para a realização dessa tarefa são enormes. A resistência não se organiza contra os tanques, armas e batalhões militares que, durante décadas, invadiram o espaço do poder civil. O combate agora envolve opositores mais sofisticados, que desenvolveram estratégias sutis de captura da constituição. Na atualidade, o armamento disponível – e recomendável – a todos aqueles comprometidos com a democracia é a defesa da Constituição, dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais que informam a vida política e social. Em contraposição a manobras e atitudes desconstituintes, é o momento de afirmação de uma postura reconstituinte, de retorno ao marco civilizatório estabelecido em 5 de outubro de 1988.

Cristiano Paixão – Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB

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