Prisão preventiva de 90% das prisões em flagrante: a conta atinge ares de escândalo

Por Roberto Tardelli, no Justificando.

É de cortar a alma a faca. É de doer o peito. É de sair aos berros na chuva. É de sangrar os olhos. Leio nos jornais que o resultado das audiências de custódia, criadas por iniciativa humanitária de diminuir esse flagelo da superlotação carcerária, teve como resultado, aqui, na Capital do Tucanistão, a conversão em prisão preventiva de 90% das prisões em flagrante.

Significa dizer que, de cada cem pessoas detidas em flagrante, noventa vão permanecer presas. Não sei quantos seres humanos foram levados aos juízes do Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), o que ressalta é que o sistema prisional funciona como verdadeira teia de aranha, quem nele cair, dificilmente sairá.

A conta atinge ares de escândalo porque fere frontalmente a Constituição Federal, que assegura, textualmente que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

É, assim, de grotesca ilegalidade a manutenção dessas pessoas humanas encarceradas, a menos que a estatística e a lógica hajam sido reinventadas e que noventa por cento das pessoas humanas, seres humanos, presos em flagrante pela polícia e levados ao Juiz de Custódia, cumprissem as cautelas dizimadoras dos arts. 312 e seguintes do Código de Processo Penal.

Na crônica forense, não tenho dúvidas que a imensa maioria é composta de usuários de drogas, convertidos em traficantes, pequenos roubadores, ladrões de Natal (miseráveis que surrupiam panetones, castanhas, cachaça). Gente que se encolhe com seus cães nos baixos dos viadutos, gente que perdeu tudo e a quem restava apenas a liberdade de sair por aí.

Fico me perguntando que espécie de superioridade moral sente o Juiz, ou pior, na pluralidade deles, os Juízes que se sentem autorizados a descumprir a Constituição Federal, desabando seus ódios, suas limitações pessoais, seus preconceitos contra a massa miserável que lhe cai às mãos.

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Como podem se esquecer que, ao chegarem a esse absurdo patológico, negaram o juramento que prestaram, no primeiro momento em que foram investidos do poder de julgar? Que gente é essa que não se solidariza, que lota e amassa e amarrota gente como se fosse lixo em celas superlotadas?

Vivemos tempos narcísicos, esses que negaram a liberdade que jamais lhes pertenceu a tantos miseráveis, são diuturnamente encorajados pela legião de ódio que as redes sociais mobilizam. São legitimados pelo ódio, são acolhidos pelo ódio e fazem do ódio o eixo central do que  imaginam ser um pensamento, mas não é mais que preconceito, não mais é do que uma limitação atroz de horizontes.

Nas redes sociais, eles saem fortalecidos até para rasgarem a Constituição, sem que percebam, alienados que são, que essa mesma Constituição que violam, que rasgam, que ridicularizam, é a mesma que lhes dá existência.

Não percebem eles que estão queimando a própria casa, estão derrubando o próprio castelo. Não percebem, em suma, que os presos que sequestram, aos lhes negar a liberdade a que tem direito, estão albergados na mesma Constituição que enalteceu como nunca o Poder Judiciário.

Os mesmos direitos que negam à população, da qual, estranhamente, não se acham pertencentes, poderão lhes ser negados, tão arbitrariamente quanto o fizeram com os pretos, os miseráveis, os desgranhentos, descamisados e descalços. O portão da legalidade que derrubaram a pontapés poderá dar passagem aos fantasmas que deixarão esses pequenos ditadores acuados, protegidos apenas pelas próprias sombras.

Como noventa por cento? Quem os soltará e quem prenderá os que prenderam por atacado? Digo isso porque somente uma visão pré-concebida e prenhe de ódio de gênero, de classe, de tudo, justifica uma detenção em massa. Não se deram conta disso?

Não se deram? Como foi possível que não se dessem conta disso?

Noventa por cento de miseráveis, capturados pela Justiça (foram presos pela Polícia, mas capturados pela Justiça) estão nesse momento espremidos em celas horrendas e superlotadas, estão dormindo no chão, entre ratos e baratas, estão se defendendo, estão sem visitas e sem sol, estão apodrecendo em vida, sem saber quando sairão e se, quando saírem, quando irão se livrar das sequelas da privação de liberdade que ilegalmente sofreram.

A questão – essa chacina com os direitos humanos – dos noventa por cento nos remete a outro patamar: quem pode deter esse processo de agigantamento, não da expressão punitivista, inevitável ao Direito Penal, em maior ou menor extensão, mas desse ódio social militante? Quem devolverá a legalidade aos ilegalistas?

Noventa por cento presos, afundados no pior dos infernos. Afundados e submersos num oceano de iniquidades do qual não conseguem sair.

Acima desses juízes, outros juízes, preclaros e lídimos, consagraram a tese de que não é possível discutir matéria de prova no Habeas Corpus, único meio aos alcance desses deserdados para que tenham de volta a liberdade que lhes foi tomada. Não é possível, dizem, discutir as motivações da prisão, apenas são possíveis questionamentos formais. A ilegalidade ou a injustiça da prisão, estamos cansados de ouvir, ficam para a discussão de mérito que, com sorte, ocorrerá ainda este ano.

Desses noventa por cento, outros noventa por cento serão condenados; desses, cinquenta por cento terão regimes de penas menos gravosos e terão ficado presos imotivadamente por meses e meses a fio. Os demais, ah, esses se tornarão inquilinos do Inferno, reféns do sistema penitenciário mais degradante.

Noventa por cento. Noventa por cento. Noventa por cento.

“Arre, estou farto de semi-deuses.

Onde é que há gente neste mundo?” –  Fernando Pessoa.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway e membro do Transforma MP.

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