Precarização relacional: uma outra conexão é necessária

Por Ana Gabriela Brito Melo Rocha, na Carta Capital.

Mais do que terror! Confesso sentir profunda tristeza em relação ao notado aumento avassalador da violência, em todas as suas formas, e à normalização desta no cotidiano nacional.  Há algum tempo, tento compreender o processo de desumanização e satanização do diferente, que autoriza atos fundados no não reconhecimento do outro como pertencente à sociedade, atos que se destinam à eliminação do estranho, ainda que no plano do simbólico. Envolvida em estudos sobre comunicação não violenta, mediação e justiça restaurativa, impossível não enxergar o liame entre a perda da nossa capacidade de diálogo, de criação de pontes com os interlocutores, e a barbárie que nos ronda.

 No texto “Doente de Brasil”, no qual nos brinda com sua sensibilidade e perspicácia costumeiras, a jornalista e escritora Eliane Brum invocou as reflexões de Rinaldo Voltolini, professor de psicanálise da Universidade de São Paulo, para quem “a guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu. Isso acontece entre duas pessoas, entre países. Sem a mediação da palavra, se passa diretamente ao ato violento”. A autora, de forma muito feliz, arrematou sua coluna concluindo que “precisamos recuperar a palavra como mediadora em todos os cantos onde houver gente. E fazer isso coletivamente, conjugando o nós, reamarrando os laços para fazer comunidade. O único jeito de lutar pelo comum é criando o comum – em comum”.

Logo, sendo a palavra, isto é, o diálogo, transformador por excelência, o insumo principal das ligaduras que precisamos até mesmo para entender o que nos une como comunidade e como nação, importa refletir sobre a forma de nos comunicar e, evidentemente, de nos relacionar, uma vez que não há relacionamento que não envolva comunicação.

Ao continuarmos assim, tempos ainda mais penosos se anunciam.

A esquizofrenia da modernidade implica a possibilidade quase infinita de conexão. Não obstante, estamos cada vez mais distantes, apáticos, fechados em nossas bolhas e adeptos dos monólogos virtuais. Apesar da celeridade e da tecnologia, não há tempo para presença efetiva ou espaço para o outro.

Uma situação recente foi pródiga em fornecer significativos elementos indicadores das dimensões da nossa miserabilidade. Em julho de 2019, a rede social Instagram ocultou a visualização de likes ou curtidas, em razão da competição por cliques. O fato se tornou objeto de polêmica. Muito foi dito sobre o acerto ou o desacerto da medida, com direito a, inclusive, atribuí-la à chamada “ditadura do politicamente correto” – como se o status quo não se impusesse, cotidianamente, de modo arbitrário.

O fato é que, para além de nos aproximar da medonha realidade exposta na série britânica Black Mirror e ser um risco à saúde mental, a necessidade de aprovação em posts por intermédio de likes ou curtidas deixa entrever tanto a nossa superficialidade quanto a artificialidade das nossas relações. Afinal, o que diz um símbolo de “joinha” ou um coração? Quais necessidades humanas universais (subsistência, descanso, proteção, interdependência, entendimento, compaixão, autonomia, diversão e sentido) estariam, de fato, sendo atendidas com um mero clique? Que sentimentos são expostos com tais símbolos? Acostumar-nos-emos ao individualismo oriundo do temor – ou mesmo da preguiça – de efetivamente nos doar aos outros e ao mundo, a ponto de reduzir a comunicação à função fática da linguagem, aquela na qual basta o simples contato entre o emissor e o receptor, não importando o que se fala ou como se fala? Então é suficiente criarmos e mantermos o chamado networking?

A penúria estampada na satisfação com os rasos likes se estende aos “virais” emoticons. Nada mais se compartilha realmente! Basta o envio de uma carinha. Voltamos aos hieróglifos, com o agravante de que não temos mais comunidades pequenas ou tantas celebrações coletivas capazes de fortalecer nossos laços.

A cultura do não diálogo e (em decorrência lógica) da não escuta, lança seus tentáculos para além das redes sociais e dos aplicativos de mensagens. Lembro-me, certa vez, de estar em um táxi e de ouvir três músicas populares, em sequência, que revelam bastante aspectos dos tempos atuais. Na primeira, o cantor entoava versos nos quais sustentava estar sem paciência e não querer discussão, dizendo a seu par afetivo para “falar com sua mão”. Na segunda, uma cantora afirmava estar “a fim de incomodar” e sugeria a terceiros “sentar e chorar”. Na terceira, uma dupla sertaneja cantava algo sobre um rapaz se impondo sobre uma moça, afirmando que a namoraria e com ela casaria, mesmo contra a vontade da eleita.

Cada vez menos, o outro, os sentimentos do outro e as necessidades do outro importam. Ao outro, não se dá voz, não se reconhece a dignidade. O campo está aberto para violências de todos os tipos, começando pelas estruturais.

Na era da leitura limitada ao título de textos, dos memes, das curtidas e dos emoticons, estamos abandonando a linguagem, instrumento fundamental para pensarmos e nos relacionarmos conosco, com o mundo e com a comunidade e que pode – e deve – ser fonte de libertação, de comunhão e de parcerias.

Recordo-me que, na adolescência, impactou-me profundamente a leitura do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos. A dureza da vida levada por Fabiano retirou dele a capacidade de vocalizar sentimentos, vontades e necessidades. Fabiano, o retirante animalizado, grunhia por falta de opção. Nos dias atuais, choca-me a opção que muitos e muitas fazem pela mesquinhez linguística e relacional.

Nos termos do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil, a educação deve visar, para além da qualificação para o trabalho, ao pleno desenvolvimento da pessoa e ao preparo para o exercício da cidadania. Inteligência emocional e, portanto, habilidades comunicacionais deveriam ser aprendidas na escola.

Entretanto, o ensino é pouco provável, seja pela supervalorização das habilidades vistas, pelo senso comum, como propensas a trazer maior retorno financeiro, seja porque hoje há uma censura que considera quase tudo pauta ideológica, inclusive os direitos e as garantias fundamentais inerentes a todo e qualquer Estado que se pretende democrático de direito. A isso, deve ser acrescido o não menos prejudicial “contingenciamento” de verbas na educação.

Torna-se difícil, para não dizer impossível, vislumbrar, ainda que para além de um horizonte, a paz no futuro preconizada pelo Hino Nacional.

Ana Gabriela Brito Melo Rocha: Promotora de Justiça em Minas Gerais e membra-fundadora do Coletivo Por Um Ministério Público Transformador

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