Por Antonio Claudio Linhares Araújo, no GGN.
No dia 15 de março de 2018, o Brasil vivenciou um fato inédito em sua história: a primeira greve de magistrados. A paralisação não foi total, pois não contou com a adesão dos juízes estaduais, porém teve grande participação de membros das justiças federal e do trabalho, as quais, se não são numericamente majoritárias, representam parcelas importantes do Judiciário.
É interessante notar que esta greve histórica esteja acontecendo em uma época singular da vida nacional. Grande parcela da população brasileira, bem como uma considerável quantidade de juristas, filósofos e cientistas sociais dos mais diversos campos acadêmicos, no Brasil e no exterior, afirmam com veemência que estamos vivendo sob o governo de um presidente da república ilegítimo, que foi alçado ao poder por meio de um processo de impeachment assemelhado a um golpe de estado, vez que sem bases legais e constitucionais.
Ademais, também é de conhecimento geral que o programa de governo implantado no pós-golpe tem se pautado por uma extrema agressividade contra o modelo de estado social e democrático de direito inscrito na Constituição Federal de 1988. Nossa ordem jurídica vem sendo desfigurada por diversas iniciativas de governo, tais como a reforma da CLT, que reduziu a proteção estatal ao trabalhador em meio a uma forte crise econômica e desemprego; ou a emenda constitucional 95, que congelou os gastos sociais por 20 anos; e até um recente decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro, instituindo um “mini” estado de exceção que se anuncia, temerariamente, como um “laboratório” de políticas de segurança pública para o país.
Como uma greve é um ato político por natureza, cabe perguntar: teria este grave quadro de instabilidade institucional motivado ou pelo menos influenciado os juízes neste histórico movimento grevista? Será que os magistrados irmanaram-se àqueles brasileiros que se colocam na resistência e da defesa da constituição, frente ao programa de extermínio de direitos trazido pelo golpe? Afinal, a magistratura pode se engajar na defesa de causas populares, sem prejuízo de suas funções institucionais, pois a condição de agentes públicos não retira a possibilidade de aproximação com o povo e com movimentos da sociedade civil, tal como vem tentando fazer alguns juízes e membros do Ministério Público em entidades associativas como a Associação Juízes para a Democracia – AJD, ou o Coletivo Transforma MP.
Porém, a motivação da greve foi bem mais simples, apesar de não exatamente simplória. A preocupação dos magistrados, que é compartilhada com a categoria dos membros do Ministério Público, foi com sua a própria remuneração, ou mais precisamente com uma parcela desta remuneração que era alvo de contestação no Supremo Tribunal Federal: o auxílio-moradia.
A questão do auxílio-moradia não é de fato tão simples assim. Aliás, é honesto e relevante informar que este promotor de justiça que vos fala também recebe auxílio-moradia, mas acredito que minha posição, ao ser beneficiado por esta espécie remuneratória, não me retira o direito de criticá-la, como passarei a expor.
Há alguns anos instalou-se entre as carreiras jurídicas uma política de recomposição de perdas remuneratórias em decorrência da inflação por meio do disfarce do aumento do valor dos subsídios em espécies remuneratórias denominadas de “auxílios”. É verdade que o auxílio-moradia é uma verba prevista em lei, mas os “auxílios” tem a natureza jurídica de indenização – tanto assim que sobre eles não incide imposto de renda – de modo que, no caso do “moradia”, seu valor deveria ser correspondente a um efetivo gasto que o juiz ou promotor tivesse que dispender com aluguel no local onde trabalha.
O auxílio-moradia deve ser, portanto, uma compensação por um encargo financeiro adicional em razão do desempenho da função pública, pois juízes e promotores têm a obrigação funcional de residir na comarca onde são lotados. Se o auxílio fosse pago segundo esta diretriz, é evidente que não provocaria nenhuma contestação junto à sociedade, pois é ponto pacífico que as carreiras de estado devem ser remuneradas de modo condigno, sendo ainda princípio elementar de justiça que nenhum trabalhador deve pagar do próprio bolso custos financeiros decorrentes de sua função, pois isto ao final diminuiriam a contraprestação pelo trabalho.
Porém, ninguém mais ignora que este não é o feitio que o auxílio-moradia tem assumido atualmente, pois a verba está sendo paga indistintamente a todos os membros do MP e magistratura, sem nenhuma comprovação de despesa, beneficiando até mesmo quem tem moradia própria na comarca em que fixou residência, ou até mesmo quem nasceu e vive na cidade onde trabalha. Assim, os trabalhadores do sistema de justiça (juízes e promotores) devem agora encarar de frente as consequência do tremendo erro histórico ocorrido ao serem empurrados, em negociações corporativas muito questionáveis, a uma política remuneratória baseada em “auxílios”.
Para mim, sempre foi inconcebível que a luta das associações por uma pretensa “dignidade remuneratória” tenha nos conduzido a aceitar a troca de um direito básico de todo trabalhador, que é a recomposição inflacionária de seu salário (subsídio), por “auxílios”, cujo sentido semântico mais se aproxima de uma esmola do que de um direito, sendo evidente que este arranjo de política remuneratória colocou as corporações em situação de vulnerabilidade junto à opinião pública, pois a legitimidade dos “auxílios” não escapa à crítica de qualquer pessoa.
Relevante esclarecer que a implantação do “auxílio-moradia” ocorreu em um ambiente de baixa representatividade democrática das associações de âmbito nacional, que não cuidaram de estabelecer um canal discussão ampla com os membros da corporação ao tomarem frente nas negociações que resultaram na acetação desta esdrúxula política remuneratória.
Não são poucos os juízes e promotores que, como eu, sentem grande constrangimento ao receber o auxílio moradia como resultado desta política remuneratória equivocada, mas que foi se naturalizando ao longo do tempo como o pretenso “único meio” de evitar perdas salariais pela inflação acumulada. Já outros, talvez com maior grandeza de espírito, optam por não receber o famigerado auxílio, muito embora seja incerto que consigam permanecer assim caso se consolide esta “mágica” da transmutação do salário em verbas indenizatórias, que, em alguns lugares do Brasil, já se expandiu para tomar uma parte considerável dos contracheques no fim do mês, preenchidos vergonhosamente com auxílios de destinação nominal a todo tipo de despesa comum a qualquer profissional, tais como educação, cheche, compra de livros, etc.
Atualmente, depois da exposição massiva desta prática à crítica da sociedade, pela ação da imprensa, tornou-se insustentável persistir na defesa da legitimidade do pagamento do auxílio-moradia. Tanto é assim que o STF esteve na iminência de declarar a ilegalidade desse engenho salarial, cuja existência sequer é negada pelas associações corporativas, muito embora o julgamento do caso tenha sido suspenso para que a questão fosse submetida a uma “mesa de negociação” entre as associações de classe e o governo federal.
Aliás, a suspensão do julgamento e a abertura deste espaço de negociação com o governo federal foi comemorado pelas entidades associativas como um grande resultado obtido pelo movimento pela corporação por meio da greve. Porém, esta situação também pode resultar em risco para que o sistema de justiça possa desempenhar as funções que lhe são exigidas nesta época de aguda crise institucional no país, em face das sensíveis implicações políticas envoltas nessa negociação.
A política remuneratória baseada em auxílios expôs as corporações jurídicas a uma situação de vulnerabilidade política e bastou que os grandes meios de comunicação passassem a dar enfoque sistemático ao tema para que a sociedade reagisse à ilegitimidade dos auxílios, criando assim uma necessidade premente de discussão franca da questão.
Mas, em face da insustentabilidade dos auxílios, é fundamental que a solução negociada que está sendo proposta no âmbito do STF possa emergir de um processo pautado pela transparência e que viabilize discussões com uma participação ampla dos membros das corporações, bem como acompanhamento crítico da sociedade civil, a fim de minimizar os riscos de deterioração institucional do sistema de justiça no conturbado cenário político brasileiro.
Antonio Claudio Linhares Araújo é membro do Transforma MP. Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio Grande do Norte.