Por José Borges de Morais Júnior*
Em um de seus mais importantes escritos sobre a técnica da análise, Freud escreveu, há mais de 100 anos, “recordar, repetir, elaborar”. De acordo com suas profundas reflexões, para quebrar a correia de transmissão que gera as neuroses e as repetições coercitivas, seria necessário retomar desejos esquecidos. Não como resultado de museologia específica a organizar e ordenar o próprio passado, mas como movimento indispensável para inventar novo futuro, de modo a refletir a necessidade de que um ideal projetado e desejante seja concretizado, a partir do presente, por meio da reatualização dos eventos pretéritos. Vale dizer, enquanto não revisitamos uma situação anterior com outras lentes, ressignificando-a, estaremos condenados à repetição por meio de ação atual, representada pela transferência do passado esquecido. A elaboração desejante, assim, constituiria mecanismo necessário rumo à concretização de novo horizonte.
Viver o Brasil de 2020 desperta a nítida sensação de estarmos caminhando a passos ligeiros rumo à idade média. Recentemente um capitão reformado foi eleito presidente do país tecendo rasgados elogios a um dos mais cruéis torturadores da ditadura militar, no interior do Parlamento, a casa do povo, símbolo maior das instituições democráticas. O ambiente de obscurantismo e negacionismo prevalece em detrimento da ciência e da tecnologia. O discurso moralista e excludente, tão bem condensado na expressão “cidadão de bem”, permeia todos os círculos sociais. Principalmente, e não menos preocupante, nas ações concretas dos diversos atores do sistema de justiça, bastiões últimos dos direitos fundamentais de todos os “cidadãos”. Em um domingo, a “tradicional família brasileira” sai às ruas para bradar contra a chaga da corrupção que impede o gigante adormecido de despertar para seletivo futuro de prosperidade que a poucos escolhe. Em um outro domingo, essa mesma família convoca atos nas redes sociais exigindo a volta do AI-5. Conquistas civilizatórias no campo dos direitos sociais são diariamente oferecidas em sacrifício ao invisível mas onipotente “deus” mercado. A liberdade de expressão é constantemente deturpada para justificar o cometimento de crimes contra a honra, a propagação de notícias falsas ou estimular ameaças contra as instituições democráticas. É um passado redivivo que nos assombra como aquele pesadelo que nos acompanha desde a primeira infância.
Há considerável consenso no sentido de que o Brasil não promoveu o encontro de contas com seu passado escravagista, autoritário, preconceituoso e excludente. De forma diversa, vemos com relativa frequência nos noticiários julgamentos recentes de nazistas na Alemanha, quase todos de pessoas idosas, acusadas de terem cometido diversos crimes contra a humanidade. E por que a Alemanha resolveu trilhar esse caminho? Afinal, causa estranheza condenar pessoas idosas por crimes cometidos há muitas décadas. Para nós, brasileiros, essa solução parece encontrar óbice em questões humanitárias e de segurança jurídica, sobretudo em razão da prescrição. Todavia, a maneira peculiar como a Alemanha (re)construiu a sua história em relação ao mais repugnante episódio da humanidade está relacionada à necessidade de tornar sempre viva e atual a barbárie. Isto é, lembrar para não esquecer e, por consequência, não repetir, obrigando contínuo processo de elaboração e superação. Trata-se, assim, de medida profilática, configurando importante instrumento para manter acesa a chama da maior ferida da humanidade.
No Brasil, no entanto, as forças políticas da época pactuaram discutível anistia em relação aos crimes cometidos durante a ditadura militar, a qual resultou em alto custo à sociedade brasileira atual, simbolizado pela eleição de um presidente que se orgulha e faz apologia à ditadura militar. Restam poucas dúvidas de que essa anistia, tal como produzida, significou, no imaginário social, a falsa percepção de que havia dois lados em luta e que esses lados estavam em igualdade de posições. Nada mais falseado. Primeiro porque os militares “tomaram de assalto” o poder de governo legítimo (a isso dá-se o nome de golpe), eleito segundo princípios democráticos que até hoje são constantemente atacados por quem tem o dever moral, legal e constitucional de obedecê-los. Quero destacar com isso que a ditadura rompeu com a lógica do regime democrático, deixando sequelas que reaparecem com indesejável frequência na nossa história. Daí porque, de acordo com a narrativa hegemônica, os opositores da ditadura militar, até hoje, são vistos como pessoas avessas à democracia, e não como pessoas que se posicionavam, legitimamente, contra usurpadores criminosos da soberania popular. Segundo porque os lados em confronto não estavam, de forma alguma, em igualdade de disputa. De um lado havia todo o aparato estatal: executivo, legislativo e judiciário (esse último sempre ladeado, historicamente, do senhor de engenho, do general ou do detentor do grande capital). Polícia, armas, torturas, leis e tribunais, em outras palavras. De outro, indivíduos vistos como “inimigos” a serem aniquilados. Resultado final da “anistia”: os opositores ao regime cumpriram toda sorte de pena por lutar contra o regime criminoso. Foram calados, presos, às vezes processados, julgados e condenados, muitos torturados, e outros tantos expulsos da própria terra. Não se tem notícia, todavia, da condenação de militares durante esse período, sobretudo do mais alto escalão, o que poderia sinalizar uma verdadeira tentativa de reconciliação, assim como indicar demonstração real de respeito com o patrimônio histórico, social, cultural e jurídico da nação.
Como visto, estamos a repetir os mesmos equívocos do passado, de maneira a revelar que os sopros democráticos que costearam essa parte do Atlântico não passam de desvio de percurso, de trajetória. A democracia se apresenta ao país apenas por meio de resquícios, de lapsos, reminiscências. É uma construção precária que não se assenta em bases sólidas. É chegada a hora de aproveitar esse momento para lançar luzes sobre nossa memória com olhos críticos e, assim, elaborar a consciência coletiva necessária para impulsionar o futuro desejante de uma sociedade livre, justa e igualitária. As repetições coercitivas dos acontecimentos passados causam a angústia que lateja incomodamente em cada um de nós. Que a reflexão atual, todavia, possa ser suficiente para revisitarmos nossas lembranças esquecidas como etapa necessária para superar nossos entraves e, com isso, elaborar a construção de outro horizonte de sociabilidade, dessa vez mais inclusivo, solidário e, sobretudo, intransigentemente democrático. ´
*José Borges de Morais Júnior, Promotor de Justiça do Estado do Ceará e integrante do Coletivo Transforma MP