O genocídio de crianças, adolescentes e jovens negros não admite silêncio

Elisiane Santos, na Carta Capital.

O que mais preocupa é o silêncio dos bons” (Martin Luther King)

Segundo a Convenção da ONU para prevenção e repressão aos crimes de genocídio (1948), ratificada pelo Estado brasileiro e vigente no país desde 1952, entende-se como tal atos cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional étnico, racial, ou religioso, a exemplo de assassinatos ou dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo (artigo II). A Convenção estabelece que serão punidos, além do genocídio, o conluio para tais práticas, a incitação direta e pública, a tentativa e cumplicidade (artigo III). E diz que serão punidas as pessoas que cometerem tais práticas, sejam governantes, funcionários ou particulares (artigo IV). Além disso, os Estados reconhecem o genocídio como um crime internacional contra a humanidade.

Na última semana, assistimos estarrecidos a violência brutal praticada contra jovens e adolescentes, em festa de rua, na comunidade de Paraisópolis, que levou a morte nove pessoas, com idade entre 14 e 23 anos, situação essa que chocou o país, autoridades, sociedade civil, mas que lamentavelmente vem se mostrando prática sistêmica, com intensificação nas comunidades periféricas, fortemente agravada nos últimos anos – como revela relatório da OMS em que o Brasil passou a de 10o a 7o maior taxa de homicídio da região das Américas -, sem reação efetiva das instituições à política genocida da juventude negra pelo Estado brasileiro. O que vemos são denúncias e alertas sobre esse crime humanitário, que persiste no país, como uma pauta de ações lideradas pelos movimentos negros, quando deveria ser atuação prioritária das instituições que defendem os direitos sociais e o regime democrático, como o Ministério Público, e luta de toda a sociedade.

Quando falamos de crianças e adolescentes, os números pouco divulgados, são chocantes. Em pesquisa inédita, o UNICEF apurou na cidade de São Paulo, através de dados da própria Secretaria de Segurança Pública que a maior causa de mortes violentas deste segmento da população é causada pelas polícias. Aponta que nos anos de 2014 a 2108, apenas no município de São Paulo, as policias mataram 580 crianças e adolescentes, uma média de 12 mortes ou assassinatos ao mês[1]. A informação foi publicada em matéria jornalística da Deutche Welle, 21/06/2019, sob o título “Em São Paulo, crianças e adolescentes na mira da polícia”[2]. No dia 05/09/2019 foi instituído o Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, integrado pelo UNICEF, Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo e ALESP, ao que parece sem foco específico na questão da letalidade policial, à ausência da Secretaria de Segurança Pública na sua composição[3].

Ao que se vê, não houve medida imediata, após a instituição do Comitê, com vistas à redução da violência policial contra crianças e adolescentes. Ao revés, o massacre de Paraisópolis escancara a brutalidade e força desnecessária empregada na ação policial nas favelas como procedimento utilizado em operações táticas. Além disso, é incontroversa a realização das operações de repressão aos bailes funk, justificadas na lei do silêncio ou na guerra às drogas. O Governador do Estado, logo após o trágico episódio, declarou publicamente que as operações policiais iriam continuar nos mesmos moldes, negando letalidade praticada pela ação policial (https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/12/02/doria-diz-que-politica-de-seguranca-publica-nao-vai-mudar-apos-mortes-em-paraisopolis.ghtml). Cabe questionar por que tais operações são seletivas, haja vista inexistirem registros de ataques e massacres de jovens e adolescentes em festas de rock, raves, shows em bairros nobres da elite paulistana.

Após reunião com as mães das vítimas e entidades da sociedade civil, o governador do Estado reconheceu que os procedimentos precisam ser revistos. O perfil das vítimas assassinadas pelo Estado é o mesmo, em sua maioria homens jovens e negros. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2019[4], os óbitos em decorrência de intervenção policial cresceram 19,6% de 2017 para 2018, atingindo a 6.220 pessoas. Considerando apenas esse tipo de morte, 99,3% eram homens e 77,9% jovens de 15 a 29 anos, entre 2017 e 2018.

Tais dados não autorizam que se pense em casos individuais, acidentes, ação desastrosa, imprudente, descuidada. Seria cruel e desrespeitoso, além da perversidade da violência real, registrada em inúmeros vídeos que circulam na internet – independentemente de se referirem à agressão praticada contra adolescentes e jovens na madrugada de 01/12 em Paraisópolis -,  praticar violência simbólica e institucional, ao se tentar relativizar a gravidade dos fatos, ou o que é igualmente insidioso, culpabilizar vítimas.

O genocídio da juventude negra – incluídas crianças e adolescentes – é uma perversa realidade, que precisa ser enfrentada pelas instituições brasileiras e pela sociedade, tal qual se desvela a olhos nus nos noticiários. Nesse sentido, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal para apuração dos “Assassinatos de Jovens”, no ano 2016, através de extenso trabalho de levantamento de dados, pesquisa, oitivas de profissionais, especialistas, mães, familiares, audiências públicas com a sociedade civil, reconheceu a realidade do genocídio negro, conforme consta do relatório (p. 33-4):

Esta CPI, em consonância com os anseios do Movimento Negro, bem como com as conclusões de estudiosos e especialistas do tema, assume aqui a expressão GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA como a que melhor se adequa à descrição da atual realidade em nosso país com relação ao assassinato dos jovens negros. O Brasil não pode conviver com um cotidiano tão perverso e ignominioso. Anualmente, milhares de vidas são ceifadas, milhares de família são desintegradas, milhares de mães perdem sua razão de viver. A hora é de repensarmos a ação do Estado, mais particularmente do aparato policial e jurídico, como forma de enfrentar essa questão. Para que em um futuro próximo tenhamos uma nação mais justa e igualitária onde as famílias, as mães e irmãos não tenham mais que chorar pela morte desses jovens. (…)

Não podemos mais ignorar que esta parcela da população brasileira esteja sendo dizimada. Seja por ação dos órgãos de repressão, mediante intervenção policial; seja por omissão, pela falta de políticas públicas eficientes de redução das mortes, vemos que o Estado brasileiro é leniente com o referido genocídio. Esta CPI quer mostrar que a população negra não pode ser invisível aos olhos do Estado. (…)

Execuções extrajudiciais demonstram o fracasso do Estado em aplicar a Lei, ao tempo em que revelam que a mesma Lei não se aplica indistintamente aos cidadãos: alguns merecem o devido processo legal, outros a execução sumária. (…)

Ademais, o Estado possui o monopólio do uso da força, como forma primeira de preservar o direito à vida de seus cidadãos, assim, nada mais deletério a uma ideia de nação que este Estado utilize a força, sem suporte legal, contra estes cidadãos.”

Para enfrentar uma política de Estado, não basta responsabilizar os policiais, parte também de um sistema de opressão e estruturalmente racista, que orienta a ação violenta.  É necessário sim apurar as responsabilidades individuais pelos crimes praticados, mas sobretudo exigir do Estado, nas esferas municipal, estadual e federal a adoção de políticas de segurança pública compatíveis com os valores e princípios do Estado Democrático de Direito, entre estes o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade e não discriminação, o da proteção integral e prioridade absoluta de crianças, adolescentes e jovens (arts. 1º, 3º, 5º e 227 da Constituição Federal). Além disso, as políticas de cultura, lazer, geração de renda, moradia, acesso à universidade e trabalho digno para a juventude negra e periférica devem ser prioridades dos governos.

A responsabilidade pela violência do Estado deve ser apurada em todas as suas dimensões e reconhecida como grave violação de direitos humanos. Não se pode continuar convivendo silenciosamente com o extermínio de jovens, crianças e adolescentes. A ineficiência dos órgãos de defesa e sistema de Justiça se revela tanto na ação preventiva (inexistente) quanto na repressiva, ao resultar na impunidade ou responsabilidade ineficaz dos agentes policias envolvidos com as mortes, sem ações direcionadas à modificação estrutural do sistema. Nesse sentido, a luta do Movimento Mães de Maio, a realidade trazida no filme “Auto de Resistência”, de Natasha Neri e Lula Carvalho (2018), os registros constantes da CPI do Senado (2016), e o próprio assassinato da vereadora Marielle Franco, até o momento sem solução.

O Ministério Público, como defensor do regime democrático, da ordem jurídica e dos direitos sociais não pode limitar sua atuação à apuração de responsabilidades dos agentes policiais, exigindo sim que o Governo do Estado de São Paulo, em relação ao massacre de Paraisópolis, e o Estado brasileiro, em relação ao genocídio que vem sendo perpetrado contra a população negra, adotem providências para cessar a letalidade da ação policial contra jovens, em territórios periféricos, de forma preventiva, ao tempo em que respondam às famílias das vítimas e à sociedade brasileira pelas vidas interrompidas de forma injusta, prematura e injustificável pela ação estatal.

Nesse sentido, em relação à investigação criminal, importante destacar deliberações  do IV Encontro Nacional de Aperfeiçoamento da Atuação do Ministério Público no Controle Externo da Atividade Policial, realizado em Brasília-DF, no ano 2014, em que membros de todos os Ministérios Públicos assumiram o compromisso de empreender esforços para combater o “auto de resistência seguido de morte”, por meio de iniciativas que garantam que toda ação estatal que resulte em óbito terá a sua específica investigação policial. O uso desmesurado da força policial, em vez de reduzir a violência, promove o seu fomento e compromete a credibilidade das instituições policiais perante a sociedade. O Encontro culminou com a publicação da Cartilha “O MP no Enfrentamento de Mortes Decorrentes da Ação Policial”[5], que contempla medidas importantes, para, minimamente, assegurar a correta apuração criminal, com isenção e responsabilização dos agentes que praticaram tais violências.

Contudo, a discussão e atuação do Ministério Público deve ir além da responsabilização criminal dos agentes, para exigir do Estado o reconhecimento da existência do genocídio e medidas para acabar com essa grave violação de direitos humanos. Faz-se necessário discutir a política de segurança pública no país, o que passa pelo debate sobre desmilitarização das polícias ou novas formas de organização das carreiras policiais. Sobre este ponto, manifestou-se inclusive a CPI do Senado, com propostas de alterações legislativas e registros das mudanças sugeridas nas escutas da sociedade, entre estas a melhor formação e treinamento dos policiais, a desmilitarização e a criação de uma polícia de ciclo completo e de carreira única.

É papel também do Ministério Público promover esse debate. A propósito, no ano em curso, inciativa do MPF, em a parceria com a ONG Justiça Global, sobre esse tema, sofreu tentativa de censura do CNPJ (Conselho Nacional dos Procuradores de Justiça), o que foi objeto de nota de repúdio pelo Coletivo Transforma MP[6], na qual já afirmávamos a imprescindibilidade de se tratar da questão em âmbito institucional, especialmente diante da atribuição ministerial de controle externo da atividade policial: “Em que pese a preocupação do Conselho, não se trata, como erroneamente dito, de “evento que possa desqualificar a atuação” da Polícia Militar, mas sim de um debate mais que necessário, mais que pertinente, mais que atual, que vem em boa hora. Nunca é demais lembrar que as mortes provocadas por ações da polícia militar e o número de policiais mortos atingiram montantes intoleráveis numa sociedade que se pretende democrática.”

Além disso, a instituição Ministério Público e todas as demais integrantes do sistema de Justiça e Segurança Pública, incluídas as polícias, nos seus diferentes ramos, estruturas e organizações não podem se furtar ao olhar interno crítico e debate sobre racismo estrutural e institucional que permeiam tais espaços e reproduzem os estigmas, preconceitos e naturalização da violência (seja ela real ou simbólica) em relação a jovens e adolescentes negros. É um processo de desumanização do grupo étnico, que leva ao genocídio – aceito enquanto não denunciado como tal -. talvez o mais perverso dos efeitos do racismo na sociedade contemporânea.

Ainda, as políticas públicas para efetivação dos direitos sociais às crianças, adolescentes e jovens, destinatários de prioridade absoluta e proteção integral, conforme artigo 227 da Constituição Federal, Estatuto da Criança e Adolescente e Estatuto da Juventude, além da Convenção da ONU sobre Direitos da Criança, ratificada pelo Estado Brasileiro, devem ser exigidas dos governos federal, estadual e municipal. Esse tópico renderia um artigo específico sobre o cenário caótico em que nos encontramos como Estado e sociedade, diante de cortes orçamentários, desconstrução de políticas sociais, desarticulação de comissões com participação social e precarização do trabalho, que impactam na piora das condições de vidas da população, especialmente negra, nas periferias, sem acesso à educação, lazer, cultura, trabalho digno.

Não é mais possível conviver com esta realidade ou estaremos admitindo (e cedendo) a existência de um estado fascista, pautado na violência, racismo e extermínio da população pobre e negra, o que por certo não é o viés do Ministério Público que acreditamos e defendemos. Ou exigimos resposta e ações do Estado para cessar o genocídio ou seguiremos vivendo numa realidade virtual em que a defesa dos direitos e da democracia existe só para determinados grupos e pessoas.

O genocídio de crianças, adolescentes e jovens negros não admite silêncio.

Vidas negras importam!

Gustavo, Dennys, Marcos, Denys Henrique, Luara, Gabriel, Eduardo, Bruno, Mateus, presentes!

Elisiane Santos: Procuradora do Trabalho. Especialista em Direito do Trabalho pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA. Mestra em Filosofia pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Membra fundadora do Coletivo Transforma MP. Membra da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.


[1] O número de mortes de crianças e adolescentes decorrentes de intervenção policial superou os óbitos em todas as outras categorias classificadas como mortes violentas (homicídios, latrocínio, acidentes de trânsito, suicídio, feminicídio e lesão corporal seguida de morte).

[2]https://www.dw.com/pt-br/em-s%C3%A3o-paulo-crian%C3%A7as-e-adolescentes-na-mira-da-pol%C3%ADcia/a-49293278

[3]https://nacoesunidas.org/comite-paulista-pela-prevencao-de-homicidios-na-adolescencia-sera-lancado-em-sp/

[4] http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf

[5] https://www.mpma.mp.br/arquivos/CAOPCEAP/O_MP_no_Enfrentamento_%C3%A0_Morte_Decorrente_de_Interven%C3%A7%C3%A3o_Policial.pdf

[6] https://transformamp.com/wp-content/uploads/2019/08/Nota-Coletivo-debate-desmilitarizaA%CC%83%C2%A7A%CC%83%C2%A3o.pdf


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