O conto de natal do sistema de justiça criminal

Por Gustavo Roberto Costa, no GGN.

Fórum Criminal. 24 de dezembro. 09:00 horas da manhã. Preparação para o plantão judiciário do recesso do fim de ano.

– Doutor, hoje estamos cheios de presos – avisa um dos servidores escalados. A pauta tem três laudas lotadas de números e nomes. Quatro juízes dividem as audiências de custódia. Os presos (os de sempre: negros, miseráveis, maltrapilhos, viciados, desempregados) aguardam, sob escolta fortemente armada, a chance de se manifestar perante o magistrado, e torcem por seu destino para a noite de natal.

Algumas das narrativas não saem da cabeça. Voltam a todo o momento, principalmente à meia noite, quando a família está se abraçando e preparando-se para distribuir os presentes (muitos dos quais supercaros) para as crianças e deliciar-se na ceia farta; para celebrar o amor, a paz e a fraternidade; celebrar a vinda do salvador ao mundo: aquele que defendeu os bandidos, os pobres, os perseguidos, as prostitutas; aquele que lutou contra a acumulação de riquezas e contra os privilégios; aquele que foi condenado pelos “poderes constituídos”, sob forte aplauso de grande parte da sociedade da época (como seria bom se aprendêssemos com as escrituras).

– Mande entrar o primeiro – diz o juiz.

O rapaz entra. É um homossexual. Cabelos grandes e roupas características.

– Como foi sua prisão? – indaga o magistrado.

– Eu estava terminando de fazer um programa – relata o preso. – Preciso disso para pagar minhas dívidas. Só com o meu trabalho, como cabelereiro, manicure e pedicure, não consigo sobreviver. Assim que saí do carro do cliente, fui abordado por um senhor, que me acusou de ter subtraído produtos de um mercado. Pegaram uma mochila e disseram que estava comigo. Eu sequer vi essa mochila antes, não sei com quem estava. Não passei no mercado, pois estava no programa.

Após ouvir o Promotor de Justiça e o Defensor Público, oportunidade em que ambos requerem a liberdade provisória, o juiz acolhe o pedido, alertando o preso de que, como já era sua terceira passagem, deveria “entrar na linha”.

– Será a última, se Deus quiser – diz o rapaz. O juiz determina que se traga o próximo.

O processo é sobre tráfico de drogas. 3 quilos de maconha.

– Tráfico eu vou converter (o flagrante em prisão preventiva) – adverte o juiz. O preso já responde por tentativa de roubo simples. Ele entra na sala.

– Como foi sua prisão? – questiona o magistrado educadamente.

– Eu estava conduzindo minha bicicleta quando fui abordado por policiais da ROTA, que me revistaram e perguntaram se eu tinha “passagem” – justifica o preso. – Quando falei que tinha – prossegue – eles começaram a exigir que eu dissesse onde estavam “as drogas”. Eu disse que não sabia de droga nenhuma. Eles então disseram que eu estava preso por tráfico, e levaram-me para a Delegacia, onde mostraram uma sacola com drogas, dizendo que era minha.

O Promotor requer a conversão do flagrante em preventiva, não sem esquecer da notícia veiculada na imprensa, este ano, sobre policiais que foram surpreendidos com um “kit flagrante” no porta-malas de sua viatura. Neste momento, o preso cai nas lágrimas. Jura inocência. O Defensor requer a concessão da liberdade, destacando que a Constituição impede que alguém seja considerado culpado antes da condenação definitiva. O juiz determina que o preso seja levado e que seja trazido o próximo. A prisão já está decretada.

Já em outra sala de audiências, os atores do sistema de justiça conversam sobre o próximo caso. Um furto de fios de cobre supostamente abandonados no terreno de uma empresa. O investigado seria ex-empregado, e teria utilizado o uniforme da empresa para adentrar o local. Sua folha de antecedentes aponta diversas passagens (inclusive com condenações) pelo mesmo crime. Em razão disso, o juiz dá mostras de que irá decretar a prisão preventiva. Quando o preso entra, sequer com algemas ele está. Um de seus braços tem um ferimento gravíssimo, que impede sua mobilidade. O membro fica dobrado e colado ao peito do homem.

– Como foi sua prisão? – pergunta o juiz.

– Eu fui atropelado algum tempo atrás e, em razão do ferimento no meu braço, não consigo trabalho – explica. – Fui pegar os fios, que ninguém está usando, para vendê-los.

O Promotor, notando que o discurso do preso guarda coerência, e de que se trata de nítido estado de (extrema) necessidade, pugna pela liberdade provisória. O Defensor segue a mesma linha. O juiz, mostrando-se sensível à situação, determina a soltura. E novamente se aguarda o próximo, que logo é trazido. Outro furto em supermercado. O juiz o indaga como foi a prisão.

– Senhor, estou sem trabalho e sem dinheiro. – inicia o preso – Quis dar um natal decente à minha família. Entrei no mercado, peguei algumas asas de frango e duas bonecas [tem duas filhas], coloquei-as na mochila e saí. Os seguranças pararam-me e logo eu confessei o crime. Sei que nada justifica o que eu fiz, mas…

Promotor e Defensor manifestam-se pela liberdade, que é concedida.

O último preso do dia – outro furto a fios de cobre – também tem extensa folha de antecedentes. Condenações por crimes contra o patrimônio. Era procurado pela justiça. Ele entra na sala. Roupas sujas, rasgadas, cabelos mal cortados e barba mal feita. A pobreza, o abandono e a falta de perspectivas gritam a qualquer um que possa – e queira – escutar. O preso confessa o crime de tentativa de furto. Indagado pelo Promotor se foi agredido, ele diz que não: “só como sempre acontece doutor”. As partes se manifestam. Como era procurado, ficaria preso de qualquer forma.

– O senhor permanecerá preso. – avisa o juiz – Podem levá-lo.

Perto das 15:00 horas, os trabalhos estão encerrados. Hora de ir para casa preparar-se para a grande noite.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.


Foto: arquivo google.

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