Por Daniela Campos de Abreu Serra, na Carta Capital.
Durante a reunião anual do Coletivo por um Ministério Público Transformador vivi um momento catártico ao ouvir as dores de pessoas negras, dos mais diversos movimentos sociais, que durante os três períodos do dia 22/11/2019, tiveram voz para denunciar o quanto o racismo estrutural brasileiro permite a violação cotidiana dos direitos fundamentais das pessoas negras nesse país.
Logo no período matutino, enquanto ouvia a representante do MTST, Débora Pereira de Lima, narrar que não aguentava mais sofrer ao escutar seu filho perguntar quando as outras crianças iriam parar de chamá-lo de “macaco” na escola, lágrimas brotaram em meus olhos. Lembrei que quando criança pratiquei recorrentemente esse crime de racismo tendo como vítima outra criança, cujo único erro foi nascer negra e ser a melhor amiga da “menina mais popular” da escola, lugar que eu queria ocupar. Para realizar meu intento, inventei uma música depreciativa e ensinei a todos os “amiguinhos” da escola: “jane macaca, nasceu na selva”.
Alguns podem abrandar minha conduta e dizer que naquela época não tinha sido aprovada a Lei 7716/1989. Sim, isso é verdade. Apesar da minha conduta ter sido atípica à época, será que alguém acredita que 30 anos depois da promulgação dessa importante lei que deu concretude ao artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal de 1988, o cenário brasileiro é muito diferente? Não só pelo relato da Débora que já contei aqui, poderíamos enumerar uns cem casos recentes que evidenciam que o Brasil está longe de enfrentamento concreto do racismo estrutural.
Não citarei aqui centenas, mas merece registro um fato ocorrido logo após esse momento pessoal que descrevi e que merece destaque por ter como protagonista o então Ouvidor-geral do Ministério Público do Pará. O Procurador de Justiça Ricardo Albuquerque, ao proferir uma palestra para estudantes de Direito no auditório do MPPA, afirmou categoricamente que “esse problema da escravidão aqui no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar, até hoje. O índio preferia morrer do que cavar mina, do que plantar para os portugueses. O índio preferia morrer. Foi por causa disso que eles foram buscar pessoas nas tribos na África, para vir substituir a mão de obra do índio. Isso tem que ficar claro, ora”.
Após enfatizar que vai dizer algo que “talvez muita gente não goste”, sustenta que não há “dívida nenhuma com quilombolas”. Acrescenta que “nenhum de nós aqui tem navio negreiro. Nenhum de nós aqui, se você for ver sua família há 200 anos atrás (sic), tenho certeza que nenhum de nós trouxe um navio cheio de pessoas da África para ser escravizadas aqui” e, a partir dessa premissa, manifesta ser contrário às políticas públicas afirmativas com critérios raciais.
Como argumento defensivo contrário a tais políticas, afirma: “agora tem que dar estrutura para todo mundo, tem que dar terra pra todo mundo, mas é porque é brasileiro, só isso. É o que eu disse ainda agora, todos são iguais em direitos e deveres, homens e mulheres. Você escolhe o que você quiser ser, não estou nem aí. Mas todos são iguais, todos, todos, todos, absolutamente todos. Não precisa ser gay, ser negro, ser índio, ser amarelo, ser azul para ser destinatário de alguma política pública. Isso tá errado. O que tem que haver, meus amores, é respeito mútuo. Eu lhe respeito, você me respeita, acabou a história. O resto é papo furado. Isso tudo só faz travar a sociedade e eu tô dizendo isso porque eu sei o que rola lá dentro”.
Para mim, é absolutamente impossível não se revoltar com a manifestação do Procurador de Justiça, mas isso não basta, na medida em que ele praticou crime de racismo. Não se pode considerar que a manifestação do integrante do MPPA está no campo de livre expressão da sua opinião. O artigo 20 da Lei 7716/1989 dispõe: “praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” é crime punido com reclusão de um a três anos e multa. Conduta agravada por ter sido praticada por um membro do Ministério Público que como titular da ação penal tem a obrigação constitucional e legal de combater os crimes e as discriminações. Não pode gozar de privilégios e precisa ser processado: criminal e administrativamente. Como integrantes do Ministério Público não podemos nos contentar exclusivamente com “nota de repúdio”.
Além disso, é importante contextualizar que a fala do Procurador de Justiça reforça a prática da relativização do fenômeno da escravidão no Brasil, como se fosse algo natural e que não há necessidade de responsabilização por este processo histórico que ainda marca profundamente a sociedade brasileira e a reprodução dos padrões de exclusão das pessoas negras. Nesse sentido, brilhantemente reflete a filósofa Djamila Ribeiro em seu livro “Pequeno manual antirracista”, o qual recomendo veementemente a leitura: “o primeiro ponto a entender é que falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um debate estrutural. É fundamental trazer a perspectiva histórica e começar pela relação entre a escravidão e racismo, mapeando suas consequências. Deve-se pensar como esse sistema vem beneficiando economicamente por toda história a população branca, ao passo que a negra, tratada como mercadoria, não teve acesso a direitos básicos e à distribuição de riquezas” (2019, p. 9).
A fala do referido Procurador de Justiça apenas reforça o que presenciamos diariamente no sistema de justiça brasileiro. Como nos provoca Vera Lúcia Santana Araújo, advogada, ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno e integrante da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD): “apreciar o funcionamento do sistema judiciário e do sistema de justiça como um todo na reiteração de práticas racistas, discriminatórias, expressando o preconceito racial, é tarefa inadiável” (grifo nosso).
Ao concluir seu artigo, a jurista finaliza: “Direito e racismo no Brasil constituem faces das moedas sustentadoras da nona economia mundial, que não se envergonha de estar entre as mais desiguais do planeta. O país escolheu crescer assim: segregando racialmente a gente negra que soma mais da metade de uma população que jamais se encontrou para construir uma nação. Urge que a sociedade democrática adentre os portais do sistema judiciário, das carreiras constitucionalmente instituídas em funções essenciais à Justiça. Conhecer e compor essas estruturas é desafio democratizante, civilizatório”.
Aliás, na minha modesta opinião, compor essas estruturas é um dos maiores e mais necessários desafios. Como exemplo da importância de que as pessoas negras ocupem os cargos das estruturas do sistema de justiça podemos citar o Promotor de Justiça Libânio Rodrigues, atual Ouvidor-geral do MPDFT: “raramente passa pelo imaginário das pessoas que o promotor de Justiça possa ser um cara negro. Eu faço questão de ocupar esses cargos, porque, naturalmente, as pessoas não estão acostumadas a ver os negros nesses lugares. Parece que não é para o negro exercer aquela atividade”.
Outro exemplo que pode ser citado é o da Promotora de Justiça Lívia Maria Santana Vaz. Em recente entrevista ela conta que passou 12 anos tentando provar que era integrante do MPBA e relata que “recentemente em Salvador, com 13 anos de carreira, teve uma reunião institucional e não vou mencionar nomes para não constranger ninguém. Eu fui com algumas servidoras do MP. Um dos representantes da instituição chegou um pouco atrasado e não pegou o início da reunião. Ele disse que a reunião foi muito boa, mas que, da próxima vez, o MP poderia mandar um promotor. Eu estava na reunião do início ao fim. Ele não imaginava que aquela mulher naquela reunião era uma promotora”.
Relatos como esses de Libânio Rodrigues e de Lívia Vaz são cruciais para evidenciar as imensas dificuldades ainda hoje sofridas pelas pessoas negras, ainda que aprovadas no mesmo sistema “pseudo-meritocrático” do concurso público de provas e títulos, antes mesmo da instituição das políticas afirmativas de cotas raciais nos concursos do Ministério Público.
Quanto a esse ponto, é preciso registrar a atuação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) ao aprovar a Resolução nº 170, de 13 de junho de 2017, que dispõe sobre a reserva aos negros do mínimo de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos do Conselho Nacional do Ministério Público e do Ministério Público brasileiro, bem como de ingresso na carreira de membros dos órgãos enumerados no art. 128, incisos I e II, da Constituição Federal, ao dar concretude ao disposto nas Leis 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial) e 12.990/2014, bem como, ao decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 186/2014.
E, registre-se, tal medida não pode ser vista como benesse ou favor, sob pena de perpetrar a relativização do fenômeno social da escravidão no Brasil. Não é sem razão que o livro de Djamila Ribeiro mencionado é introduzido com a contextualização de que a História oficial é a dos vencedores. Ela destaca que se a branquitude não conhecer a perspectiva histórica da negritude e que o povo brasileiro se constituiu a partir da exploração forçada e violenta de pessoas negras vistas como coisas, mercadorias, dificilmente compreenderá que o genocídio da juventude negra é fruto da seletividade do direito penal utilizado para manter o domínio no controle dos meios de produção.
Aliás, nesse sentido é muito importante registrar que o Poder Legislativo brasileiro reconheceu oficialmente o genocídio da população negra no país, como consta do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito “Assassinato de Jovens” e recomendou expressamente a necessidade de discussão de um Plano Nacional de Redução de Homicídios que priorize “a atuação com o segmento populacional jovem, especialmente a faixa etária entre 12 e 29 anos e de cor negra (pretos e pardos), que concentra as maiores taxas de homicídios no Brasil”.
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) também divulgou os dados oficiais coletados a partir do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde na série de 2012 a 2017 e através do informativo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” informou que a “população negra tem 2,7 mais chances de ser vítima de assassinato do que os brancos”.
Aqueles que integram o sistema de justiça brasileiro, em especial, o Ministério Público, precisam enxergar a questão racial em todos os seus aspectos, em especial, no âmbito da aplicação do Direito Penal. Recentemente, o Papa Francisco, ao discursar para os participantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, após expressar sua “gratidão para o vosso serviço à sociedade e pela contribuição que oferecem ao desenvolvimento de uma justiça que respeite a dignidade e os direitos da pessoa humana”, afirmou que “em termos concretos, o desafio atual para todo o penalista é conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta, entre outras coisas, em encarceramento em massa, superlotação e tortura nas prisões, arbitrariedade e abusos das forças de segurança, expansão da esfera da pena, a criminalização dos protestos sociais, o abuso da prisão preventiva e o repúdio às garantias penais e processuais mais elementares.”
Papa Francisco complementa ao tratar do incentivo involuntário à violência alertando que “em vários países, foram implementadas reformas da instituição de legítima defesa e foi feita uma tentativa de justificar crimes cometidos por agentes das forças de segurança como formas legítimas de cumprimento do dever. É importante que a comunidade jurídica defenda os critérios tradicionais para impedir que a demagogia punitiva degenere em incentivo à violência ou no uso desproporcional da força. São comportamentos inadmissíveis em um estado de direito e, em geral, acompanham preconceitos racistas e desprezo por grupos socialmente marginalizados”. Afirma, ainda, que a “cultura do descarte, combinada com outros fenômenos psicossociais difundidos nas sociedades de bem-estar social, está mostrando a séria tendência de degenerar em uma cultura de ódio”.
De maneira propositiva, Papa Francisco dirige um convite a “todos vocês, estudiosos do direito penal, e àqueles que, em diferentes papéis, são chamados a desempenhar funções relacionadas à aplicação do direito penal. Tendo em mente que o objetivo fundamental do direito penal é proteger os bens jurídicos mais importantes para a comunidade, toda a nomeação e todas as tarefas nesta área sempre têm uma ressonância pública, um impacto na comunidade. Isso requer e ao mesmo tempo implica uma responsabilidade mais séria para o operador da justiça, em qualquer grau que seja, desde o juiz, o funcionário da chancelaria, até o agente da força pública.
Todas as pessoas chamadas para realizar uma tarefa nesta área deverão ter constantemente em mente, por um lado, o respeito à lei, cujas prescrições devem ser observadas com atenção e dever de consciência adequados à gravidade das consequências. Por outro lado, deve-se lembrar que a lei sozinha nunca pode alcançar os propósitos da função penal; ocorre que a sua aplicação deve também ter em vista o bem efetivo das pessoas em questão. Essa adaptação da lei à concretude de casos e pessoas é um exercício tão essencial quanto difícil.
Para que a função judicial penal não se torne um mecanismo cínico e impessoal, precisamos de pessoas equilibradas e preparadas, mas acima de tudo apaixonadas – apaixonadas! – da justiça, cientes do dever grave e da grande responsabilidade que eles desempenham. Somente assim, a lei – toda lei, não apenas a lei penal – não será um fim em si mesma, mas a serviço das pessoas envolvidas, sejam eles os autores dos crimes ou aqueles que foram ofendidos. Ao mesmo tempo, agindo como um instrumento de justiça substancial e não apenas formal, o direito penal poderá cumprir a tarefa de proteção real e efetiva dos bens legais essenciais da coletividade. E certamente devemos ir em direção a uma justiça restaurativa”.
E com a conclusão do Papa finalizo minha reflexão: “nossas sociedades são chamadas a avançar em direção a um modelo de justiça fundado no diálogo, no encontro, porque, lá onde for possível sejam restaurados os vínculos afetados pelo crime e reparados os danos que causou. Não acho que seja uma utopia, mas certamente é um grande desafio. Um desafio que todos devemos enfrentar se quisermos lidar com os problemas de nossa convivência civil de maneira racional, pacífica e democrática”.
Daniela Campos de Abreu Serra é Promotora de Justiça (MPMG), Mestre em Serviço Social pela UNESP, e integrante do Transforma MP.