‘Reformas processuais não reformam mentalidade inquisitória’

Artigo da Promotora de Justiça, Érika Puppim*, na Carta Capital

Sempre que se institui alguma garantia ao acusado, esse direito é enxergado como um mero ’empecilho’ à condenação, fim único do processo

Como Promotora de Justiça há quase 10 anos, venho acompanhando as reformas que aconteceram no âmbito processual penal na última década e me impressiona como cada alteração legislativa que venha trazer algum direito ao acusado seja vista pela opinião pública, sobretudo pela comunidade jurídica, como uma terrível ameaça à “ordem pública”, que levará inexoravelmente ao aumento do índice de criminalidade – o que nunca se comprovou na prática.

Sempre que se institui alguma garantia ao acusado, esse direito é enxergado como um mero ’empecilho’ à condenação, fim único do processo

Como Promotora de Justiça há quase 10 anos, venho acompanhando as reformas que aconteceram no âmbito processual penal na última década e me impressiona como cada alteração legislativa que venha trazer algum direito ao acusado seja vista pela opinião pública, sobretudo pela comunidade jurídica, como uma terrível ameaça à “ordem pública”, que levará inexoravelmente ao aumento do índice de criminalidade – o que nunca se comprovou na prática.

Lembro-me da “indignação” com a Lei nº 12.403 de 2011, que passou a exigir pena mínima de 4 (quatro) anos para decretação da prisão preventiva e instituiu medidas cautelares diversas da prisão. Muitos bradavam: “Agora os furtadores estão livres para furtar à vontade!” O resultado da reforma que pretendia reduzir a população prisional, especialmente de presos provisórios, foi exatamente o oposto, eis que em 2010 tínhamos em 496,3 mil presos, no ano seguinte aumentou para 514,6 mil.

Outra mudança processual foi a exigência pelo CNJ de realização das audiências de custódia nos Tribunais de Justiça, iniciando em alguns estados em 2015. Recordo-me da “revolta” com a mera implementação de um direito que já estava previsto na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como “Pacto de San Jose da Costa Rica”, desde 1969.

Apesar da flagrante situação de violação de direitos humanos que o Brasil se encontrava desde a ratificação do Tratado em 1992, muitos Agentes do Sistema de Justiça insistiam em protestar que as audiências de custódia eram “um absurdo!”, ora alardeavam que “muitos bandidos seriam soltos” e aumentariam os índices de crimes, ora usavam argumentos econômicos de que “iria aumentar o gasto público com deslocamento de presos” (mas ninguém ousava criticar o custo de cada preso para o país, mesmo diante do super encarceramento e do quadro calamitoso do Sistema Carcerário, já reconhecido como inconstitucional pelo STF).

A audiência de custódia além de ser um importante mecanismo para prevenir a tortura policial, teria por objetivo reduzir o número de presos provisórios no Brasil, que tem se mantido na média de 40% do número total da população prisional.

No entanto, esta tem se mostrado uma medida isolada que resta insuficiente para reverter este quadro estrutural no país. Afinal, uma mera reforma processual não é capaz de operar uma mudança na mentalidade dos aplicadores do Direito, visto que as decisões nas audiências continuam, em sua larga maioria, convertendo as prisões em flagrante em prisões preventivas, logo, a prisão provisória decorrente do flagrante continua sendo a regra.

Apesar do alarmismo em torno da audiência de custódia, em 2014, o Brasil tinha a quarta maior população de presos provisórios do mundo, com 222.190 pessoas encarceradas antes da sentença e no último relatório INFOPEN de junho de 2019, este número havia aumentado para 252.963.

Desta feita, apesar de todas as reformas legislativas que vem sendo aos poucos implementadas, no sentido de garantir mais direitos ao acusado e reduzir o super encarceramento que existe no Brasil, pouco efeito surte em sua aplicação prática, eis que a população carcerária quase dobrou em dez anos, passando de 401,2 mil em 2006 para 722,7 mil em 2016, conforme relatórios do INFOPEN, chegando hoje a mais de 800 mil presos, conforme dados do CNJ.

É preciso lembrar que nosso Código de Processo Penal é datado de 1941 (que por sinal, trata-se de um “decreto-lei”) e representa os ideais políticos vigentes do Estado Novo, com viés declaradamente autoritário. A sua base foi o “Codice Rocco” de Processo Penal (1930), da Itália fascista de Mussolini, do qual Alfredo Rocco era Ministro da Justiça e instituiu a normativa processual penal de natureza tipicamente inquisitória.[1]

Na história brasileira mais recente, o referido Código de Processo Penal também fora empregado durante outro período de exceção antidemocrático, qual seja, a ditadura militar de 1964 a 1985.

Com a reabertura democrática e especialmente, com a promulgação da Constituição Cidadã em 1988, com sua matriz social e garantista, os dispositivos inquisitoriais do Código de Processo Penal precisavam ser reinterpretados à luz da Carta Magna para se adaptar ao Sistema Acusatório nela instituído – o que não se mostrou ser uma tarefa bem aceita pelos operadores do Direito.

Assim, enquanto a prática e aplicação do Direito Processual Penal brasileiro nas Varas Criminais mantinha o status quo de inspiração inquisitorial, pouco a pouco, as reformas legislativas tentavam adaptar o regramento processual à Constituição e ao seu novel Sistema Acusatório, sempre com grande resistência dos atores jurídicos.

A vez do “Pacote Anticrime”

Com Lei 13.964/2019, chamada “Lei do Pacote anticrime”, apesar de ser um diploma que veio trazer recrudescimento penal, com significativo aumento de penas, nos poucos pontos em que trouxe algum tratamento menos gravoso ao investigado, especialmente em relação à figura do “Juiz de Garantias”, a indignação dos aplicadores da lei não foi diferente.

Seus dispositivos recrudescedores foram amplamente aceitos, com aplicação imediata, mas a instituição do “Juiz de Garantias” foi suspensa sine dia pelo STF, numa nítida interferência do Poder Judiciário sobre uma lei produzida sem qualquer vício de conteúdo ou de forma pelo Legislativo, ao contrário, tornava nosso sistema mais compatível com a Constituição, da qual o Supremo deveria ser seu guardião.

O que se conclui das reações das classes jurídicas a tais mudanças processuais é que sempre que se institui alguma garantia ao acusado, esse direito é enxergado como um mero “empecilho” para atingir aquilo que se entende ser o fim primordial do processo penal: a condenação – o que revela a manutenção da ideologia inquisitória, apesar da Constituição ter “teoricamente” instituído o Sistema Acusatório desde 1988.

Ao que parece, os princípios e garantias constitucionais, assim como as bases dogmáticas do Sistema Acusatório delineadas na Carta Magna, estudado anos a fio durante a faculdade e nos estudos preparatórios para concurso, após a aprovação no certame são substituídos pela prática inquisitorial usual do dia-dia de Vara Criminal, na qual se confunde os papéis do Ministério Público e do Judiciário como órgãos de segurança pública, permeados por uma “ideologia de combate à criminalidade”, na qual de um lado está a “sociedade de bem” e do outro, o inimigo a ser combatido.

É o que fica evidente na pesquisa denominada “O mito do processo penal como instrumento de pacificação social”, do juiz Rubens Casara, no ano de 2011,[2] na qual foram realizadas entrevistas com juízes criminais da Capital do Rio de Janeiro, revelando que mais de 80% desses acreditavam atuar como órgão de segurança pública  e, portanto, em função parcial típica do Estado-Policial, ou seja, atividade inquisitorial. Não há razões para acreditar que no restante do Brasil o resultado seria muito diferente.

O sinal mais claro dessa mentalidade inquisitorial, na qual parte-se da premissa que a finalidade do processo penal é “combater o inimigo”, é a instituição das chamadas “Varas de Combate”.

Parecem olvidar que a função jurisdicional, dentro do Sistema Acusatório, deveria ser apenas a de julgar de forma imparcial acusações que são postas pelo órgão acusador, conforme as provas produzidas sob o crivo do contraditório e ampla defesa, de acordo com as leis e a Constituição.

Verifica-se que, apesar do Poder Judiciário estar muito bem definido na Carta Magna dos artigos 92 a 126, e o Ministério Público estar instituído no art. 127 como “função essencial à Justiça”, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, muitos confundem suas funções com “Segurança Pública”, atividade que pertence às Polícias, conforme previsão expressa do art. 144 da Constituição Federal, situado topograficamente em outro Título.

Nesse ideário de atuação jurisdicional como órgão de segurança pública e de “combate à criminalidade”, dominante no meio judicial e ministerial, as garantias constitucionais e os direitos humanos passam a ser vistos como inimigos da sociedade, o que nos leva a concluir que o sistema inquisitorial nunca deixou de vigorar no Brasil.

Assim, não há reforma processual que possa superar uma ideologia inquisitória de “combate ao inimigo” e “anti-direitos humanos”, a qual enxerga o Judiciário e Ministério Público como órgãos de segurança pública, que ainda se encontra enraizada no Sistema de Justiça Brasileiro, desde o Estado Novo, passando pela ditadura militar e mesmo após 30 anos da promulgação da Constituição Federal, ainda não absorveu os princípios da imparcialidade, da separação entre acusação e julgamento e da presunção de inocência, basilares do Sistema Acusatório.

Para além de um Código de Processo Penal completamente novo, se quisermos de fato efetivar o Estado Democrático e Social de Direito, tal como preconizado na Carta Cidadã de 1988, antes que cheguemos à marca do 1 milhão de encarcerados no Brasil, sem que tenha qualquer correlação com redução da criminalidade, é preciso superar – antes de tudo, o paradigma da mentalidade inquisitória dos Agentes do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro.

Acesse o conteúdo original em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/reformas-processuais-nao-reformam-mentalidade-inquisitoria/

*Érika Puppim é Promotora de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro, pós-graduada em Direitos Humanos pela PUC-IEP MPRJ e integrante do Coletivo Transforma MP

 

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