Por Marlon Alberto Weichert, no El País.
Justiça de Transição é a denominação dada para um conjunto de medidas judiciais e não judiciais adotadas por países egressos de regimes autoritários ou guerras internas para lidar com o legado de graves violações aos direitos humanos. O objetivo central do processo de justiça de transição é o fortalecimento do Estado democrático de direito, com o desenvolvimento de garantias de não-recorrência, ou seja, a transformação do Estado e da sociedade para que não se repitam violações em massa aos direitos humanos.
Houve três experiências transicionais que impulsionaram a adoção da justiça de transição no mundo. O primeiro no Cone Sul da América, após os golpes militares e as ditaduras extremamente violentas dos anos sessenta a oitenta. O segundo na África do Sul, após o fim do regime racista do apartheid, em 1994, liderado por Nelson Mandela. E, finalmente, as transições nos países do extinto bloco soviético na Europa oriental e central, também no início da década de 1990, após a queda do Muro de Berlim.
O processo de justiça transicional se desenvolve independentemente do matiz ideológico do regime autoritário encerrado. Seu pressuposto é a constatação de que democracia e direitos humanos são fatores de uma mesma equação. Sem um não há o outro, e vice-versa.
O sucesso do processo de justiça de transição depende da sua adoção como uma política pública articulada, com a implantação de diversos mecanismos, classificados em eixos, dentre os quais se destacam: responsabilidade criminal de autores de graves crimes contra os direitos humanos, revelação da verdade, reparação das vítimas, preservação e divulgação da memória e reformas institucionais. Esses mecanismos aceleram tanto o apego social à convivência democrática como a transformação das instituições públicas, de modo a tornar ambos resilientes a arroubos autoritários.
No Brasil, a Constituição de 1988 é o marco normativo da transição. Com ela foram adotadas reformas institucionais e jurídicas que alteraram a conformação de instituições-chave para a democracia e introduzidas a promoção e a proteção dos direitos humanos como elemento central do Estado.
Entretanto, apesar do primeiro passo dado pela Constituição, o país não desenvolveu uma política abrangente e efetiva de justiça transicional. Apenas medidas esparsas foram adotadas, quase sempre a partir da pressão de sobreviventes da repressão política e de familiares de mortos e desaparecidos.
Basicamente, o que houve foi a edição da Lei 9.140/95, com a qual se reconheceram os mortos e desaparecidos políticos, se garantiu às famílias o direito à reparação à busca e à identificação dos restos mortais e se instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos; a promulgação da Lei 10.559/02, a qual criou a Comissão de Anistia e promoveu um amplo sistema de reparações; a instituição de uma Comissão Nacional da Verdade; e a edição da Lei de Acesso à Informação.
Sobretudo no plano da responsabilização de autores de graves violações aos direitos humanos, de preservação da memória e de reformas institucionais dos aparatos de segurança pública, o Brasil é um triste caso de falta de vontade política de enfrentar e superar o passado. Aliás, no que diz respeito à revisão de sua Lei de Anistia e ao cumprimento da obrigação internacional de investigar e punir crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura, o Brasil é o único país da América Latina que ainda resiste. Os demais países enfrentaram os estatutos de impunidade herdados dos períodos ditatoriais e promovem justiça. O último a dar esse passo foi El Salvador. Mas o Brasil não.
O nosso país segue como um paraíso de torturadores e genocidas. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, desde 2010, não decide como integrará a sua decisão a favor da constitucionalidade da Lei de Anistia (na ADPF 153) com as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos adotadas em 2010 e 2018 que declararam essa lei inválida, à luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Corte determinou que o Brasil avançasse na promoção da responsabilização e, embora o Ministério Público Federal tenha realizado centenas de investigações e apresentado dezenas de ações penais, o Judiciário permanece inerte. Apega-se ao ordenamento jurídico da ditadura e rejeita uma interpretação que faça prevalecer normas internacionais de direitos humanos consolidadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Isso mesmo – o sistema de justiça brasileiro parece estar, ainda, numa fase pré-Tribunal de Nüremberg.
Não é por acaso que, por aqui, a não-recorrência de abusos massivos aos direitos humanos é uma utopia. As forças de segurança matam mais de 5.000 civis por ano, sem controle. As penitenciárias mantém uma população de 650 mil presos em condições cruéis, sob tortura muitas vezes. Forjou-se um país em que se pode ganhar eleições defendendo execuções sumárias de suspeitos, ou seja, a pena de morte sem nem mesmo um mínimo de direito de defesa. Tudo com a certeza da impunidade. Tudo com a tranquilidade de que o Estado não leva a sério os direitos humanos e apoia aqueles que perpetram graves violações. Os agentes públicos não têm mesmo muito a temer. Têm o exemplo da ditadura, na qual, ao final, o Estado garantiu a impunidade. Vivem, ademais, os mesmos valores, em instituições que não se reformaram.
“Os agentes públicos não têm mesmo muito a temer. Têm o exemplo da ditadura, na qual, ao final, o Estado garantiu a impunidade”.
A falta de uma política pública abrangente de justiça de transição no Brasil se sente, também, na democracia. A análise do resultado das recentes eleições bem demonstra que a defesa de propostas autoritárias e violentas ainda logra iludir. Houve um desencanto com a retomada democrática, não porque a democracia seja ruim, mas sim porque a experiência democrática brasileira pós-ditadura é deficitária. Os grupos sociais dominantes antes, durante e após a ditadura são os mesmos. A desigualdade social, que cresceu na ditadura, expandiu-se após a transição. A violência alcança níveis estratosféricos. Sem dúvida, não há democracia efetiva nesse cenário. A falta de transformações estruturais cunhou uma democracia incivil e desigual no Brasil, ou seja, produziu uma cópia malfeita de democracia. Esse fenômeno econômico-social se associa à falta de verdade, memória e justiça sobre o autoritarismo e facilita a defesa de um saudosismo forjado, de um passado que a maioria da população atual sequer conheceu ou compreendeu. Certamente que a adoção abrangente da justiça de transição não seria, por si só, capaz de dar conta de todos os legados sociais, econômicos e políticos do Brasil, mas contribuiria decisivamente para a resiliência social na defesa democrática e dos direitos humanos.
Nem tudo, porém, são más notícias. O Ministério Público Federal, desde 1999, abraçou os valores da justiça de transição. Não foi de uma vez. Foi um processo de construção paulatina, que ganhou ímpeto quando a instituição responsavelmente assumiu seu dever de fazer cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia. O MPF, ao lado da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e da Comissão de Anistia, insiste nessa pauta. Acredita na proeminência da democracia e dos direitos humanos.
O MPF impulsionou a busca de desaparecidos políticos; promoveu a responsabilidade criminal e civil de perpetradores de torturas, estupros, execuções sumárias e desaparecimentos forçados; incentivou a instalação da Comissão da Verdade e apoiou o seu funcionamento; e incidiu para a abertura dos arquivos da ditadura. Os procuradores da República também atuam para preservar e divulgar a memória, requerendo a alteração de nomeação de logradouros públicos que homenageiam ditadores e violadores de direitos humanos; a implantação de centros de memória em antigos centros de terror, tal como na sede de DOI-CODIs e DOPSs, na Casa da Morte em Petrópolis e na sede Auditoria Militar em São Paulo. A instituição tem, também, um grupo específico de trabalho para tratar das violações sofridas pelos povos indígenas, o qual já propôs ações civis públicas buscando a reparação de direitos, sempre atento às peculiaridades culturais e às necessidades específicas dessas comunidades. Finalmente, o MPF também trabalha para a reforma institucional do aparato estatal e a preservação dos programas de reparação às vítimas, geridos pelas Comissões de Anistia e sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
“O nosso país segue como um paraíso de torturadores e genocidas”.
Enfim, nessas duas décadas de atuação, o MPF construiu a reputação de ser a instituição brasileira que, nas esferas extrajudicial e judicial, nos planos cível e criminal, aplica persistentemente os conceitos de justiça transicional em toda a sua amplitude. Para prestar contas desses 20 anos de trabalho, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e as Câmaras de Coordenação Criminal e de Povos Indígenas do MPF lançam um sítio na Internet no qual narram as atividades que desenvolveram, as dificuldades enfrentadas e fornecem mais informações sobre o tema. Com isso, o MPF cumpre com o dever de transparência e contribui para o conhecimento da matéria.
Marlon Alberto Weichert é procurador federal dos Direitos do Cidadão Adjunto.
Foto: livro Cães de guarda