Por Júlio Gonçalves Melo, no GGN.
Com certeza, dizer que a democracia está em xeque, no Brasil e em outros países, já deixou de ser uma afirmação inédita há muito tempo. Quase ninguém duvida de que é preciso aperfeiçoar os procedimentos de tomadas de decisão, mesmo naqueles locais em que a democracia pareça funcionar de forma aparentemente adequada.
De uma ponta a outra do globo, a experiência tem demonstrado que, apesar de sua importância, o princípio majoritário e o direito de voto não devem esgotar as possibilidades de um regime democrático de governo. No Brasil, em especial no atual momento pelo qual ele passa, esses dois pontos assumem características ainda mais relevantes, já que, ao que tudo indica, uma boa parte da população está sendo privada de uma possibilidade de escolha, em razão da questionável prisão do ex-Presidente Lula e da exclusão de sua candidatura do próximo processo eleitoral.
Em contrapartida, em países como os Estados Unidos da América e a Itália, muito embora o princípio majoritário e o direito de voto não tenham sido flagrantemente violados, o problema que se coloca é o do respeito aos direitos fundamentais de minorias, como os imigrantes, negros, homossexuais e outros grupos tradicionalmente excluídos do debate público e, em consequência, das tomadas de decisão.
+Leia também: Não cabe ao Judiciário mudar as leis
É nesse contexto de ideias, em que o direito de voto e o predomínio da vontade da maioria não resumem um governo verdadeiramente democrático, que uma série de estudos tem debatido os limites da democracia representativa, apontando para outros caminhos que, por assim dizer, tenham condições de “democratizar a própria democracia”.
Muitos desses estudos têm feito uma aposta na atuação do Poder Judiciário, colocando-o no centro do constitucionalismo democrático, como uma espécie de “vanguarda iluminista”, à frente dos Poderes Executivo e Legislativo, que, apesar de terem seus representantes eleitos pelo povo, não têm respondido às principais demandas da sociedade à altura, em especial aquelas relacionadas aos direitos fundamentais e, em alguma medida, ao combate à corrupção.
Outros estudos, porém, procuram destacar, dentro do próprio campo político, alternativas mais eficazes de participação da sociedade civil nas tomadas de decisão pelo Estado. O foco não reside tanto nas instituições, mas no engajamento da própria população, particularmente de sua parcela menos favorecida, que, ao invés de simples destinatária, deve tornar-se coautora das decisões que afetam diretamente suas vidas.
+Leia também: A quebra de um princípio
É esse caminho, por exemplo, que Sherry Arnstein[1] parece trilhar. Em estudo elaborado no fim dos anos 60, intitulado A ladder of citizen participation[2], ela não só questiona os limites da democracia representativa, como também aponta alternativas para o funcionamento da participação dos cidadãos nas tomadas de decisões que provocam efeitos em suas comunidades.
Inicialmente, ela demonstra como o uso indevido de slogans, como “participação cidadã” (citizen participation) ou “máximo envolvimento possível dos pobres” (maximum feasible involvement of the poor), pode apenas conferir uma aparência de legitimidade a procedimentos de tomadas de decisão política. Segundo ela, esses procedimentos até podem contar com o envolvimento de setores da população, sem no entanto efetivamente considerarem, na implementação de programas de governo, as reais necessidades da comunidade destinatária das medidas a serem empregadas pelo Poder Público.
+Leia também: A grande jogada
No curso, por exemplo, de um programa de renovação urbana (Urban Renewall), do governo norte-americano na década de 1960, ficou em voga uma forma bastante ilusória de participação cidadã, nos chamados “Comitês Consultivos de Cidadania” (Citizen Advisory Comittees), instituídos para, ao menos em tese, viabilizarem a participação dos negros nos debates atinentes à urbanização. No entanto, a participação meramente formal deles, sem poderes reais de decisão, teve como um de seus resultados a implementação dos chamados “planos de remoção de negros” (Negro Removal Plans), de tal modo que aquilo que foi teoricamente pensado para proteger os direitos da população negra acabou se convertendo, no fim, em uma realidade que a prejudicava sensivelmente – e que, no limite, ainda que de forma manipulada, contava com a participação dos próprios negros em sua elaboração.
Uma ilustração bastante adequada dessa “manipulação” da participação de cidadãos em procedimentos de implantação de medidas do governo foi feita por um cartaz, produzido por estudantes da Escola de Belas Artes e Artes Decorativas da Universidade de Sorbonne, na primavera de 1968, em Paris[3]. De modo bastante didático, o cartaz dizia:
Eu participo,
Tu participas,
Ele participa,
Nós participamos,
Vós participeis,
ELES APROVEITAM!
Em outras palavras, o mero envolvimento de cidadãos nos processos de tomadas de decisão, sem uma efetiva parceria do Poder Público para com a comunidade e sem o controle dos resultados por ela, na melhor das hipóteses, apenas dá origem a procedimentos extremamente burocráticos, quando não a um verdadeiro estelionato, que, de um lado, mantém a parcela vulnerável da população em erro e, de outro, garante o aproveitamento dos resultados às classes que, ao fim, sempre se beneficiam com esse tipo de engodo.
+Leia também: STF: Entre o direito e o poder-dever de não errar por último contra a Constituição
É nesse sentido que Sherry Arnstein inicia seu estudo, dizendo que a participação cidadã deve ser entendida como um termo categórico de “poder cidadão” (citizen power); na verdade, ela deve ser compreendida como redistribuição de poder (redistribution of power), que capacita os cidadãos “sem-nada” (The have-not citizens), excluídos do processo político e econômico presente, a deliberadamente se incluírem no futuro.
Percebe-se que, muito embora ela não veja a sociedade necessariamente dividida entre capital e trabalho, ela reconhece a existência de uma divisão que coloca, de um lado, os “poderosos” (powerful), isto é, pessoas com poderes de decisão e, de outro, as pessoas desprovidas de poderes de decisão (powerless citizens), que ao longo do texto ela denomina de “sem-nada”. No contexto em que o estudo foi elaborado, os denominados “sem-nada” seriam, por exemplo, os negros, mexicanos, porto-riquenhos, índios, esquimós e brancos pobres.
Logo em seguida, ela estabelece 8 tipos diversos de participação cidadã (Types of Participation and “NonParticipation”), que vão se ascendendo em uma escada, conforme o nível e a qualidade do engajamento popular aumenta nos procedimentos de tomadas de decisão. Esses 8 tipos iniciam-se com formas manipuladas e distorcidas de envolvimento popular, que na verdade traduzem uma forma de não-participação nos processos de decisão, até chegarem a níveis mais avançados de engajamento, pelos quais os “sem-nada” realmente fazem valer sua condição de maioria e têm a capacidade de influenciarem nos resultados dos procedimentos de tomadas de decisão.
Os dois primeiros degraus da escada da participação cidadã são ocupados pelo que ela denomina de “manipulação” (manipulation) e “terapia” (therapy), que revelam formas sutis de cooptação de lideranças de movimentos populares, utilizados como meio para a obtenção de apoio às medidas a serem implementadas pelo Poder Público. Essas lideranças simplesmente são incorporadas pelo processo de tomada de decisões apenas para que sejam “adestradas” e manifestem, em nome da comunidade, sua concordância à realização de programas que na verdade reproduzem o estado de coisas.
Os dois próximos degraus são denominados por ela de “informação” (informing) e “consulta” (consultation) e já traduzem uma concessão limitada de poder à população, que tem a oportunidade de “ouvir” e “ser ouvida”, sem no entanto possuir a real capacidade de influenciar em qualquer tomada de decisão.
Logo em seguida, surge o 5º degrau da escada da participação, que ela descreve como “atenuação/aplacamento” (placation), isto é, um nível superior de concessão de poder que permite aos “sem-nada” aconselharem os poderosos, que, todavia, ainda detêm em suas mãos o direito de tomarem a decisão final. Na sequência, chega-se ao 6º degrau, que é definido como uma “parceria” (partnership) entre os “sem-nada” e os poderosos, que passam a negociar de forma mais equilibrada determinadas questões (engage in trade-offs with traditional powerholders), em busca de uma decisão conjunta.
Por fim, a escada da participação cidadã se encerra com seus dois últimos degraus, que são o “poder delegado” (Delegated Power) e o efetivo “controle” do processo de tomada de decisão e de seu produto pelos “sem-nada” (Citizen Control), que efetivamente tornam-se a maioria e passam a tomar suas próprias decisões.
No curso dessa evolução descrita por Sherry Arsntein, uma instituição que tem condições de capacitar a população, para fazê-la chegar ao patamar mais alto da participação cidadã é o Ministério Público. É óbvio que essa afirmação deve ser vista com muita cautela, mas se olharmos para o desenho institucional do Ministério Público, feito pela Constituição de 1988, verificaremos que, para além de seu tradicional papel na área criminal e demandista, muito ele tem a contribuir para o empoderamento popular.
O artigo 127, da Constituição Federal, o descreve como defensor do regime democrático, e o artigo 129 estabelece uma série de ferramentas que podem viabilizar a realização desse papel com êxito. Se prestarmos atenção nos métodos extrajudiciais de resolução de conflitos[4], poderemos perceber que essa instituição tem à sua disposição determinados instrumentos que podem auxiliar muito na tarefa de aperfeiçoamento da democracia.
Isso, porém, deve ser feito com muito cuidado. Em primeiro lugar, a instituição tem de se ver como um meio para o alcance dos objetivos constitucionais e jamais como um fim em si mesmo. Além disso, conforme foi mencionado no estudo de Sherry Arstein, ela deve ter uma visão muito clara das divisões que caracterizam a sociedade contemporânea e necessariamente colocar-se a favor dos “sem-nada”, numa espécie de opção preferencial pelos pobres.
Paralelamente, ela deve entender que o povo, e em especial sua parcela mais pobre, não pode ser privado do direito de fazer suas próprias escolhas. A comunidade na qual o membro do Ministério Público estiver inserido não deve ser vista como “relativamente incapaz”, como se sempre dependesse da tutela de um agente paternalista que, em seu lugar, toma suas decisões.
Um outro exemplo descrito no estudo de Sherry Arnstein parece elucidar bem essa questão. Em Denver, na década de 1960, agentes oficiais de um programa denominado “Cidades-Modelo” (Model Cities Program), sob sua própria perspectiva, concluíram que os moradores de um determinado bairro deveriam ser orientados acerca dos direitos básicos do consumidor (badly needed consumer education), por conta de um suposto abuso de preços praticados por comerciantes locais. Porém, ao contrário dessa conclusão dos agentes, os próprios moradores ressaltaram, nas diversas audiências públicas, que os comerciantes tinham um grande papel na comunidade, principalmente porque concediam créditos, ofereciam conselhos e frequentemente eram os únicos que faziam a troca de cheques da assistência social. Partindo dessa consulta, os agentes do governo substituíram seu programa anterior pela criação de uma instituição comunitária de crédito, que foi proposta pela própria comunidade.
É nesses termos, portanto, que o papel do Ministério Público, na defesa do regime democrático, deve ser realizado, ou seja, ele deve fortalecer os mecanismos de participação efetiva da população nos processos de tomadas de decisão, sem, no entanto, subtrair para si o direito que a própria população tem de fazer suas escolhas e eleger seus caminhos. O Ministério Público deve somente habilitar os cidadãos “sem-nada”, com o reconhecimento de que eles têm o direito de tomarem as próprias decisões, pelo uso da informação adequada, em consultas feitas para se obter uma real parceria entre o poder público e a comunidade, sem qualquer forma de manipulação, até que, ao fim, eles façam valer sua condição de maioria e não só influenciem os resultados dos processos de decisão como também os controlem com efetividade.
O Ministério Público, nessas condições, não é o protagonista da organização política da sociedade. Ele se reduz à condição de meio colocado à disposição dela, para que, sem heroísmos, a habilite a construir sua história. Ele é uma instituição cuja razão de ser está condicionada à realização desse objetivo, que é exatamente o de promover a dignidade do ser humano e de fazer dele, cada vez mais, senhor de seu próprio destino.
Júlio Gonçalves Melo é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Promotor de Justiça do Estado de Goiás.
[1] Sherry Phyllis Arnstein nasceu em Nova York (EUA), em 11 de janeiro de 1930 e faleceu em 19 de janeiro de 1997, em Washington-DC. Graduou-se pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), e tornou-se mestre em comunicação, em Washington-DC, pela American University. Foi assessora especial do governo federal norteamericano, no Departamento de Moradia, Educação e Assistência Social, ao longo dos anos 60.
[2] Sherry R. Arnstein (1969) A Ladder Of Citizen Participation, Journal of the American Institute of Planners, 35:4, 216-224, DOI: 10.1080/01944366908977225. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/01944366908977225
[3] Esse cartaz era apenas um de aproximadamente 350 outros cartazes produzidos entre maio e junho de 1968 no Atélier Populaire, um centro gráfico mantido por estudantes da Universidade de Sorbonne, que, na língua original literalmente dizia: je participe, tu participes, il participe, nous participons, vous participez, ils profitent!
[4] Entre as diversas formas de atuação extrajudicial do Ministério Público destacam-se as recomendações, os procedimentos administrativos, os termos de ajustamento de condutas e, em especial, as audiências públicas, que podem servir como um momento particularmente importante da participação cidadã nos processos de tomadas de decisão e implementação de programas de governo.