A Constituição de 1988 está em processo de desconstrução, que atinge uma de suas partes mais importantes. Falemos de duas datas. No último dia 31 de março de 2017, foi sancionada a Lei nº 13.429, que permitiu um amplo e desmesurado aumento das hipóteses de terceirização no Brasil. Ali se operou uma transformação estrutural do texto que vigora no Brasil há mais de 28 anos. No dia 26 de abril do mesmo ano, foi aprovado na Câmara dos Deputados o texto base do PL 6.787/2016, a chamada “reforma trabalhista”, que modifica vários artigos da CLT e reitera a amplitude da terceirização prevista na Lei nº 13.429.
A Constituição de 1988 está em processo de desconstrução, que atinge uma de suas partes mais importantes. Falemos de duas datas. No último dia 31 de março de 2017, foi sancionada a Lei nº 13.429, que permitiu um amplo e desmesurado aumento das hipóteses de terceirização no Brasil. Ali se operou uma transformação estrutural do texto que vigora no Brasil há mais de 28 anos. No dia 26 de abril do mesmo ano, foi aprovado na Câmara dos Deputados o texto base do PL 6.787/2016, a chamada “reforma trabalhista”, que modifica vários artigos da CLT e reitera a amplitude da terceirização prevista na Lei nº 13.429.
Há vários problemas procedimentais na tramitação dessas matérias na Câmara dos Deputados. No que diz respeito ao PL 6.787, que tem grande extensão e afeta o mundo do trabalho das mais variadas formas, foi aprovado um regime de urgência que prejudicou uma discussão que seria necessária no Plenário. Além disso, as audiências na Comissão Especial foram de pouca utilidade, na medida em que os defensores do projeto já tinham uma ideia muito clara quanto à rejeição de todo e qualquer discurso crítico em relação à Reforma. Também houve problemas sérios na Lei nº 13.429, como a forma antidemocrática de sua aprovação pela Câmara dos Deputados, que se deu por meio de um subterfúgio discutível, com a “reabilitação” de um projeto de lei que havia sido votado no Senado em 1998, a ausência de debates sérios acerca do alcance da medida e, por fim, a parcialidade do projeto original, que se concentra apenas na redução de custos e na liberdade de contratar sem nenhum tipo de preocupação com a situação jurídica do trabalhador terceirizado.
Mas há mais. O principal problema está no impacto que essas medidas trazem para os trabalhadores em geral. Por questões de espaço, vamos enfocar o tema da terceirização, que está presente na Lei nº 13.429 e no PL 6.787.
Estamos presenciando a transformação em regra daquilo que sempre deveria ser a exceção, ou seja, a terceirização se converteu numa simples questão de escolha: nos termos da lei e da reforma, tudo se resume a um juízo unilateral de preferência do empregador. É ele quem decidirá a forma de vinculação do trabalhador à empresa, se por meio de contratação direta ou por intermediação de um terceiro, que fornecerá a mão de obra requerida.
Fica claro, assim, que o grau de proteção do trabalhador não mais está assegurado por uma norma geral e abstrata. A contratação direta, com registro na carteira profissional pelo tomador de serviços, não é mais a regra no direito brasileiro. É por essa razão que a Lei nº 13.429 e o PL 6.787 impõem uma mudança profunda. Desde 1943, quando foi editada a CLT, e em todas as constituições que se seguiram (1946, 1967, 1988), o sistema de regulação do trabalho humano no Brasil se construiu a partir da ideia de que os atores da relação de trabalho são o empregado e o empregador. Obviamente há exceções, que devem ser tratadas de modo restrito, situações particulares que escapam à regra geral.
A mudança é ainda mais impactante se analisarmos os documentos e estudos sobre a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Eles nos mostram que o mundo do trabalho foi uma das preocupações centrais da Constituinte. Os atores sociais empenhados na luta pela redemocratização, incluindo sindicatos profissionais e movimentos sociais, viam o momento de elaboração da nova Constituição como decisivo para a consolidação de direitos sociais (individuais e coletivos). E, como é natural, houve resistência de setores expressivos do empresariado. Mas o texto final da Carta nos revela algo: a luta por direitos sociais ligados ao trabalho não pode ser explicada apenas como uma disputa entre a classe trabalhadora e o mundo empresarial. Naquela década de 1980, havia uma reivindicação majoritária na sociedade brasileira de que o trabalho humano fosse valorizado, prestigiado e, principalmente, protegido.
Ao inverter essa tendência histórica de proteção do trabalho humano – que, repita-se, foi uma opção consciente do legislador constituinte –, a Lei nº 13.429 afronta a Constituição de 1988 em seu núcleo, que é o da proteção da continuidade da relação de trabalho (art. 7º, I), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). O PL 6.787 segue na mesma direção.
A Constituição é de todos. Ela pertence à comunidade política que foi por ela constituída. Ainda que o STF seja um grande interlocutor acerca do significado da Constituição, ele não detém o monopólio sobre a interpretação constitucional. A discussão sobre os rumos da terceirização não pode, portanto, ficar restrita ao STF.
A luta em defesa do direito do trabalho precisa ser assumida pelos setores diretamente afetados pela reforma trabalhista (que inclui a Lei nº 13.429), especialmente os trabalhadores. Foram eles os responsáveis, ao longo da nossa história, pelo estabelecimento de um sistema constitucional de proteção ao trabalho humano. Esse sistema, que sempre foi objeto de ataque por setores descontentes com as perspectivas de inclusão trazidas pelo texto de 1988, está agora em grande risco. Seria irônico, se não fosse trágico, que conquistas tão importantes venham a ser eliminadas por uma frágil maioria de um Congresso Nacional afastado de grande parte da população brasileira, composta, antes de tudo, por trabalhadores. Ao contrário do que se imagina, o tema da terceirização não é apenas uma discussão sobre formas de prestação do trabalho – ele envolve o modelo de sociedade que queremos para o nosso tempo e para as gerações futuras.
Ronaldo Curado Fleury – Procurador Geral do Trabalho. Especialista em Direito Coletivo do Trabalho pela OIT – Universidade de Bolonha.
Cristiano Paixão – Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador.
Fonte: JOTA
Crédito Foto: Reaja Servidor