“Que furtou por estar fedendo”: os dois desodorantes que levaram um homem à prisão

Esta foi a frase que me apareceu ao ler o interrogatório de um auto de prisão em flagrante de audiência de custódia que fiz nestes dias. Os objetos furtados? Dois desodorantes da marca Rexona.

Por Philipe Arapian, no Justificando.

Segue trecho do interrogatório na íntegra:

“Que não tinha dinheiro para comprar desodorante e resolveu subtrair dois desodorantes Rexona. Que furtou por estar fedendo. Que não irá fazer mais isso não. Nada mais disse nem lhe foi perguntado.”

Sim, esta foi a audiência que movimentou: agentes policiais condutores do flagrante (além da gasolina da viatura deles), um Escrevente e um Delegado de Polícia, escolta prisional (e gasolina) para o levar até a audiência no fórum Criminal, e um juiz, um promotor e um defensor público. Ah além de bastante papel, tinta e impressão para lavrar o flagrante e deixar tudo registrado (e cópias enviadas para Judiciário, Ministério Público e Defensoria). E aí bora fazer as contas?

Bom, mas vocês devem estar pensando: “Ah, pelo menos na audiência ele foi solto..”. Errado! Ficou preso!

O senhor Roberto (nome fictício), de quase quarenta anos de idade, somente responde um outro procedimento por furto (em andamento), e mais nada. Ou seja, é PRIMÁRIO e sem nenhum antecedente criminal.

A pergunta que nos inquieta então talvez seja: por que o juiz converteu esta prisão em flagrante em preventiva? Pois trata-se de procedimento que inclusive poderia ser arquivado pelo princípio da insignificância.

Eu prefiro enxergar o fato de maneira mais ampla. Em primeiro lugar, por que o dono do mercado não conseguiu ter a sensibilidade de, ao ver a situação do sr. Roberto (ele realmente estava fedendo!), ter relevado esta situação? Além de praticar uma ação humanitária, certamente esses dois desodorantes para ele tiveram um custo ínfimo. Por que chamou a Polícia? Em segundo lugar, por que o Delegado não aplicou o princípio da insignificância, por que não o soltou? Em terceiro lugar ainda, por que o Promotor de Justiça pediu a conversão da prisão em preventiva, mesmo sendo um réu primário?

Por que nenhuma dessas pessoas que poderiam ter evitado essa prisão, e pensado mais na situação pessoal do sr. Roberto, inclusive verificando sua situação pessoal e procurando o ajudar, assim não o fizeram? Por que enjaulamos pessoas em situações como essas? Não temos outra resposta a oferecer?

Roberto tampouco compreendeu o que aconteceu naquela audiência de custódia. Ao conversar com ele no fim para explicar que ele ficaria preso, sentado ao lado dele, explicando que eu faria um Habeas Corpus no mesmo dia, um recurso para o soltar, ele não compreendia. Não entendia que seria preso. Que dessa audiência iria para uma jaula, muito provavelmente superlotada, suja, fétida, sem acesso a qualquer de seus direitos mais básicos (a liberdade já não é a maior preocupação). Ele só me dizia que tinha um tumor na cabeça (me mostrava alguns pontos) e que era gesseiro, e que não faria mais aquilo. Tentei explicar três vezes, tirando o juridiquês de lado, mas parecia tudo em vão.

Uma informação para quem não vive o Direito Penal brasileiro na prática. Em quase dois anos de atuação, posso afirmar que praticamente toda semana faço pelo menos uma audiência de furto de supermercado. E estou falando de mim. Desse modo, como há muitas outras Varas Criminais em Goiânia, é quase diária a apreensão de pessoas em fatos desse tipo aqui na capital goiana.

Voltando ao caso, fiz o HC no mesmo dia, no plantão judicial, às 18:05 hs protocolei. No outro dia pela manhã, tive conhecimento do resultado da liminar: INDEFERIDA. Sim, indeferida.

O pedido de liberdade de um furto de desodorante, de alguém primário, foi indeferido pelo desembargador plantonista. Comecei a pensar se eu quem não estaria errado, vez que Promotor, Juiz e Desembargador opinaram pela prisão preventiva de alguém primário acusado de furto simples. Mas não. A Lei diz expressamente que um primário não pode ser preso preventivamente se o crime que lhe é imputado não ultrapassa quatro anos, simples assim (artigo 313 do Código de Processo Penal). Ou seja, se a Lei fosse respeitada minimamente, ele jamais poderia ter sido preso preventivamente. Mas foi.

Enfim, após ver o resultado da liminar, fui para as minhas audiências. No intervalo de uma delas, descubro que a mãe e a irmã dele estão ao lado de fora me esperando, com muitos exames médicos, receitas de remédios, radiografia e muitos documentos que comprovam inclusive o tumor no cérebro, epilepsia e também que ele não tem total compreensão das ações que pratica.

O cenário muda por completo. O Promotor já começa a preparar o parecer pelo deferimento da revogação da prisão. Eu digo que vou protocolar o pedido o mais rápido possível, assim que minhas audiências acabarem, e o juiz sinaliza para um futuro deferimento.

Dito e feito. No outro dia pela manhã alvará expedido e ao final do dia ele é solto.

Enfim, alívio de missão cumprida, um respiro profundo, e um final não tão ruim quanto poderia ser. No entanto, ninguém vai saber pelo que passou o sr. Roberto, com todos esses problemas de saúde, sem seus remédios, nestes dois dias na cadeia. Nunca saberemos. Agora, pior ainda, imaginem para aqueles que não têm família… É, para alguns, os desodorantes falarão mais alto que a liberdade.

Philipe Arapian é Defensor Público de Goiás.

 

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