STF x DIREITO DO TRABALHO: A BATALHA DE DUNQUERQUE

Por Lorena Porto no GGN

Direito do Trabalho e democracia compartilham da mesma estrutura de valores: limitam o poder e permitem que os mais fracos dele participem

França, maio de 1940. O Exército alemão invade o país em uma velocidade impressionante. As divisões de blindados (Panzerdivision) avançam em um ritmo avassalador, impulsionadas pela ingestão massiva de metanfetamina pelos soldados, inaugurando a chamada Blitzkrieg (guerra-relâmpago). Após a conquista alemã de Abbeville, há apenas um porto aberto no Atlântico como última possibilidade de fuga: Dunquerque. Era questão de horas bloqueá-la e encurralar as tropas Aliadas. Todavia, Hitler emitiu o “comando de parada”, ordem até hoje discutida pelos especialistas em história militar.

Foi o tempo necessário para os britânicos organizarem uma evacuação sem precedentes: 10 mil embarcações de socorro atravessaram o Canal da Mancha, entre navios de guerra, barcaças, vapores, iates particulares e lanchas do Tâmisa, e resgataram cerca de 340 mil soldados, por meio de pontes improvisadas de caminhões cobertos por tábuas. Era a Operação Dínamo, na qual foram imprescindíveis as embarcações civis, como bem retratado no filme Dunkirk, de Christopher Nolan , tendo inspirado o discurso do então primeiro-ministro Winston Churchill no Parlamento do Reino Unido: “Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos . O fracasso dessa operação poderia ter ocasionado a derrota dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, com consequências desastrosas para a democracia e os direitos humanos na Europa.

Brasil, abril de 2025. O Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a repercussão geral no Tema 1389 sobre a competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade. O relator, ministro Gilmar Mendes, determina a suspensão nacional de todos os processos que tratam da fraude à relação de emprego por meio da contratação de trabalhador autônomo ou constituído como pessoa jurídica (“pejotização”). Há, assim, a possibilidade de legitimação da fraude e de retirada da competência da Justiça do Trabalho com efeito vinculante.

No julgamento de reclamações constitucionais, ministros do STF já vinham admitindo que basta contratar o trabalhador com uma roupagem diversa (sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego, não importando que os requisitos dela estejam presentes. Trata-se da destruição rápida e avassaladora do Direito do Trabalho no Brasil, em um ritmo de guerra-relâmpago (Blitzkrieg) conduzida pelo STF.

O Direito do Trabalho e a democracia compartilham da mesma estrutura de valores: limitam o poder e permitem que os mais fracos dele participem. Se essas funções essenciais são atingidas, há uma erosão da ideia democrática. A exemplo do discurso de Churchill, é necessário resistir e combater em todas as frentes possíveis. Para tanto, é imprescindível o engajamento da sociedade, dos trabalhadores e dos sindicatos. A Operação Dínamo não teria sido bem-sucedida sem as embarcações civis.

Assim como os Aliados se salvaram pelo oceano em Dunquerque, também podemos recorrer, no além-mar, aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de afirmar que o acesso à justiça requer uma jurisdição especializada com competência exclusiva em matéria trabalhista, consagra o princípio da primazia da realidade para o reconhecimento da relação de emprego, ao contrário do que vem decidindo o STF. Trata-se de princípio de vigência universal, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), devendo-se dar maior importância aos fatos do que à forma.

Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que a investiga e busca uma solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo.

Recentemente, a Comissão Interamericana manifestou preocupação com essas decisões do STF, que “não reconhecem a condição de empregados em situações que deveriam estar amparadas pelas normas internacionais e nacionais, o que leva à negação das respectivas proteções trabalhistas e sociais (…), o que também afeta a competência da Justiça do Trabalho .

A batalha que vivenciamos hoje é decisiva, como a de Dunquerque, e a derrota implicará o aniquilamento do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil, com consequências nefastas para a democracia e os direitos humanos.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

Lorena Vasconcelos Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

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