O denominado projeto de lei “anticrime” contém a pretensão de “estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa”. A par de não prezar pela técnica legislativa, o projeto, em muitos pontos, subverte a ordem jurídica, uma vez que desenterra entendimentos jurídicos já julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como contrários à Constituição Federal (CF) em vigência (conforme já demonstrado no capítulo 2 desta série).
Concorde-se ou não com muitas das decisões emanadas da Suprema Corte, a ela incumbe, precipuamente, a guarda da Constituição (art. 102, caput, CF). Ora, se o órgão máximo do Poder Judiciário, no exercício de sua competência, decide que determinado dispositivo legal é inconstitucional, perde ele sua validade, é extirpado do ordenamento jurídico. É deletéria e contraproducente a aprovação de leis cujo conteúdo vá de encontro a entendimentos já pacificados pelo STF.
No caso do projeto abordado, pretende-se fazer uma verdadeira releitura da Constituição, notadamente no que se refere ao princípio da presunção de inocência. Pretende-se criar o cumprimento obrigatório da pena após decisão condenatória de segunda instância[1] e após decisão de primeira instância no Tribunal do Júri[2], além da vedação ex lege de liberdade provisória para “agentes reincidentes ou envolvidos na prática habitual, reiterada ou profissional de infrações penais ou que integre organização criminosa”, ou que “porte arma de fogo de uso restrito”[3].
As medidas propostas, entretanto, vulneram de morte o princípio da presunção de inocência. Trata-se, a garantia constitucional, de uma “projeção dos princípios do devido processo legal, da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, do contraditório, da ampla defesa, do favor libertatis, do in dubio pro reo e da nulla poena sine culpa”[4].
Ao reafirmar que o “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz”, a Assembleia Geral das Nações Unidas, ao proclamar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DIDH), reforçou a necessidade de que “Toda pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas” (art. 11.1).
Dada a importância do princípio, foi ele novamente repetido quando da elaboração do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. No art. 14 (2) consta que “Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. A garantia também é prevista no art. 8 (2), da Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual prevê: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
A garantia da presunção de inocência foi incluída na Constituição Federal em vigência, (art. 5º, LVII[5]). Após mais de 20 anos de ditadura civil-militar, em que a prisão foi utilizada para perseguir inimigos e dissidentes políticos, fez-se necessário deixar claro que somente nos casos expressamente indicados na lei e por decisão judicial suficientemente fundamentada (art. 5º, LXI[6]) poderia alguém ser privado de sua liberdade, notadamente antes de ter declarada sua culpa por sentença judicial transitada em julgado, garantindo-se, neste caso, o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV[7]). O art. 283, caput, do Código de Processo Penal (CPP) em vigor repete o comando constitucional [8].
Não se desconhece que o STF, recentemente, sinalizou uma possível mudança de direção, ao permitir o cumprimento da pena após julgamento condenatório de 2º instância (HC 126292, Rel. Min. Teori Zavascki). Entretanto, a pacificação do entendimento ainda depende do julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, nas quais se postula a declaração da Suprema Corte quanto à concordância do art. 283 do CPP com a CF.
Difícil imaginar como um dispositivo legal que contém a mesma redação do comando constitucional pode não ser reconhecido como válido pelo ordenamento jurídico. Nenhum argumento utilitarista ou moralista pode se sobrepor ao texto constitucional. Adotar uma interpretação que esvazie a intenção do legislador constituinte originário é abolir uma garantia fundamental, algo proibido até mesmo por meio de emenda constitucional (art. 60, § 4º, IV, CF).
Por seu turno, a vedação peremptória da concessão, pelo juiz, de liberdade provisória, sem a acurada análise dos pressupostos e requisitos da prisão preventiva, também já foi considerada inconstitucional, independentemente da natureza do crime imputado, pela corte máxima de justiça. É o que se pode ler do acórdão do HC 104339 (Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes)[9].
Portanto, o Coletivo por um Ministério Público Transformador reafirma seu compromisso com os postulados contidos na Constituição Federal do Brasil, de forma que qualquer alteração legislativa que pretenda impor o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória ou vedar a liberdade provisória será inconstitucional, por ofensa ao princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF).
Em consequência, espera-se que o STF cumpra sua missão constitucional, paute e julgue procedentes as ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, restabelecendo o valor jurídico desse princípio fundamental.
[1] I) Medidas para assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância:
Mudanças no Código de Processo Penal:
Art. 617-A. Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado ou exarada por órgão colegiado.
[2] II) Medidas para aumentar a efetividade do Tribunal do Júri:
Mudanças no Código de Processo Penal:
Art.492 (…)
I – (…)
- e) determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direito e pecuniárias, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;
[3] XVI) Medidas para dificultar a soltura de criminosos habituais: Mudança no Código de Processo Penal: “Art.310
(…)
- 2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que está envolvido na prática habitual, reiterada ou profissional de infrações penais ou que integra organização criminosa, ou que porta arma de fogo de uso restrito em circunstâncias que indique ser membro de grupo criminoso, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares, salvo se insignificantes ou de reduzido potencial ofensivo as condutas.” (NR)
[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 547.
[5] LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
[6] LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
[7] LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[8] Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
[9] Ementa: Habeas corpus. 2. Paciente preso em flagrante por infração ao art. 33, caput, c/c 40, III, da Lei 11.343/2006. 3. Liberdade provisória. Vedação expressa (Lei n. 11.343/2006, art. 44). 4. Constrição cautelar mantida somente com base na proibição legal. 5. Necessidade de análise dos requisitos do art. 312 do CPP. Fundamentação inidônea. 6. Ordem concedida, parcialmente, nos termos da liminar anteriormente deferida.
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