Por Lenio Streck, no Conjur.
Face a tudo o que vem acontecendo no país, digo (pela enésima vez) que precisamos falar sobre a produção de prova, de sua gestão e de como impedir o jogo da parcialidade.
Processo não é um jogo. E se o é, pode ser apenas para a defesa, que está permitida de fazer agir estratégico — afinal, o advogado não pode pedir a condenação de seu cliente.
A moral não coage com o apoio do poder público; mas há pressão social exercida a partir do desvio moral, há sanções também para o descumprimento de algumas obrigações morais, mesmo que não contempladas pelo direito; mas o Direito é o domínio que se ocupa da legitimidade do uso da coerção coletiva. Simples assim.
O que quero dizer é que, moralmente, o Ministério Público está obrigado a agir com imparcialidade. E o juiz também. Na verdade, o sistema jurídico estabelece que o juiz não pode ser parcial, porque isso implica, inclusive, nulidade absoluta, conforme o artigo 564 do CPP. Por exemplo, a suspeição gera nulidade a partir das ações de juiz e MP.
Mas parece que, nestes tempos de substituição do Direito por juízos morais, nem o CPP consegue vincular. Por isso, temos que reforçar a legislação. Vamos seguir o que já existe no Estatuto de Roma e no Código de Processo Penal da Alemanha, como venho falando há anos.
Ao Parlamento (que tem meu respeito, de quem muito precisamos), tento facilitar. Basta um deputado, um senador ou um conjunto deles, recortar e colar.
Eis o projeto de lei prontinho. Na verdade, o projeto nada cria de novo. Apenas oficializa o que já está no Estatuto de Roma, já incorporado ao Direito brasileiro, e pega emprestado um dispositivo do Código Penal alemão (também previsto no direito italiano e na jurisprudência da US Supreme Court dos EUA — peço que tenham paciência e leiam aqui — falo do caso da Suprema Corte norte-americana). Quando falo do Estatuto, digo isso em termos de transnacionalização e transconstitucionalismo.
Afinal, por que não usar (no mínimo a inspiração) (d)o Estatuto (incorporado desde 2002), se na “lava jato” ele foi citado diversas vezes em pareceres e decisões e acórdãos condenatórios? Veja-se o acordão do TRF-4 que condenou Lula. Há uma parte em que o relator João Pedro Gebran Neto invoca o Estatuto de Roma, verbis: “Tal perspectiva também está presente no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, adotado pelo Brasil a partir do Decreto 4.388/2002, que, no seu art. 66, estabelece (….). Sem esquecer que a ministra Rosa Weber invoca o mesmo Estatuto na AP 521. No STF o Estatuto de Roma aparece em 123 acórdãos e uma decisão da presidência. No STJ, 2 acórdãos e 48 decisões monocráticas. Mesmo sabendo que a maioria dessas referências são decorrentes de processos envolvendo estrangeiros, ainda assim cabe a pergunta: Vale só para algumas coisas? Na verdade, para não deixarmos dúvidas, melhor é colocar em lei processual. Esse é o objetivo aqui exposto.
Vamos a ele.
“PROJETO DE LEI
Acrescenta parágrafo ao artigo 156 do Código de Processo Penal, estabelecendo a obrigatoriedade de o Ministério Público buscar a verdade dos fatos também a favor do indiciado ou acusado, isto é, a acusação é obrigada a entregar à defesa eventuais evidências que possam exonerar o réu:
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º. Ao art. 156 do Decreto Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, que estabelece o Código de Processo Penal, passa a ser acrescido de dois parágrafos com a seguinte redação:
“Parágrafo 1º. Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito ou procedimento investigativo a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o Código de Processo Penal e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, na busca da verdade processual, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa”.
Parágrafo 2º. O descumprimento do parágrafo primeiro implica a nulidade absoluta do processo, além das sanções funcionais respectivas.
Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data da sua publicação”.
JUSTIFICATIVA
O Brasil é signatário do Estatuto de Roma, já incorporado desde 2002 ao Direito brasileiro. No seu artigo 54, a, consta que “A fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.” Trata-se de preceito similar ao artigo 160 do Código de Processo Alemão: art. 160: que “[o] ‘Ministério Público’ [isto é, o equivalente] deve buscar [no sentido de investigar] não apenas as circunstâncias incriminatórias como também as que exoneram [o réu].” („Die Staatsanwaltschaft hat nicht nur die zur Belastung, sondern auch die zur Entlastung dienenden Umstände zu ermitteln und für die Erhebung der Beweise Sorge zu tragen, deren Verlust zu besorgen ist.“).
Parece óbvio que o poder investigatório do Ministério Público deve servir também para a absolvição de inocentes. Tal circunstância colocará o MP ao patamar de uma magistratura, porque lhe impõe a obrigação de ser imparcial, do mesmo modo que um juiz deve se conduzir com imparcialidade.
Isto quer dizer que, ou bem o ministério público se comporta como uma magistratura, ou bem se comporta como uma advocacia pública, um escritório de advogados de acusação. A pergunta é: por que seriam necessárias garantias constitucionais equivalentes aos dos juízes a advogados de acusação? E, com coragem e desprovido de paixões, esse argumento deve ser levado às últimas consequências, à luz do princípio republicano: é cômodo ter as mesmas garantias e vantagens dos juízes e estar dispensando da crise de “consciência” diante de um caso difícil. Ora, ficou em dúvida? Acuse! Não tem provas suficientes? Acuse. É para isso que você é pago. “Deixe que o juiz resolva. Ele que se vire”. Claro que não pode ser assim. Claro que o, regra geral, o MP não procede desse modo. Todavia, há episódios em número relevante que justificam a construção de blindagens ao agir estratégico do órgão acusador. Basta seguirmos o que acontece em países democráticos e adiantados. Veja-se que o direito do common law é cantado em prosa e verso no Brasil. Pois então, porque não usar o que acontece nos EUA, como ficou estabelecido no caso Brady versus Mariland, pelo qual a acusação é obrigada a entregar à defesa eventuais evidências que possam exonerar o réu.
O Ministério Público brasileiro possui as mesmas garantias da magistratura, fruto de uma luta intensa no processo constituinte. Logo, se possui as mesmas garantias, o MP tem as mesmas obrigações, sendo a principal delas a isenção e o dever de não se comportar como a defesa — essa sim autorizada a realizar aquilo que se chama, na doutrina, de “agir estratégico”.
Como agente público, o MP deve ser imparcial, ou, diria melhor, equidistante. Sua meta deve ser a busca da equanimidade (fairness). O presente projeto de lei, seguindo o Estatuto de Roma (já incorporado ao direito brasileiro), obriga o agente do MP a buscar a verdade do processo para a acusação e, também. a favor do indiciado ou acusado. Justiça para todos, em uma linguagem simples. É por isso, afinal, que a CF diz que o MP é o fiscal da lei e o guardião da legalidade e da constitucionalidade.
Nesta justificativa é bom registrar, de forma antecipada, que o ponto central desta alteração é a gestão da prova. Com efeito, para quem enxerga a discussão “papel do MP — sistema acusatório ou inquisitivo — ou “processo como lide” vai naturalmente entender o Ministério Público como parte. O ponto aqui tratado não é esse. Devemos entender o processo como condição de possibilidade para a democracia. Nesse sentido, para além da discussão parte ou não parte, mais importante é a gestão da prova. Mas há mais: independentemente da concepção interpretativa que se use para responder a o que é isto — o processo, o ponto fulcral é o mesmo. Importa registrar é que o Ministério Público é uma instituição do Estado; em o sendo, não lhe é permitido agir estrategicamente. Esse é o busílis. É disso que se trata. É uma questão de responsabilidade política, de ajuste institucional, e menos de dogmática processual.
Exigir um MP imparcial não é subestimar o que diz a processualística tradicional em suas definições conceituais clássicas; trata-se apenas de reivindicar um órgão que reconheça as circunstâncias favoráveis ao réu quando for o caso. E isso não apesar de suas atribuições funcionais constitucionalmente previstas, mas exatamente em razão delas. Processo, no Brasil, é processo constitucional. A principiologia constitucional impõe ao Ministério Público o dever de jamais agir por estratégia, sempre agir por princípio. Por isso o Estatuto de Roma teve a preocupação de obrigar a acusação de também investigar a favor do acusado. Gestão da prova — eis o busílis.
Registre-se que a Itália, depois da Operação Mãos Limpas, para se prevenir contra arbitrariedades da magistratura do Ministério Público, a Corte Constitucional, em 1991, entendeu, por meio da sentença nº 88/91, que o Ministério Público, em razão de seu inegável poder para conduzir a investigação criminal, é “obrigado a realizar investigações (indagini) completas e buscar todos os elementos necessários para uma decisão justa, incluindo aqueles favoráveis ao acusado (favorevoli all’imputato)”.
Ou seja: Alemanha, Estados Unidos, Itália e Estatuto de Roma (são os principais): todos adotam esse modelo. E em todos o Ministério Público é fortalecido com essa obrigação de imparcialidade. O projeto é, assim, um reforço a Instituição Ministério Público.
Veja-se que a alteração tem inúmeras vantagens:
(i) Institucionaliza o dever de imparcialidade e
(ii) sanciona também o agir estratégico que prejudica o indiciado ou réu (sanção é a nulidade do processo).
(iii) Isso sem falar na imensa vantagem para os casos de plea bargain, acaso aprovada a sua institucionalização no país.
(iv) Não se poderá esconder do indiciado as provas que existem, proporcionando, assim, uma barganha isonômica (plea bargain) e republicana.
(v) Também esse dispositivo fará com que as delações sejam feitas de forma mais transparente e igualmente republicana.
Enfim, são estas as razões para que se promova a alteração legislativa. Não adianta invocar o Estatuto de Roma de forma ad hoc (AP 521 ou acordão do TRF-4 já referido). Vamos aplica-lo de forma equânime, ao menos no que pertine à gestão da prova, conquista indiscutível do Estatuto, com inspiração no direito alemão, italiano e norte-americano, ainda que não de forma explícita. Na verdade, exigir que a acusação investigue também a favor do acusado, e coloque as provas descobertas à lume, decorre do princípio democrático e nem precisaria maiores fontes legislativas.
Com isso, evitar-se-á que um agente do MP aja seletivamente e fará com que o juiz cumpra o dever de imparcialidade, porque ele terá de fiscalizar e exigir a apresentação de todas as provas e elementos de convicção apuradas pelo MP.
Ainda, numa palavra: parece induvidoso que, se a polícia deve produzir todas as provas, então é indubitável que o MP também faça isso quando toca a ele. Por sinal, a delação não se salva se não forem todos os atos filmados e colocados à disposição da defesa, de modo a que possa impugnar qualquer arbitrariedade. Despiciendo lembrar dos recentes episódios de omissão de provas em casos rumorosos.
Proponente: Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, ex-procurador de justiça-RS, jurista, doutor em Direito, advogado parecerista e professor de hermenêutica e direito constitucional.