“Toffoli não agiu como ministro, mas como censor”, diz o ex-procurador de Justiça Roberto Tardelli

Por Mauro Donato, no DCM.

O imbróglio ocorrido na tarde de ontem após a decisão de soltura de todos os condenados após segunda instância e imediata cassação da liminar é mais um episódio de um Estado que tem aroma e sabor de Estado tutelar, segundo o advogado e ex-procurador de Justiça Roberto Tardelli. Ele conversou com o DCM.

É inevitável começarmos pela frase do ministro Marco Aurélio Mello, “Se o Supremo ainda for o Supremo, minha decisão tem que ser obedecida”. E agora, o Supremo não é mais o Supremo?

É uma frase de efeito para marcar a sua posição enquanto órgão julgador de uma corte colegiada, mas que tem autonomia para julgar da forma como entender correta. Ele julgou um processo do qual ele é relator. Ele não invadiu nenhuma competência, não invadiu nenhum cartório. Exerceu sua magistratura com absoluta altivez e convicção baseado num entendimento majoritário na doutrina. Não mais na jurisprudência, mas na doutrina como um todo nós vamos encontrar raríssimas exceções não respeitáveis no sentido da impossibilidade técnica da antecipação do cumprimento da pena. A decisão do ministro Marco Aurélio, e consequente cassação do Toffoli, coloca o STF numa situação extremamente constrangedora, porque Toffoli não agiu como ministro, agiu como censor. Censurou a decisão de um colega tão ministro e tão juiz quanto ele.

Por que o STF tem levado em banho-maria o julgamento definitivo sobre o cumprimento antecipado de penas, algo que se choca com o princípio da presunção de inocência ?

Esse fato (de antecipação de cumprimento da pena) era o mérito de duas ações diretas de constitucionalidade. Para o leitor entender melhor, no sistema de controle de consolidação das leis existe o chamado controle afirmativo. Nele o Supremo afirma que determinado dispositivo legal é compatível com a Constituição Federal. Mormente quando em torno desse dispositivo haja essa balbúrdia jurisprudencial pretoriana que estamos vendo, que é o caso de antecipação de cumprimento da pena. Essas duas ações que pedem ao Supremo para que se declare inconstitucional esse disposto do código penal estão prontas para julgamento há muito tempo. A ministra Carmen Lúcia não pautou e Toffoli resolveu jogar para Abril de 2019. Até lá iremos viver esses dilemas que criaram uma crise, uma situação embaraçosa jurídica e historicamente para o STF.

O ministro Mello falou sobre estarmos vivendo “tempos estranhos”. Que interpretação o senhor faz dessa observação? Há alguns meses o habeas corpus de Lula impetrado pelo desembargador Rogério Favreto não foi respeitado por instâncias inferiores. Nem a Polícia Federal obedeceu. Por “tempos estranhos” pode-se entender que a juíza que está com o caso de Lula, na hipótese do ministro Toffoli não ter derrubado a liminar, poderia desobedecer de novo?

Penso eu que quando ele se refere a tempos estranhos, fala no âmbito da justiça criminal. Os valores que aprendemos e repassamos não são mais valores. A presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, que eram garantias que já havíamos ultrapassado, voltamos a discuti-las. Estamos vivendo um retrocesso extremamente perigoso. O juiz Sergio Moro não poderia ter invadido a decisão do desembargador, mas fez.

A sensação é que ninguém mais se submete a nada, parece que vivemos uma disputa acirrada entre poderes. Isso causa na população uma insegurança enorme. O sistema de freios e contra-peso está funcionando a contento?

Esse é o risco do Estado de exceção, que não é um Estado sem regra, sem lei. Nele a lei existe, mas não é considerada por aqueles que deveriam considerá-la. Vira um jogo de força no qual o mais forte pode desincumbir-se de cumprir a lei. Estamos, por exemplo, esperando que um certo Queiroz deponha. E nada acontece. O fato imputado ao filho de Bolsonaro, se imputado ao filho de Lula, estaria nas TVs 24 horas por dia. A seletividade é a marca do regime de exceção.

Minutos depois do anúncio da medida de Marco Aurélio Mello, o Alto Comando do Exército se reuniu para discutir as possíveis consequências da soltura de Lula. Essas demonstrações de incômodo por parte dos militares estão frequentes. Elas influenciam o STF ou é paranoia da esquerda?

Tenho um amigo que diz que o fato de ser paranoico não significa que não possa estar sob perseguição. Estamos tendo que lidar com o novo, mas o novo, paradoxalmente, é o velho. É a intervenção de um poder tutelar, que paira sobre os outros poderes e que não foi instituído. É uma sombra intimidativa. Você citou o sistema de freios e contra-pesos. Num sistema tutelar isso não existe. As Forças Armadas saem do seu papel e ganham um protagonismo político perigoso, histórica e mundialmente já demonstrado. Os resultados são devastadores. Me aterroriza a lembrança dos carros com o adesivo ‘Ame-o ou deixe-o’ na ditadura. As pessoas apoiavam. 

Quais efeitos colaterais teremos no curto e médio prazo com esse cenário de descrédito de um Supremo Federal, do Judiciário? Logo após a decisão do ministro Mello vir à público, a ex-jornalista da Veja e atual deputada Joice Hasselmann divulgou no Twitter os telefones e e-mails do ministro e ele passou a receber ameaças de morte. Onde isso vai parar?

Isso tem nome, é terror. Um terror praticado por uma pessoa investida de mandato popular. E que o faz sem nenhum receio, se orgulha e é admirada por seus pares. Ontem tivemos cenas constrangedoras. O que esperar agora? Eu sinceramente não sei. Se o STF descumpre a lei, porque juízes de primeira instância iriam cumprir? Cada um vai decidir por si e não mais veremos defesas legais e sim defesas judiciais. É o pior dos mundos. Iremos perder definitivamente aquilo que caracteriza a justiça que é a isonomia. Lembro de Pedro Aleixo, conservador que teve a lucidez de dizer durante a ditadura que não era o general quem ele mais temia, e sim o guarda da esquina.

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