Por Júlio Gonçalves Melo no GGN
Quem, todavia, não quer discutir o capitalismo, deve igualmente calar-se sobre o fascismo (Max Horkheimer)[1].
Sem dúvida, muito já se falou a respeito das crises que atingiram a democracia de diferentes países nas duas primeiras décadas do século XXI. A literatura em torno do assunto é relativamente extensa e abrange vários exemplos, como Hungria, Polônia, Venezuela e até mesmo os Estados Unidos da América (EUA). Neste texto, a pergunta que se levanta é se o raciocínio normalmente apresentado nessas análises também é capaz de dar conta da crise que se abateu sobre o Brasil nos últimos anos.
De certo ponto de vista, quando se olha para a maior parte desses estudos, percebe-se que muitos deles são escritos por professoras e professores de universidades norte-americanas, que comungam de uma ideia meramente liberal de democracia. Além disso, esses trabalhos costumam apontar semelhanças nas estratégias que líderes políticos com tendências autocráticas adotam para minarem o regime democrático de seus próprios países.
Em um livro bastante famoso, os professores da Universidade de Chicago Tom Ginsburg e Aziz Huq, por exemplo, elaboram um conceito de democracia “tão minimalista quanto possível”, que se constrói a partir de 3 elementos básicos: (i) eleições competitivas; (ii) liberdade de expressão e associação; e (iii) Estado de Direito. Para eles, sempre que esses elementos forem atacados, será possível dizer que a democracia de um determinado país está em declínio[2].
Paralelamente a essa noção liberal de democracia, é comum que esses trabalhos descrevam processos semelhantes de erosão, que costumam se repetir em diferentes países. Neste ponto, Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, professores da Universidade de Harvard, são bem claros quando dizem que se antigamente as democracias morriam por golpes de estado, com a quebra evidente da legalidade, hoje em dia “constituições e outras instituições nominalmente democráticas restam vigentes. As pessoas ainda votam. Autocratas eleitos mantém um verniz de democracia enquanto corroem a sua essência”[3]. Um pouco além, a professora da Universidade de Princeton, Kim Lane Scheppele, diz que, após eleitos, líderes autocráticos se utilizam das próprias leis e dos processos de reforma da constituição para, entre outras coisas, imporem limites à atuação dos órgãos de controle do Executivo e se manterem no poder indefinidamente[4].
Há muitos exemplos que poderiam ser mencionados. Na Hungria, após a vitória nas eleições de 2010, o partido de Viktor Orban chamado Fidesz iniciou uma série de ataques à Corte Constitucional do país: primeiramente por meio de reformas na Constituição que tiraram a competência do Tribunal para o julgamento de questões orçamentárias; em seguida, com a aprovação de um novo texto constitucional entre 2011 e 2012, que, além de reduzir a idade máxima de aposentadoria dos juízes de 70 para 62, aumentou o número de membros da Corte de 11 para 15[5]. Na Polônia, em 2015, o Partido da Lei e da Justiça (PiS), de forte inspiração católica, também conseguiu interferir de forma grave na independência do Tribunal Constitucional. Por um lado, deixou de nomear para a Corte juízes que haviam sido indicados pelo governo anterior, aprovando a indicação de 5 outros nomes, que o próprio PiS acabou apontando, e, por outro, aprovou uma lei por meio da qual se passou a exigir uma maioria qualificada de 2/3 para a tomada de determinadas decisões pelo Tribunal, dificultando o controle de constitucionalidade das medidas executadas pelo governo[6]. Na Venezuela, o presidente Hugo Chavez aproveitou o apoio popular que tinha, para convocar uma constituinte e, em 1999, aprovar uma nova Constituição no país. Por meio dela, tanto o Congresso quanto a Corte Constitucional foram fechados, para logo em seguida serem preenchidos por novos membros aliados ao governo chavista. Além disso, por meio de emendas ao texto constitucional, Chavez conseguiu aprovar o direito de concorrer a sucessivas reeleições sem nenhum limite, o que o autorizou a permanecer no poder até o ano de sua morte, em 2013[7].
O receituário prescrito por acadêmicas e acadêmicos estadunidenses parece de fato se confirmar: ao invés de golpes militares, líderes autocratas são eleitos pelo povo e se valem das próprias ferramentas legais e constitucionais para destruírem o regime democrático por dentro. Mas e o Brasil? Também se encaixa nesse diagnóstico?
Por um lado, sim. Parece não haver maiores dúvidas de que o governo de Jair Bolsonaro sempre foi uma ameaça à democracia do país. O presidente foi eleito fazendo homenagens a Brilhante Ustra[8] e Augusto Pinochet[9]; dizendo que o erro da ditadura civil-militar de 1964-85 foi torturar e não matar[10]; que o ex-presidente Fernando Henrique devia ser fuzilado[11]; que certas mulheres não mereciam ser estupradas por serem supostamente feias[12]; que quilombolas se pesavam em arrobas e não serviam sequer para procriar[13]. O presidente nunca escondeu suas convicções, e se você, leitor, votou nele, você sempre soube de todas elas. Consciente ou inconscientemente, você talvez aprovasse essas coisas e tentou se justificar dizendo que tudo isso não passava de piadas.
O fato é que, uma vez eleito, Bolsonaro se juntou aos seus colegas autoritários (Orban, Erdo?an e Hugo Chavez) e colocou o Brasil na lista de países com democracia em crise. Ao longo de seu mandato, o presidente instigou seus eleitores contra o Congresso e, principalmente, o Supremo Tribunal Federal; referiu-se a ministros do Tribunal como “canalhas”; ameaçou não cumprir decisões da Corte[14]; capturou diversos órgãos como o Ibama, a Funai, a Fundação Palmares e, sobretudo, a Procuradoria-Geral da República, mediante a nomeação de pessoas que desempenharam funções totalmente contrárias ao papel que lhes cabia por lei[15]. Além de tudo isso, diante das dificuldades encontradas no Congresso para aprovar suas pautas reacionárias, Bolsonaro inovou nas estratégias de autocratização, ao se ver obrigado a editar decretos infralegais que violavam a Constituição de 88, como o que extinguiu conselhos populares e o do tão falado sigilo de 100 anos[16]. Sem se esquecer, é obvio, de sua postura na pandemia da Covid-19, que para muitos especialistas chegou a ser criminosa.
Sob esse ponto de vista, com certeza, a derrota de Bolsonaro representa um alívio; o Brasil parece ter encontrado uma saída desse buraco de lama no qual se afundou. Mas e a eleição de Lula representa de fato o fim da crise no país?
Essa resposta só o tempo irá dizer. Como o professor da UFMG David Francisco Lopes Gomes ensina, a crise que atingiu o Brasil é muito mais profunda do que dizem os slogans da literatura ianque[17]. Na verdade, ela é uma crise do modelo de bem-estar social. E, por isso, além de não se iniciar com Bolsonaro, pode não ter um fim com a eleição de Lula, apesar de tudo o que a história do petista representa.
É inegável que, durante a primeira década dos anos 2000, o Brasil experimentou um sensível avanço com a redução das desigualdades econômicas e a inclusão social de parcelas mais vulneráveis da população. Ainda que muito mais pudesse ter sido feito, milhões de pessoas saíram da miséria. Todavia, como Joaquim Nabuco chegou a dizer, o Brasil é o país cuja escravidão negra deixou marcas muito profundas; é o país do elevador de serviço para pretos e pobres; onde as elites dizem sem medo que a universidade tem que ser para poucos[18] e que empregada doméstica não pode ir para a Disney, nos EUA[19].
Num país assim, em que a desigualdade e o racismo são problemas estruturais, não iria demorar para que houvesse uma violenta reação às poucas conquistas sociais obtidas na primeira década do século. Bolsonaro pode ser o auge dessa reação, mas não é o início dela. Já no governo de Michel Temer é possível perceber o quanto o país caminhava a passos largos para um modelo neoliberal, que, com base no argumento de fortalecer a economia, passou a deixar em segundo plano os direitos sociais e trabalhistas.
É nesse contexto que se aprova a emenda constitucional n. 95/2016, que instituiu um novo regime fiscal para o Brasil, impondo um limite aos gastos públicos em matéria de educação e saúde por 20 anos – uma medida que, segundo Richard Albert, teria provocado um desmembramento do texto constitucional brasileiro[20]. É nesse mesmo contexto também que se aprovam as leis 13.429 e 13.467, ambas de 2019, que flexibilizaram o caráter protecionista do direito do trabalho brasileiro, ao concederem ampla liberdade na locação de mão de obra aos empresários e ao determinarem o fim da contribuição sindical obrigatória. Nunca é demais lembrar ainda da reforma da previdência aprovada já no governo Bolsonaro, pela emenda constitucional n. 103/2019, que, para Emílio Meyer, representa um dos pontos recentes de aliança entre o autoritarismo e o neoliberalismo no Brasil.
Sob essa perspectiva, até mesmo o STF, que parecia ser um defensor da democracia, muda de lado, para se mostrar um aliado do governo e, em conjunto com ele, fazer avançar a agenda de erosão dos direitos sociais. Quando não foi o caso de um silêncio estratégico, disfarçado pelo julgamento de outras demandas que ocupavam a pauta do Tribunal, o que se viu foi o reconhecimento da validade daquelas medidas neoliberais.
Diante de todas as alianças feitas pelo presidente Lula para ganhar a eleição e derrubar de vez a ameaça que Bolsonaro representa para a democracia brasileira, fica a pergunta sobre se, ultrapassado esse perigo imediato, a crise mais profunda que atinge o coração do constitucionalismo social do país também será devidamente enfrentada. Sem desmerecer a literatura norte-americana, o fato é que os problemas brasileiros são muito mais graves do que aquilo que os best sellers de aeroporto conseguem descrever. A erosão democrática, por aqui, é apenas a parte mais visível de todo um processo de desmonte de direitos sociais – uma espécie de fungo que repousa na superfície de um corpo já bem degradado por dentro[21]. Como o filósofo alemão Max Horkheimer há muito tempo já disse, a crítica ao fascismo é sempre incompleta, se ela se esquece de dar atenção aos interesses econômicos que o autoritarismo pretende garantir. Apesar de cool, a análise de professoras e professores das universidades mais glamorosas dos EUA não esgota a totalidade da crise que se abateu ao menos no Brasil; e, por isso, ela deve passar por um filtro de adaptação mínima ao contexto do país. Quem, porém, não se dispuser a discutir os problemas do capitalismo brasileiro, não tem por que querer discutir a crise democrática nacional.
De um modo ou de outro, o que se espera é que o presidente Lula e sua equipe saibam o que realmente está em jogo no Brasil e que só não tenham se calado em relação ao fungo, porque perceberam antes o que já estava apodrecido por dentro.
[1] No original: Wer aber vom Kapitalismus nicht reden will, sollte auch vom Faschismus schweigen (tradução livre). HORKHEIMER, Max: Die Juden und Europa. In: Gesammelte Werke. Band 4, Frankfurt am Main 1988, S. 308.
[2] GINSBURG, Tom HUQ, Aziz. How to save a constitutional democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 2018, p. 43.
[3] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 11.
[4] SCHEPPELE, Kim Lane. Autocratic Legalism. University of Chicago Law Review, 2018, 85, p. 545-583.
[5] LANDAU, David. Abusive constitutionalism. University of California, Davis Law Review, v. 47, 2013, p. 189.
[6] GINSBURG, Tom HUQ, Aziz. How to save a constitutional democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 2018, p. 99.
[7] LANDAU, David. Abusive constitutionalism. University of California, Davis Law Review, v. 47, 2013, p. 206.
[8] Veja-se a notícia disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/08/bolsonaro-chama-coronel-ustra-de-heroi-nacional.ghtml.
[9] Confira-se a reportagem em: https://veja.abril.com.br/mundo/bolsonaro-exalta-ditadura-de-pinochet-no-chile-e-ataca-pai-de-bachelet/.
[10] Veja-se a notícia veiculada em: https://jovempan.com.br/programas/panico/defensor-da-ditadura-jair-bolsonaro-reforca-frase-polemica-o-erro-foi-torturar-e-nao-matar.html.
[11] Confira-se a reportagem disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/2017/10/10/bolsonaro-ja-defendeu-tortura-fuzilamento-de-fhc-veja-video-23506.html.
[12] Veja-se: https://lunatenorio.jusbrasil.com.br/noticias/156410097/nao-te-estupro-porque-voce-nao-merece-volta-a-dizer-bolsonaro-a-deputada.
[13] SARMENTO, Daniel; PONTES, João Gabriel Madeira. Democracia Militante e a candidatura de Bolsonaro: inelegibilidade a partir de interpretação teleológica do art. 17, da Constituição? Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/democracia-militante-e-a-candidatura-de-bolsonaro-24082018>
[14] Confira-se a notícia disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-chama-moraes-de-canalha-e-diz-que-nunca-sera-preso/.
[15] MEYER, Emílio Peluso Neder. Constitutional erosion in Brazil: Progresses and failures of a constitutional project. Oxford: Hart, 2021.
[16] Como se sabe, Bolsonaro tentou interferir na autonomia das Universidades Públicas, pela Medida Provisória (MP) 979/2020; afetou a demarcação de terras indígenas pelas MP’s 870 e 886/2019; editou decretos que extinguiam conselhos populares (9759/2019), que violavam o direito à educação de pessoas com deficiência (10.502/2020), que ameaçavam o meio-ambiente (10.224/2020; 10.239/2020; 10.223/2020), que ampliavam o acesso da população a armas de fogo, favorecendo inclusive pessoas acusadas pelo Ministério Público de envolvimento com milícias e que, é claro, impunham 100 anos de sigilo a atos e informações pessoais de integrantes do governo.
[17] GOMES, David Francisco Lopes. Emilio Meyer, constitucionalismo e autoritarismo: sobre Constitutional Erosion in Brazil. Cadernos da Escola do Legislativo, v. 24, p. 201-222, 2022.
[18] Veja-se: https://www.brasildefato.com.br/2021/08/17/artigo-universidade-para-poucos-o-ministro-da-educacao-e-o-preconceito-de-classe.
[19] Confira-se: https://www.poder360.com.br/economia/com-dolar-baixo-empregada-domestica-ia-para-a-disney-diz-guedes/.
[20] ALBERT, Richard. Constitutional Amendments: Making, Breaking, and Changing Constitutions. Oxford University Press, 2019.
[21] A metáfora é de David Francisco Lopes Gomes. Veja-se em: https://www.youtube.com/watch?v=JvWTo9iOPGY&t=7036s.