Respeita as mina, porra!

Por Thiago Cardin, no GGN.

Uma das poucas verdades ainda inabaláveis no Brasil pós ruptura democrática é que absolutamente nenhum direito previsto em nosso ordenamento jurídico nos foi dado – ao contrário, cada um deles foi conquistado com o derramamento de sangue (real ou metafórico) de muita gente.

E, embora o Brasil ainda seja um país absurdamente misógino (de acordo com a ONU, a taxa de feminicídios do país é a quinta maior no mundo), é inegável que a luta incansável de milhões de brasileiras, ao longo de mais de um século, já obteve inúmeras conquistas rumo à tão sonhada (e ainda distante) igualdade material prevista no icônico artigo 5º da Constituição Cidadã.

Ilustrando as vitórias galgadas por movimentos feministas nos últimos cem anos, lembramos que o Código Civil de 1916 sequer concedia à mulher a capacidade plena, precisando ela ser assistida nos atos da vida civil ou ter seus atos ratificados pelo pai ou, quando casada, pelo marido. Refém de um modelo de família patriarcal, hierarquizado e desigual, a mulher casada precisava da autorização do marido para viajar, receber herança, trabalhar fora de casa ou adquirir patrimônio, sendo que as decisões familiares ficavam todas a cargo do marido, o “chefe da sociedade conjugal” (artigo 233).

Com o advento do Código Eleitoral de 1932, contando com as pressões exercidas pelos movimentos feministas, as brasileiras conquistaram o direito ao voto – em 2016, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, a participação feminina já era de quase 53% do total de 146.470.880 de eleitores no Brasil[ii].

Nesse ponto, ressalta-se a importância de figuras como Bertha Lutz, uma das organizadoras do movimento sufragista no Brasil, fundadora da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) e defensora de bandeiras políticas que englobavam o direito feminino ao trabalho, o direito à licença maternidade e a equiparação de salários entre homens e mulheres.

Ainda em 1934, mesmo ano em que a nova Constituição passou a assegurar (ao menos no papel) o princípio da igualdade entre os sexos e a regulamentar o trabalho feminino e a equiparação salarial entre os gêneros, o movimento feminista possibilitou ao Brasil eleger sua primeira deputada, a médica Carlota Pereira Queiróz, que ocupou o cargo até o fechamento do Congresso por Getúlio Vargas em 1937.

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Também na década de 30, a escritora, poeta, tradutora, desenhista, jornalista e militante Pagu (Patrícia Rehder Galvão) se tornou a primeira mulher presa no Brasil por motivações políticas, ao participar da organização de uma greve de estivadores em Santos. Ante o caráter transgressor de sua militância, que abrangia a crítica ao papel conservador feminino na sociedade, Pagu seria presa em outras 22 oportunidades ao longo de sua vida.

Avançando alguns anos, já na década de 50, destacaram-se brasileiras como as advogadas Romy Martins Medeiros da Fonseca e Orminda Ribeiro Bastos, que, inconformadas com a situação da mulher casada frente ao Código Civil então vigente, formularam proposta de lei que alterava vários dispositivos do código e ampliava significativamente seus direitos. Após ser engavetado por mais de dez anos, e mais uma vez graças à atuação decisiva de movimentos feministas, em 1962 o projeto enfim foi aprovado pelo Congresso Nacional, sendo promulgada a Lei n.º 4.121/1962 (conhecida como Estatuto da Mulher Casada), conferindo à mulher, dentre outros, o direito de trabalhar fora de casa independentemente de autorização do marido.

As duas décadas seguintes ficaram marcadas pela revolução sexual, pelo movimento dos direitos civis e por inúmeras discussões envolvendo gênero e identidade, com especial destaque para a questão da mulher negra. No Brasil, lideraram a luta pela igualdade de gênero no período mulheres como Rose Marie Muraro, autora de livros como “Sexualidade da Mulher Brasileira” e proclamada, em 2005, Patrona do Feminismo Brasileiro.

Nos anos 80, sobreveio a promulgação da Constituição Cidadã, que, além de prever expressamente a igualdade de homens e mulheres em direitos e obrigações (artigo 5º, inciso I), inclusive dentro da sociedade conjugal (artigo 226, §5º), alçou ao nível constitucional outras importantes conquistas, como o direito à licença maternidade remunerada (artigo 7º, inciso XVIII).

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Dois anos depois, o Estatuto da Criança e do Adolescente consagrou definitivamente o princípio constitucional da igualdade, estabelecendo que “o poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe” (artigo 21), competindo a ambos o “dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores” (artigo 22).

Em novembro de 1995, o Estado brasileiro ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”), comprometendo-se com uma série de deveres para a consecução dos objetivos da convenção, dentre eles “incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher” (artigo 7º, “c”).

Em cumprimento à obrigação supra, em 2006 foi sancionada a Lei Maria da Penha, cujo nome homenageia a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após ser vítima de violência doméstica durante anos. Importante legado feminista, a Lei Maria da Penha trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro conceitos claros e abrangentes sobre as mais variadas formas de violência de gênero, além de possibilitar a adoção de efetivas políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres no país, não apenas no aspecto repressivo como também sob o prisma preventivo.

Finalmente, em 2015 foi sancionada a Lei n.º 13.104, qualificando o homicídio contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (feminicídio) e incluindo o delito no rol de crimes hediondos.

Todavia, não obstante os últimos avanços legislativos no combate à violência de gênero (segundo pesquisa de 2015 do IPEA, a Lei Maria da Penha fez diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídio contra as mulheres dentro das residências[iii]), são inúmeras as dificuldades práticas vivenciadas por mulheres que buscam a proteção legal.

Os motivos são os mais variados possíveis, abrangendo desde a insuficiência de Delegacias de Defesa da Mulher até a falta de mecanismos que garantam efetividade às medidas protetivas de urgência concedidas às vítimas de violência doméstica. O principal problema, contudo, continua sendo a visão patriarcal e machista de grande parte dos atores do sistema de justiça responsáveis pela aplicação da lei – chegando um Juiz de Direito a lançar um livro defendendo “A discriminação do gênero-homem no Brasil em face à Lei Maria da Penha” (SIC)[iv].

Conforme Nota Pública lançada, em 2016, pela ONU Mulheres, pelos 10 anos da Lei Maria da Penha[v]:

“(…) Passados dez anos, são notórios os desafios para a aplicação da Lei Maria da Penha: ampliar a dotação de recursos financeiros e humanos em serviços especializados para atendimento com perspectiva de gênero, raça e etnia e que incorporem outras vivências das mulheres; promover ações preventivas nas escolas por meio do ensino da igualdade de gênero; aprimorar a produção de informação nacional e garantir a expansão de serviços especializados em municípios no interior do país; criar e implementar os serviços de responsabilização para homens autores de violência conforme previsto na legislação; sensibilizar os meios de comunicação para difundirem o direito das mulheres a uma vida sem violência. A qualificação de gestores e gestoras para a implementação de redes de serviços especializados para o atendimento às mulheres com perspectiva de gênero, o acolhimento de saúde e a resposta da justiça são demandas a serem absorvidas com seriedade. Enfrentar a violência machista com o pleno atendimento de mulheres negras, jovens, rurais e com necessidades especiais, por exemplo, mostra os rumos que a Lei Maria da Penha tem de seguir, de maneira implacável, nos próximos anos.

(…)

Somente a atuação incansável, integrada e vinculada aos direitos das mulheres será capaz de implementar a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, com o objetivo de eliminar a violência machista e reverter o 5º lugar que o Brasil ocupa num ranking de 83 países em assassinatos de mulheres. Um ranking que expressa a quantidade de vidas desperdiçadas pelo machismo”.

Feita essa breve retrospectiva, reafirmamos que cada um dos avanços históricos acima descritos foi fruto de lutas travadas (e protagonizadas) por incontáveis brasileiras.

Dandara, Nísia Floresta, Anita Garibaldi, Chiquinha Gonzaga, Maria Amélia de Queiroz, Leolinda Daltro, Anita Malfatti, Maria Lacerda de Moura, Leila Diniz, Elis Regina, Therezinha Zerbini: o espaço é pouco para listar sequer os nomes mais conhecidos de batalhas que envolveram milhares de mulheres e que tanto já conquistaram em um país cujas filhas sempre foram tratadas como cidadãs de segunda classe.

E a luta, evidentemente continua: Nana Queiroz, Djamila Ribeiro, Clarice Falcão, Jules de Faria, Taís Araújo, Giovanna Dealtry, Karol Conka, Lola Aronovich, Letícia Sabatella, Jout Jout e a musa das musas (e mulher do fim do mundo) Elza Soares, dentre tantas outras, cada uma defendendo, a seu modo, bandeiras variadas como erradicação da violência doméstica, maior representatividade política, direito ao parto natural, amamentação em lugares públicos, direito ao aborto, fim da cultura do estupro e igualdade salarial.

“Marcha das Vadias”, “Meu corpo, minhas regras”, “#PrimeiroAssédio”: cada novo movimento protagonizado por mulheres é um bem vindo soco no estômago convidando à reflexão e à revisão de atitudes machistas que TODOS os homens ainda revelam (por mais progressistas que alguns se considerem, somos no máximo machistas em desconstrução). Além, é óbvio, de um passo a mais na busca por uma sociedade na qual o gênero na certidão de nascimento não seja determinante para definir quantos reais a menos se ganhará em relação a pessoas do sexo oposto que desempenham a mesma função laboral[vi].

Infelizmente, como em todo período de exceção democrática, as protagonistas dessa luta têm de se preocupar não apenas em angariar novas vitórias rumo à igualdade de gênero, mas também em evitar retrocessos quanto a conquistas que já julgavam consolidadas. É hora também de gritarem “Nem Uma a Menos”, impedindo que homens que odeiam as mulheres[vii] rasguem direitos conquistados há várias gerações.

Como exemplo, citamos o “jabuti” incluído por 18 deputados (todos homens) na Proposta de Emenda Constitucional n.º 181, objetivando que o aborto passe a ser considerado crime também em casos de gravidez resultante de estupro, de risco de morte da gestante ou de gestação de feto anencéfalo – não contentes com o imenso sofrimento das gestantes que vivenciam essas situações, tais homens querem retirar seu direito de escolha em manter ou não a gravidez, em alguns casos à custa de sua própria vida.

Quanto aos homens que não odeiam as mulheres, desejamos que conceitos como empoderamento e sororidade cortem feito faca a carne de cada machista desse país; que a poesia negra, nua e crua de uma Mel Duarte dilacere cada rasgo de misoginia existente em nosso tecido social; que a voz potente de uma Ana Cañas se impregne com furor na mente de todos os homens: respeita as mina, porra!

Thiago Rodrigues Cardin é Promotor de Justiça em São Paulo e membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP).


“ONU: Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo; diretrizes nacionais buscam solução”, disponível em https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/

[ii] “Mulheres representam 53% do total de eleitores do Brasil”, disponível em http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/07/mulheres-representam-53-do-total-de-eleitores-do-brasil

[iii] “Pesquisa avalia a efetividade da Lei Maria da Penha”, disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=24610

[iv] “Brasil, 2017: Juiz lança livro atacando a Lei Maria da Penha no Palácio da Justiça de PE”, disponível em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/brasil-2017-juiz-lanca-livro-atacando-a-lei-maria-da-penha-no-palacio-da-justica-de-pe-por-nathali-macedo/

[v] http://www.onumulheres.org.br/noticias/nota-publica-pelos-10-anos-da-lei-maria-da-penha-em-defesa-da-lei-e-da-institucionalizacao-das-politicas-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres/

[vi] “Diferença de salário médio de homens e mulheres pode chegar a quase R$ 1 mil no país, aponta IBGE”, disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/diferenca-de-salario-medio-de-homens-e-mulheres-pode-chegar-a-quase-r-1-mil-no-pais-aponta-ibge.ghtml

[vii] “Os 18 Vendilhões” (Eliane Brum), coluna publicada no periódico “El País” em 20/11/2017, disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/20/opinion/1511192636_952720.html