Por Christiane Vieira Nogueira e Leomar Daroncho, no El País.
Depois de longo período autoritário, a Constituição de 1988 fundou e estruturou nosso modelo de Estado Democrático de Direito. Os princípios e as garantias dos valores e instituições democráticos são mencionados textualmente quase 20 vezes e a atenção com o tema chega ao ponto de considerar crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Já em seu início, nossa lei maior afirma que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes, ou diretamente. Para além da democracia representativa, com a eleição de governantes, estimula a participação direta da sociedade por meio de plebiscitos, referendos, leis de iniciativa popular, orçamento participativo e na escolha e implementação de políticas públicas, inclusive para legitimar as decisões governamentais.
O princípio democrático e a participação direta dão corpo ao propósito de envolvimento da população afetada nas decisões estruturantes em áreas como educação, Previdência, cultura, meio ambiente e saúde.
Nesse contexto, paulatinamente, vêm ganhando destaque os conselhos de políticas públicas, que também têm previsão constitucional. Com participação de órgãos do governo e da sociedade civil organizada, são espaços qualificados para a discussão e deliberações em que, além de exigir e fiscalizar a criação e a efetivação de políticas públicas, são traçadas diretrizes, em diversas matérias.
Como a democracia também é um aprendizado, no âmbito destes conselhos temas sensíveis e fundamentais como saúde, meio ambiente, trabalho escravo, inclusão de minorias, infância e juventude, entre outros, vêm sendo aprofundados e tratados com pluralismo e ponderação, num processo aberto e dialogado.
Agindo na contramão do modelo constitucional de democracia, o decreto presidencial 9.759/2019, “extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal”. A previsão é de que mais de 30 comissões sejam extintas. Explicitando a que veio, em seu artigo 2º, informa o que estaria contido no conceito de colegiado: “conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e qualquer outra denominação dada ao colegiado”.
Para os remanescentes (somente os previstos em lei que enumere suas competências e composição) e para os que vierem a ser constituídos, o decreto estabelece regras rígidas sobre a forma de criação, o número de membros, o período de funcionamento (1 ou 2 anos), chegando a fixar a duração das reuniões (máximo de 2 horas), com a possibilidade de acréscimo de mais 2 para votações.
O controle e a participação da sociedade sobre as políticas públicas criadas e executadas pelo governo federal sofrerão consequências cujo alcance ainda é difícil prever.
Já se anuncia que o decreto presidencial será questionado judicialmente. Uma vez que se encaminha contrariamente ao propósito constitucional, é possível que o decreto seja revogado. Mas, certamente, representa solavanco que prejudica nossas práticas democráticas e o nosso aprendizado na participação social. A reconstrução de colegiados cujo funcionamento vinha em processo de maturação e aperfeiçoamento demandará muito esforço.
Tomemos o exemplo do combate ao trabalho escravo. Após o caso “Zé Pereira” ter sido levado à Organização dos Estados Americanos, o Brasil assumiu internacionalmente o compromisso de estabelecer políticas públicas para combater essa terrível forma de exploração do ser humano no trabalho. Desde meados da década de 90, os sucessivos governos, de diferentes alinhamentos ideológicos, incrementaram a política pública que se tornou referência mundial.
Em 2003, criou-se a CONATRAE, Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, composta por Ministérios e entidades da sociedade civil de diferentes segmentos. Em 15 anos, além de importantes discussões, a estratégia de atuação evoluiu para o monitoramento de dois planos nacionais, promoção de campanhas de conscientização, notas públicas, afirmando posicionamento claro em relação a essa chaga social que envergonha o Brasil.
As reuniões, marcadas pelo debate propositivo e respeitoso, resultaram em compromissos conjuntos, ações legitimadas, congregando instituições com visões variadas como a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Decisões tomadas a partir de complexas discussões colegiadas, com a escuta efetiva de diferentes esferas da sociedade civil organizada são mais lentas, mais trabalhosas e difíceis. É a pior forma de decidir para os seduzidos pela verdade única, pela iluminação dos encastelados e pela supremacia das próprias convicções pessoais. A rejeição ao diálogo é um modo de externar a repulsa ao pluralismo e ao entendimento, que dão muito trabalho mas são inafastáveis da convivência democrática.
A advertência de Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”, segue sendo luz para recaídas autoritárias.
Christiane Vieira Nogueira e Leomar Daroncho são procuradores do Trabalho. Christiane é integrante do Transforma MP.
Foto: MST