Dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde informam que até o dia 11 de julho de 2020 atingimos 866 mil casos suspeitos da COVID-19 entre profissionais de saúde, com mais de 180 mil confirmações
Por Leomar Daroncho* e Bruno Choairy Cunha de Lima** no GGN
O bombardeio de notícias sobre a pandemia tornou as máscaras e o incômodo pelo seu uso, temas inevitáveis, para técnicos e leigos. Já há máscaras de clubes de futebol e com mensagens políticas, além de modelos “fashion”.
Estamos nos acostumando a discutir a eficiência e a usar Equipamentos de Proteção Individual (EPI), com maior ou menor adesão aos apelos ou à imposição das autoridades responsáveis. Já se buscou impor seu uso inclusive ao Presidente da República, que se considerava imune ao novo Coronavírus.
Trata-se de oportunidade ímpar para discutirmos o uso e a eficiência de EPIs, além da subnotificação do número de casos e da contaminação de trabalhadores traçando paralelo com outras frentes em que esses problemas fazem parte do dia-a-dia dos trabalhadores, mesmo em condições normais.
Dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde informam que até o dia 11 de julho de 2020 atingimos 866 mil casos suspeitos da COVID-19 entre profissionais de saúde, com mais de 180 mil confirmações. O Observatório da Enfermagem do Conselho Federal da categoria já contabiliza 290 óbitos de Enfermeiros pela doença. Números parciais, que não contabilizam informações do Paraná e do Espírito Santo, revelam maior incidência entre técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos. São profissionais que nos acostumamos a ver usando máscaras e uniformes característicos e que, valorizados ou não por seus empregadores, despertam, justamente, a admiração dos brasileiros.
A incidência e a letalidade da doença entre profissionais com bom nível de formação e consciência dos riscos, em ambiente relativamente controlado, com boas condições de diagnóstico, torna oportuna a discussão da situação de trabalhadores continuamente expostos aos riscos da contaminação e do acometimento de doenças, agudas ou crônicas, em condições bem mais adversas. A maior parte dos trabalhadores da agricultura, em regime de intenso uso de veneno, tem baixa escolaridade, deficiência de informações e dificuldade de acesso aos serviços de saúde.
As normas brasileiras de proteção aos riscos da exposição aos agrotóxicos – Lei 7.802/89 e NR 31 – são tidas como de boa qualidade, porém, são de limitada efetividade.
Os EPIs são obrigatórios no trabalho rural em que há exposição aos agrotóxicos. Por lei, a empresa deve capacitar o trabalhador e fornecer EPIs adequados ao risco e em perfeito estado de conservação, que não propiciem desconforto térmico, que seria prejudicial ao trabalhador. As normas do setor responsabilizam ainda o empregador pela higienização e descontaminação dos EPIs, ao final de cada jornada de trabalho.
De fato, impressionaria muito que um trabalhador se vestisse de modo semelhante a um astronauta, em temperaturas tropicais, ao longo de um dia de trabalho, usando permanentemente itens obrigatórios como Boné árabe (com viseira), respirador, jaleco hidro-repelente, capa, bota, viseira facial, avental, luvas e segunda pele.
Apesar disso tudo, não é incomum encontrar trabalhadores manuseando veneno e usando roupas pessoais, camisetas de clube de futebol e chinelos de dedo.
Embora a legislação imponha a leitura das informações contidas no rótulo do veneno, pesquisas de percepção de risco dos trabalhadores que manuseiam os produtos (FIOCRUZ) indicam a informalidade e o analfabetismo funcional no meio rural como fatores que agravam o quadro de desproteção e de inobservância das normas de segurança.
Trata-se de exigência utópica, desenvolvida para os climas temperados em que os produtos tóxicos foram criados, e que nos remete a modelos de filmes futuristas, com o óbvio desconforto térmico das escaldantes fronteiras agrícolas brasileiras. Puro faz de conta!
A bula do glifosato, por exemplo, o veneno mais usado no Brasil e no mundo, prevê como condições limites de aplicação a temperatura máxima de 28º e o mínimo de 55% para a umidade relativa do ar. Seria necessário ajustar as condições climáticas a esses parâmetros, para considerar razoável o encapsulamento do trabalhador, todos os dias, durante todo o tempo em que estiver exposto ao veneno. A exigência não é razoável, pois está desconectada da realidade. Inevitável a conclusão de que, na maior parte do país, não são cumpridos os requisitos de segurança para a aplicação de veneno. Isso simplesmente não é crível!
Superada a questão anterior, o empregador ainda deveria higienizar, de forma separada, ao final de cada jornada, as vestimentas usadas no trabalho. Supõe a norma que todo estabelecimento rural possuiria uma lavanderia com profissionais treinados, além de estoque para reposição e locais para a guarda dos EPIs, realidade distante daquela vivenciada no campo. Ao contrário disso, na realidade é muito frequente encontrar, nas investigações de trabalho escravo, galpões que funcionam como alojamento de operários e depósito de veneno.
Conforme sinalizam os dados de contaminação dos profissionais de nível superior das unidades de saúde, que trabalham em ambiente controlado, a mera utilização de EPI não é suficiente para afastar os riscos a que estão expostos os que se ativam em situação de risco.
Para além das questões atinentes às dificuldades práticas de efetivo uso dos EPIs, mantém-se a dúvida sobre a eficiência, higienização e reutilização, nas condições desfavoráveis do meio rural, que envolvem incômodos respiratórios e com o suor, em regiões desassistidas, com baixo grau de instrução e qualificação. São dados que potencializam a incerteza quanto à eficiência da proteção conferida pelos dispositivos recomendados, ainda que fossem efetivamente usados.
Reforça a visão crítica ao mito do “uso seguro” do veneno, sustentado em EPIs, a constatação de que os dispositivos de proteção são concebidos para prevenir a exposição pontual, teórica, em eventos de intoxicação aguda de um determinado veneno. No dia-a-dia, as condições são bem mais adversas, com a ação de intempéries e o uso combinado de produtos tóxicos.
A subnotificação é outra questão muito preocupante e que permite traçar um paralelo da pandemia com a tragédia dos agrotóxicos. Mesmo sendo a COVID-19 uma doença marcantemente urbana, com sintomas conhecidos característicos e a possibilidade de exames com testes rápidos, há consenso entre epidemiologistas independentes de que o número real de casos de COVID-19 é bastante superior ao registro oficial.
No meio rural, os agravos à saúde, embora compatíveis, raramente são relacionados à exposição ao veneno, apesar do destaque do Brasil entre os países que mais utilizam agrotóxicos e de que algumas enfermidades crônicas despontem de forma marcante em determinadas regiões.
A precariedade de meios dificulta o diagnóstico e a relação entre os agravos à saúde e a exposição a produtos reconhecidamente tóxicos, propiciando quadros clínicos indefinidos, que seguem turvados pela desinformação, pelas limitações do sistema de saúde, pela exposição a múltiplos produtos e pela concomitância de outros fatores ambientais.
A negativa da indústria química, no que diz respeito ao nexo com doenças crônicas, contraria estudos de outros países, decisões judiciais e evidências estatísticas que relacionam a frequência de doenças graves, como o câncer, às regiões de mais intenso uso de veneno. Também aqui não se sustenta o mito do “uso seguro”.
Em meio a desmandos, os profissionais da saúde se orientam pelos preceitos morais de Hipócrates (século V a.C.), reafirmando o compromisso de manter o máximo respeito pela vida humana. Enquanto isso, com mais de 2,2 milhões de casos e superando as 83 mil mortes, o Brasil persegue resolutamente o posto de pária da pandemia. Essa posição terá consequências para as nossas vidas e para a reputação do país.
Com algumas semelhanças, a tolerância ao desenfreado uso de venenos muito tóxicos, proibidos nos países de origem, embalada pela falácia do “uso seguro”, tende a nos tornar foco de retaliações na acirrada disputa por mercados. Pagaremos caro por tudo isso, comprometendo o meio ambiente, a vida, a economia e o futuro de uma nação que se pretende desenvolvida, sem abdicar de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.
*Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP
**Bruno Choairy Cunha de Lima é Procurador do Trabalho