O projeto anticrime e suas inconstitucionalidades – Capítulo 2: os princípios da legalidade e da individualização da pena

O projeto de lei chamado “Projeto de Lei Anticrime”, que persiste na crença no punitivismo como solução simplista para problemas complexos, ignora anos de fracasso no aumento de penas, redução de benefícios, criação de novos tipos penais e outras alterações legislativas para a redução da criminalidade. Há um contínuo recrudescimento no tratamento penal pela legislação, o que tem se mostrado ineficiente para a melhora nos índices de segurança pública. O projeto citado é mais uma manifestação do que já vem dando errado há anos.

Conforme o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional, órgão integrante do Ministério da Justiça, a população prisional do Brasil, em junho de 2016, já era de 726.712 pessoas, para 368.049 vagas, o que significa um déficit de 358.663.1 O trabalho mostra que o número de pessoas privadas de liberdade no período superava em 707% o total registrado no início da década de 90, quando havia no Brasil cerca de 90 mil presos.2 Já a população total do país cresceu pouco mais de 40% no mesmo período3. Difícil concluir que não há um encarceramento em massa no país.

Ao mesmo tempo, a taxa de crimes graves como o homicídio doloso cresce anualmente. Somente em 2018, 62.517 pessoas foram vítimas desse tipo de delito. Uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes. Jovens de 15 a 29 anos representam 56,5% dessas vítimas e 71,5% são negros ou pardos. Enquanto a taxa de homicídios contra não negros diminuiu 6,8%, a vitimização da população negra cresceu 23,1% nos últimos dez anos4. Um tratamento penal mais severo, portanto, mostra-se incapaz de cumprir seu objetivo declarado de trazer segurança à população.

Na contramão de todas as evidências, o projeto supracitado, apresentado pelo Ministro da Justiça, sugere uma alteração legislativa no art. 33, parágrafo 5º, do Código Penal, para que, “No caso de condenado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional”, o regime inicial da pena seja o fechado, “salvo se insignificantes as infrações penais pretéritas ou de reduzido potencial ofensivo”. Propõe regime inicial fechado para os condenados pelos crimes de peculato, corrupção passiva e ativa (arts. 312, 317 e 333 do CP), “salvo se de pequeno valor a coisa apropriada ou a vantagem indevida ou se as circunstâncias previstas no art. 59 lhe forem todas favoráveis”. O regime inicial também seria o fechado no caso de condenação pelo crime de roubo majorado (art. 157, § 2º-A) e se da violência empregada resultar lesão corporal grave ao ofendido (art. 157, § 3º, I). Propõe o texto também a possibilidade de o juiz fixar “período mínimo de cumprimento de pena no regime inicial fechado ou semiaberto antes da possibilidade de progressão” (art. 59, parágrafo único).

É certo que determinados crimes, em razão de sua especial gravidade, merecem uma reposta mais enérgica por parte do Estado. Isso parece inquestionável. Entretanto, conforme variados precedentes, notadamente do Supremo Tribunal Federal, a definição, a priori, do regime inicial fechado para o cumprimento de pena privativa de liberdade é inconstitucional, pois vulnera o princípio da individualização da pena, previsto no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal.5

O princípio significa que, tanto na aplicação quanto na execução da pena criminal, o juiz deve decidir com base em critérios legais, mas levando em consideração também peculiaridades do caso concreto que envolvam o condenado, a fim de aplicar-lhe a reprimenda que seja mais adequada.

Foi isso que ficou decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC nº 111.840 (Pleno, Rel. Min. Dias Tofolli, J. 07/06/2012, DJe 17/12/2013), declarando-se a inconstitucionalidade do art. 2º, parágrafo 1º, da Lei nº 8.072/90, que impunha a obrigatoriedade da fixação do regime inicial fechado a praticantes de crimes hediondos ou assemelhados, quando ficou assentado:

Se a Constituição Federal menciona que a lei regulará a individualização da pena, é natural que ela exista. Do mesmo modo, os critérios para a fixação do regime prisional inicial devem-se harmonizar com as garantias constitucionais, sendo necessário exigir-se sempre a fundamentação do regime imposto, ainda que se trate de crime hediondo ou equiparado.

(…)

Tais circunstâncias não elidem a possibilidade de o magistrado, em eventual apreciação das condições subjetivas desfavoráveis, vir a estabelecer regime prisional mais severo, desde que o faça em razão de elementos concretos e individualizados, aptos a demonstrar a necessidade de maior rigor da medida privativa de liberdade do indivíduo, nos termos do § 3º do art. 33, c/c o art. 59, do Código Penal”.

Se para praticantes de crimes hediondos ou assemelhados (mais graves), exige-se “sempre a fundamentação do regime imposto”, não é possível que, para crimes comuns e unicamente por imposição legal, o regime inicial fechado seja o previsto.

Além do mais, o mesmo STF, quando do julgamento do HC nº 97.256 (Rel. Min. Ayres Brito, DJe 16/12/2010), reconheceu a inconstitucionalidade da proibição peremptória da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos a condenados por tráfico de drogas – o que pode ser aplicado a todos os demais crimes. Vale a transcrição de trecho do julgado:

1. O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executivo. Logo, a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo. Implicando essa ponderação em concreto a opção jurídico-positiva pela prevalência do razoável sobre o racional; ditada pelo permanente esforço do julgador para conciliar segurança jurídica e justiça material.

2. No momento sentencial da dosimetria da pena, o juiz sentenciante se movimenta com ineliminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação ou de restrição da liberdade do condenado e uma outra que já não tenha por objeto esse bem jurídico maior da liberdade física do sentenciado. Pelo que é vedado subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com certa discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória6.

Afora isso, “elementos que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional” e coisa apropriada ou vantagem indevida “de pequeno valor” são expressões vagas, demasiadamente abertas, que violam o princípio da taxatividade da lei penal. Sobre o princípio da legalidade, é obrigatório “que no preceito primário do tipo penal incriminador haja uma definição precisa da conduta proibida ou imposta, sendo vedada, portanto, com base em tal princípio, a criação de tipos que contenham conceitos vagos ou imprecisos. A lei deve ser, por isso, taxativa” 7.

Condicionar a fixação de regime mais brando para cumprimento de pena privativa de liberdade seria conferir ao juiz poderes que poderão avançar para o arbítrio, além de ser capaz de criar situações díspares, de acordo com os critérios pessoas de cada magistrado.

Por fim, o processo de individualização da pena deve ser levado a efeito pelo juiz, mas com critérios previamente fixados em lei. Não é permitido ao magistrado invadir o campo legal para agravar a situação do condenado. Por essa razão, afigura-se contrário ao princípio da legalidade8 a possibilidade de o juiz, ao proferir sentença condenatória, “fixar período mínimo de cumprimento de pena no regime inicial fechado ou semiaberto”, conforme é a proposta de inclusão do parágrafo único do art. 59 do Código Penal.

Para a melhor doutrina, “o princípio da legalidade é o mais importante instrumento constitucional de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito” porque, além de proibir a retroatividade da lei penal, a analogia ou costumes como métodos de criminalização, proíbe também “a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais” 9.

Portanto, a proposta prevista no item “V” do “Projeto de Lei Anticrime”, no que se refere às alterações do art. 33 e 59 do Código Penal, é inconstitucional, por ofensa aos princípios da legalidade e da individualização da pena (art. 5º, XXXIX e XLVI, da CF).

1 INFOPEN Atualização – Junho de 2016 / organização, Thandara Santos; colaboração, Marlene Inês da Rosa [et al.]. – Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf> Acesso em 7-3-18.

2 Ibidem. p. 7-9.

3 Segundo dados do IBGE, em 1991 a população brasileira era de 146.825.476 pessoas, ao passo que, em 2017, alcançava o número de 207,7 milhões. Fonte: IBGE. Disponível em: https://brasilemsintese.ibge.gov.br/populacao/populacao-total-1980-2010.html e http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/08/populacao-brasileira-passa-de-207-7-milhoes-em-2017.

5 XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

6 Do acórdão constou ainda: “3. As penas restritivas de direitos são, em essência, uma alternativa aos efeitos certamente traumáticos, estigmatizantes e onerosos do cárcere. Não é à toa que todas elas são comumente chamadas de penas alternativas, pois essa é mesmo a sua natureza: constituir-se num substitutivo ao encarceramento e suas sequelas. E o fato é que a pena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a função retributivo-ressocializadora ou restritivo-preventiva da sanção penal. As demais penas também são vocacionadas para esse geminado papel da retribuição-prevenção-ressocialização, e ninguém melhor do que o juiz natural da causa para saber, no caso concreto, qual o tipo alternativo de reprimenda é suficiente para castigar e, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado, prevenindo comportamentos do gênero.

4. No plano dos tratados e convenções internacionais, aprovados e promulgados pelo Estado brasileiro, é conferido tratamento diferenciado ao tráfico ilícito de entorpecentes que se caracterize pelo seu menor potencial ofensivo. Tratamento diferenciado, esse, para possibilitar alternativas ao encarceramento. É o caso da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, incorporada ao direito interno pelo Decreto 154, de 26 de junho de 1991. Norma supralegal de hierarquia intermediária, portanto, que autoriza cada Estado soberano a adotar norma comum interna que viabilize a aplicação da pena substitutiva (a restritiva de direitos) no aludido crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

5. Ordem parcialmente concedida tão-somente para remover o óbice da parte final do art. 44 da Lei 11.343/2006, assim como da expressão análoga “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos; determinando-se ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação em causa, na concreta situação do paciente.”

7 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. Volume I – 8. ed., p. 42-43.

8 Art. 5º, XXXIX: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

9 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6. ed. ICPC – Curitiba, 2014.

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