A Trincheira Civilizatória e a paciência histórica

Por Leomar Daroncho no Correio Braziliense

O Brasil padece de ânsias e carências extremas. Na agenda socioambiental, a lista de abandonos e urgências em questões vitais é enorme: fome e insegurança alimentar; emprego e trabalho digno; pequenos empreendedores; educação; saúde e descalabro sanitário; segurança pública e encarceramento; infância, mulheres, idosos e minorias; e clima.


A frente ampla e plural que venceu as eleições constituiu-se numa Trincheira Civilizatória, com vitória numericamente apertada. Porém, considerando as manipulações e as perversas estratégias utilizadas pelos derrotados, o desfecho sinaliza esperança. Porém, a pesada conta das demandas reprimidas, após uma gestão deliberadamente avessa à civilidade, chegará à mesa dos vencedores.


A história demonstra que, diferentemente do que é ensinado nas escolas, as mudanças que marcam a evolução da sociedade são construídas de forma lenta e custosa. Mesmo nas revoluções, os processos reais de construção não são marcados por arroubos mágicos e datados. Destruir é mais fácil.


Stefan Zweig, na biografia de Maria Antonieta, narra magnificamente os bastidores de Versalhes e os dramas de uma das monarcas mais polêmicas da história. Paralelamente, compreende-se que a Revolução Francesa não se definiu no 14 de julho (Tomada da Bastilha, em 1989). A Rainha só foi executada 4 anos depois. Além de descontínua e demorada, a Revolução teve fases e etapas, intermitências, avanços e recaídas.


O período mais turbulento e sangrento foi abordado por Victor Hugo na majestosa obra “O noventa e três”. O enredo descreve a guerra da Vendeia – confronto entre republicanos, movidos pelos ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade, e saudosistas da monarquia – com ricos detalhes e contradições do Tribunal Revolucionário.


Ao contrário de narrativas cinematográficas, que atribuem a um único dia a libertação da tirania e a universalização dos direitos e das liberdades, do Homem e do Cidadão, os franceses experimentaram reveses na caminhada: Monarquia Constitucional, Convenção Nacional, Diretório, Consulado e Império (Napoleão), Terror e guilhotina, golpes, revoltas e guerras externas.


Com avanços e recuos, a Segunda República deu lugar ao Segundo Império, de Napoleão III, que durou até 1870. Ou seja, somente 81 anos após à emblemática Tomada da Bastilha estabeleceu-se o regime republicano. Desde então a história continua sendo construída, entre sobressaltos e recaídas, e ainda há insatisfações e questões sociais pendentes de solução.
Num período mais recente, a França sediou o Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial, em 1919. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) surgiu do Tratado, com o objetivo promover a justiça social, condição reconhecida desde o preâmbulo da Constituição da OIT como necessária para viabilizar inclusive a prosperidade econômica, já que há consenso de que a miséria e as privações ameaçam a harmonia e a paz universais.


A história não é linear. As nossas conquistas sociais mais relevantes contaram com a ferrenha oposição de conservadores privilegiados, especialmente quando se buscou introduzir dignidade nas relações de trabalho, como na abolição da escravidão e no reconhecimento de direitos a trabalhadores, urbanos e rurais.


Aproveitadores e arautos do atraso mantêm-se à espreita. De forma oportunística, manipulam o desencanto com as dificuldades reais e as promessas democráticas não cumpridas. Eventualmente, espasmos reacionários triunfam sobre a noção de civilidade, como ocorreu no período recente, atrasando a marcha progressiva de afirmação dos direitos humanos, sociais e ambientais.


A preservação da esperança e o ânimo para a luta por tempos melhores são fundamentais para que se atinja o objetivo de retomar o caminho de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento e ao mesmo tempo erradique a pobreza, reduzindo as desigualdades. Essas são marcas da Constituição de 1988, que aponta o caminho e não comporta retrocessos.


Há justos motivos para a pressa. Há demandas civilizatórias que devem ser priorizadas dentre as urgências, como a fome. Deve haver sabedoria e paciência histórica com o ritmo do processo, numa sociedade cindida e deliberadamente mal-informada. A reflexão do poeta Edson Marques talvez indique o caminho para a retomada civilizatória: “Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade”.

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